quinta-feira, 31 de dezembro de 2009

Ferro enferrujado

Ferro enferrujado, roseiras mal cuidadas, delírio esfarrapado, dedão envolto com bandeide. Sentado no portão da velha casa, olhando quem passava, Wilson era razoável, devotado e dado às frases conclusivas. Tudo aquilo que caracteriza um homem medíocre. Fazia a barba às segundas, quartas e sextas. Aos sábados, o banho era demorado. As unhas cortadas no domingo, com a regularidade de uma missa. Ouvia o futebol para ter assunto, o noticiário para falar (mal) do governo, músicas sertanejas para se lembrar do amor: Norma, Norminha, normalista, normalíssima. Aquilo, sim, fora paixão. Ela quase amou Wilson. Quase jurou trair o voto de castidade, feito ainda mocinha, quando sarou de um sarampo. Quase empolgou-se com a fala uníssona do moço do banco (sim, Wilson era bancário). Quase viveu para cuidar da mãe, não fora a distração para atravessar as avenidas. O contínuo da agência foi o único a saber do amor perdido de Wilson, mas esgotou-lhe o poço da tolerância quando se dispôs a consolar-lhe. Nem mil e uma paciências suportam a obviedade.

quarta-feira, 30 de dezembro de 2009

Com a agonia pândega

Com a agonia pândega do galo depois da briga, Marco Aurélio ainda quis retornar à boate, onde três brutamontes socaram-lhe a vivacidade bêbada. Era madrugada e o excesso de miudezas morais das quais perdeu a conta o faziam parecer uma orquestra desafinada e decadente, que insistia em tocar mais uma.
Com a cabeça chacoalhando fragmentos da dança que não terminou, do copo que entornou capenga, da catharsis no palco dizendo-se a reencarnação de Hendrix, Marco Aurélio balbuciava palavras inaudíveis aos poucos passantes. Nem demorou demais a expor seu ridículo em golfadas de mal estar, que fizeram os dois enormes seguranças afastarem-se de seu entorno podre. Situação mais do que propícia para Marco Aurélio avançar em direção à porta da casa noturna, colocar as mãos trêmulas em cone imperfeito e gritar a parcos pulmões: “volte pra mim, Madalena!”.

terça-feira, 29 de dezembro de 2009

Pedradas isoladas

Pedradas isoladas chegavam no telhado de zinco. Estalos de fazer alarde eram o que ouviam. Bombas de uma batalha por nada. Pedras antigas, provavelmente idênticas àquela que Caim atirou em Abel. E morar no barraco de morro, com um tempo de chuva desses, enfim já era um presságio de hecatombe.
Não eram pedradas de meninos, eram de maldades. Amálgamas sonoras a trovões do tempo, do céu. Um tempo em que ainda não moravam no barraco de zinco. Um céu que então tinham como cobertura da vida. Foi culpa da ascensão. Juliete quis subir. Filhos pequenos. Só a força cavaria a rocha. Só ela, tiraria intrusos, espalharia rusgas e edificaria o teto. Na revanche, as pedras inevitáveis. Aquela inclinação de terra fora o quintal de Olegária, a mesma, do barraco de cima. Vizinha de pedra, carrancuda e magoada pelo quintal perdido.
Com chuva, pedradas. Um jeito tirano de por medo nas gentes do barraco de baixo. Até que veio temporal inclemente. Muitos meses de água em quinze minutos. Ao invés das pedras, o barraco de Olegária chegou inteiro no telhado de zinco de Juliete. E elas, e filhos, e gatos, e seus trecos, desceram. Irmanadas às pedras.

segunda-feira, 28 de dezembro de 2009

Cara e característica

Cara e características coincidiam com as do pedreiro José Belo, procurado por edificar o terror no feio bairro da Pedra Morta. Chacoalhando a cabeça em balanço musical e caminhando aos saltinhos, como se dançasse, o homem mais parecia um foragido de um reino encantado ou uma cópia mal feita de Chapeuzinho Vermelho, no trajeto do bosque até a casa da avó. Um “nem aí”, testemunhariam depois na delegacia.
Foi na frente do salão da igreja avivada que o delegado João Lobo e sua equipe tiraram a vida do rapaz. Prisão, júri e condenação foram realizados ali mesmo, e não demoraram mais do que cinco minutos. À ação do moço de pegar os documentos na bolsa de couro que trazia, já levou três tiros, e recebeu a ordem para entregar-se. “Pra que essa boca tão sanguinolenta?”, ainda gritou Lobo, com o revólver em punho. O moribundo balbuciou engasgado: “meu nome é Antonio Carlos. Sou organizador da parada gay”. Lobo percebeu o equivoco e riu do erro, um riso amarelo. José Belo, contam, continua fazendo coisas feias.

domingo, 27 de dezembro de 2009

Trocar em miúdos

Trocar em miúdos sua impertinência era chegar à conclusão evidente que Rosário não deveria mais ler os clássicos. Seus anseios eram enganos. Suas obsessões, fantasias, por vezes macabras. Ficção para os leitores habituais, para Rosário não eram.
Pos advogado e protocolou na Justiça o pedido de localização do túmulo e exumação do corpo de Bento Santiago, o Bentinho, e de seu filho Ezequiel. A finalidade era a de revolucionar de vez os estudos literários brasileiros: promover um teste de DNA, que eliminaria determinantemente a dúvida quanto à traição da senhora Capitolina, dizia Rosário. O arguto advogado cobrou-lhe os tubos, e até localizou o túmulo de um Bento Santiago, no cemitério de Caju, morto em 1905. E, por uns inúmeros outros cruzeiros, o de um Ezequiel Santiago, morto em 1946. Tratou da papelada, recebeu o grosso dinheiro de Rosário e executou o processo e a ação. Com o evidente resultado negativo em mãos e completamente descapitalizado, Rosário procurou a Academia Brasileira de Letras. Na entrada, observou o malicioso riso da secretária, quando declarou sua intenção. Rosário rezou-lhe um terço de difamações, e saiu do prédio aos gritos: “aqui ninguém é sério. Todos temem a verdade!”.

sábado, 26 de dezembro de 2009

Imposto é que ele

Imposto é que ele não iria. Por vontade de Lauranda, talvez. Muitos foram aqueles que sugeriram o exame de sangue. Ele, reticente. Mesmo o surgimento de novas manchas não maculou sua inabalável indiferença. A quem queria saber, dizia que estava disposto a pagar sua absolvição, embora sem saber direito qual seria o crime. Como o coadjuvante certo numa peça sem enredo, Octacílio enfim foi convencido por Lauranda.
Doze horas sem comer, ansioso, dirigiu-se ao laboratório de análises sanguíneas. Aproveitou para verificar seu estado geral, o que foi um erro. O DNA demonstrou que Lauranda, de fato, não era a sua filha. O ácido úrico, porém, estava extremamente alto, o que significaria o fim de suas cervejas com os amigos. Medicado, voltou para casa contorcendo-se com diarréias, efeito colateral dos remédios para o ácido. Pálido e desconsolado, ainda dirigiu-se à mocinha que criava como filha: - O sangue só prescreve tragédias. Eu bem que supunha, Lauranda, que esses exames todos resultariam em inúmeras cagadas!

sexta-feira, 25 de dezembro de 2009

Manjedoura: 1 ponto

Manjedoura: 1 ponto. Galinha: 2 pontos. Jumento: 5 pontos. Boi marrom: 10 pontos. Boi preto: 10 pontos. Vaca malhada: 10 pontos. Vaca amarela: 10 pontos. Carneiro: 10 pontos. Galo: 15 pontos. Estrela Guia: 20 pontos. Pastor moreno: 25 pontos. Pastor loiro: 25 pontos. Anjo da direita: 30 pontos. Anjo da esquerda: 30 pontos. Rei Melquior: 40 pontos. Rei Baltasar: 40 pontos. Rei Gaspar: 40 pontos. São José: 50 pontos. Virgem Maria: 50 pontos. Menino Jesus: 100 pontos.
- Mefistófeles, ô Mefi, vem cá jogar, moleque. Acabei de ler o manual do War Presepe, esse game de presépio que o Papai Noel me deu. Trouxe lá dos Estados Unidos. Olha, você atira com essa bazuca vermelha, que fica aqui no meio. Cada coisa que você mata vale ponto. Tem uns que são fáceis, mas aqueles três ali, ó, a Sagrada Família, são difíceis de ir atrás e acertar. A mulher sempre foge no jumento, então precisa matar o jumentinho primeiro, pra passar para a segunda fase. O que mais vale é Menino Jesus, aquele bebezinho. É o mais difícil da gente seguir!

quinta-feira, 24 de dezembro de 2009

Os gestos ritualizados

Os gestos ritualizados de Margarida causam-me um horror definitivo. É sempre aquela mão que sobe à cabeça, como se a suposta dor pudesse deitar-se na palma e dormir nos dedos. Tem também aquele soluço tônico. Intercalado com a piscada dos olhos que balançam nas órbitas, como se acompanhassem o voo de um pernilongo à caça de sangue. A própria burocracia do sofrimento, a Margarida.
Pior quando dá pra falar de si como expressão da novidade, do bom gosto ou da alta personificação da criatividade. Já disseram que cada palavra tem seu próprio feitiço e, se trocarmos uma pela outra, a bruxaria desanda. Margarida, nem aí. Não percebe a ausência do todo e o esbanjamento do resto, enquanto fala. E como fala... uma tagarelice feliz. Sim, Margarida só consente trocar alguma dor por muita conversa, senão sofre.
Conto pra vocês bem baixinho, porque ela pode acordar, já deixei ali na sala a minha mochila de viagem. Antes que o pequeno monstro acorde, com sua lista de vulnerabilidades, vou sumir com a minha alma. Até o purgatório é melhor que esse inferno.

quarta-feira, 23 de dezembro de 2009

Catapultado ou abduzido?

- Catapultado ou abduzido? Tanto faz, queria era estar no disco voador. Se me jogassem lá ou me buscassem aqui, eu bem que iria... porque, também, ninguém acreditaria mesmo! Discursava inutilidades com a desfaçatez de um governante de país desenvolvido em reuniões mundiais sobre a contenção do aquecimento global. Tinha a grandeza dos pequenos deuses e os milagres dos mortais. A ânsia de Melchíades para entrar na história não passava por nenhuma atividade regular, voltada ao trabalho, às artes ou ao desenvolvimento científico, seria sempre por meio da aventura. Tanto embarcou de flanco aberto naquela que seria a grande marca de sua existência que decidiu voar, atado a 134 araras, que capturou pacientemente em arapucas domésticas. Nem as centenas de bicadas que levou, para atar às patas de cada uma das aves resistentes fios de nylon, o fizeram desistir do projeto. Todas amarradas, Melchíades ligou cada fio à sua própria cintura. Como elas não saíssem do chão, decidiu soltar o rojão, desses de São João. A pólvora tomou-lhe os dedos, causando-lhe queimaduras graves. As araras, assustadas, coitadas, só gritavam, taramelando sua indignação.

terça-feira, 22 de dezembro de 2009

Cantou antes do galo

Cantou antes do galo o estio de sua liberdade. Tarsício esteve para se livrar de Tuca, quatro filhos depois de ser levado por ela adolescente, para conhecer a marca de nascença que tinha nas proximidades da virilha esquerda. Sempre foi assim, a Tuca: atirada nos propósitos e resoluta nas conseqüências. Foi pelo trabalho dele, mas pela vontade dela, que compraram a motocicleta cross azul. Quando nasceu Tuta, o primeiro rebento, a moto virou um karmann ghia vermelho. Com Tarsila veio o fusca branco. Veio o Passat verde com Tutaméia. Veio a van ocre, com Terêncio. Profícuo em filhos, o casal voltou-se aos gatos: Fifi, Janjão, Japinha, Turano, Ron, Tatá, Mimi, Bichana e muitos, inúmeros, que pelos dois quartos da casa visitavam os habitantes de sua espécie. Estrume animal e merda humana exalavam os hábitos de Tuca e Tarsício, deveras conhecidos no tradicional bairro boêmio.
Se Tuca reservasse sua marca de nascença a Tarsício, aos filhos e gatos tudo iria bem, mas a caprichosa deu para torná-la conhecida dos moços da vila. Tantos, cujos nomes não se diferiam muito do dos gatos. Tarsício decidiu debandar. Com a van cheia de filhos, deu partida para a fuga, quando, de dentro da casa, ouviu uma Tuca aos berros: - Vê se não me volta sem duas dúzias de pães e um saco grande de ração, heim?

segunda-feira, 21 de dezembro de 2009

Cinza como o concreto

Cinza como o concreto do viaduto, a manhã se imaginou bucólica. Roubava do asfalto folhas secas, que corriam em filetes de água podre estimulados por garoas incertas e pelos vazamentos de atormentadas torneiras. Mas se sonhava paisagem verde, a manhã cinzenta. Escapamentos desregulados de veículos com tosse conferiam o tom sobre tom, contrastado apenas por aquelas rosas e lírios e palmas, na banca da florista triste, em que a manhã se mirava, espelhando-se, concebendo-se na vontade de ser primavera.
As aspirações daquela manhã voluntariosa quase reproduziam o sonho de Ubiratã de se mudar de vez para o campo. Trocar o sala-e-quarto por uma chácara possível, como na música antiga de viés hippie-cabeça. Assobiar ao sabiá a atender ao celular. E se o aniquilamento daquela cor da manhã, entre o preto e o branco, pudesse enfim resultar num desenho psicodélico, ele não teria dúvida: tomaria outro ácido ou plantaria sua horta de chicórias verdinhas, além de alguma alface.

domingo, 20 de dezembro de 2009

Oferecida como

Oferecida como os papeis que recebem uma gravura, depois outra e outras e muitas, Umbelina deixou pra trás a digital do bom RG, e passou a ser várias, forjando um documento para cada golpe. Quando se amancebou com o privilégio do dono do estacionamento, nem carro tinha. Apresentou-se Inês, saiu Joana. O homem dirige às tontas, atrás daquela Inês, suposta e obscura.
Com o industrial Rubens, mal apertou o parafuso do afeto. Deu-lhe o que queria, levou-lhe o que não supunha: euros e ouros. Já a Marlene de então, o homem ainda a buscou na região, antes da concordata. Foi como Bernardete, no entanto, que pode de vez parar com a vida heterônima. O armador japonês construiu-lhe um estaleiro, e “Berna” decidiu, enfim, tocar o negócio com o próprio trabalho. Enviuvou cedo, é verdade, quando o empresário nipônico afogou-se dias depois da lua-de-mel. Tempo raso, para deixar a jovem esposa com uma filhinha mestiça na barriga. A mãe a registrou como Umbelina. Umbelina Tahika. Os parentes do marido estranharam, mas lei é lei.

sábado, 19 de dezembro de 2009

Indecifrável providência

Indecifrável providência livrou Ligorno do acidente, no qual todos os outros que estavam do carro morreram. Com a ordinária vontade de beber um copo de água, disse que não iria naquela viagem. Deslocaria-se mais tarde, para encontrá-los no rancho de pescaria. Faço meu destino, brincou.
Criou essa história para encená-la na conclusão do curso de teatro. Incendiário sem isqueiro, julgou que arrasaria na nota final, arrebataria o público e receberia louvores de seus mestres, pela competência do enredo. Planejou o discurso, no qual agradeceria um a um, nominalmente, aqueles que colaboraram para o seu êxito. Discurso longo, comum a todos os discursistas que não tem muito conteúdo a falar.
Encenado o esquete, olhou atento para o professor Paulo, ator tarimbado. O homem revidou-lhe o olhar, baixou a cabeça e disse entre os dentes: - “passo sua nota mais tarde, com licença, preciso tomar um copo d’água”.

sexta-feira, 18 de dezembro de 2009

Sempre enxergo

Sempre enxergo meus sósias dispersos pelas ruas. São claros esses acasos. Tão claros, que às vezes fico imaginando quem seria o modelo original. Morreu na memória aquele que vi espirrando do outro lado da esquina. Eu também estava gripado naquele dia, mas percebi pela roupa que não se tratava de mim. Nem poderia, porque a semelhança tem lá suas diferenças. Sorte que não tenho a pressa da Terra, que quer sempre resolver tudo em 24 horas: claridade e escuridão. Eu, não! Giro numa velocidade diferente, e mesmo quando fujo do eixo deixo o tempo e os lugares se adequarem a mim. Sou parecido com aquele outro, que observei trocando o pneu do carro, lenta e obsessivamente, enquanto eu o espiava pela janela do ônibus, parado num sinal. Aliás, sou extremamente parecido com ele, tem a minha cara, meu corpo, peso e altura. Até olhar por cima dos óculos ele olhava, quando pegou o parafuso que faltava. Mas acho que ele levou uma reles vantagem sobre mim: achou o parafuso!

quinta-feira, 17 de dezembro de 2009

Auroras atrás

Auroras atrás, Georgete era um rio interminável. Águas inspiravam suas batalhas, fluídas e abundantes, contra as mais corriqueiras situações mesquinhas – como a fila de um banco; ou contra as mais amplas emboscadas do amor – feito o fim do namoro, com insosso Odécio.
Agora Georgete é poça. Tão parada que virou madeira. Boneca russa num improviso sucessivo de georgetes atrás de georgetes. Uma menor do que a outra, para caber dentro de uma mesma Georgete vaga. Pode ter sido pelo uso em série de “todavias”. Adequação de Georgete às situações extremas, nas quais passou a se desculpar pelas inundações que causava. Mas pode não ter sido!
Georgete perdeu os prodígios aos remansos. Estacionou suas águas nessas várzeas sorrateiras da maturidade. Nem bungee jump Georgete pratica mais. Do alto de sua experiência com a vida, Georgete ficou com medo de altura. Cristal do seu próprio espelho, pelos próximos poentes.

quarta-feira, 16 de dezembro de 2009

Chuvinha fina

Chuvinha fina. Ela continua a encher o ar com a sua cortina de pingos, palpitando no tempo uma resignação que afoga as pessoas. De um jeito, parece que oferta aquela fraqueza que sentimos na mão, quando o sono a desprende lentamente de qualquer última coisa que ela ainda esteja agarrando. Do outro jeito, é como se nos tirasse a vontade de andar de bicicleta somente nas decidas, corpo abaixo e vento acima lambendo nossa cara feliz de prazer com o mínimo esforço.
Fingindo horror, somos os raros bichos que têm o que fazer quando a natureza implora para que não façamos nada. Deve ser por causa do raciocínio. Ideias. Deveríamos nos deixar matar por nossas ideias, ao invés de induzir os outros a acompanhá-las. Isso, sim, que é ser assassino. Já teve homem que incutiu nos outros ideias tão mirabolantes, que milhares morreram por causa delas. Melhor que a chuvinha, assim, fina, adube de vez a terra onde pisamos, nossos futuros rumos e caminhos. Olha aqui o Janjão, vira-lata sabido, dorme, como se o chão fosse o céu. É da natureza dele...

terça-feira, 15 de dezembro de 2009

Não exijo justiça

Não exijo justiça da ira. Ainda outro dia vi a velha Filomena atirar o pau no gato que lambeu seu leite, posto à mesa do café. Trajano supôs que o amor que Tais lhe tinha era pouco, e se acabou. Endoidecido que ficou, o coitado, quando viu a noiva conversar com um ex-namorado.
A maior satisfação de quem sabe das coisas sempre foi o silêncio, dizia Jaime, que se pos a berrar com Fátima, assim que a coitada lhe trouxe uma cerveja quente.
Por isso me apresento sempre com a amabilidade que eu gostaria de ter, e que acredito possuir. Acho, até, que transpiro narcisismo com esse meu jeito doce. Injusto é que não o sou, nem serei. Assim, pacífico, sei que espanto a ira.
Quando a indignação quer se apossar de mim, cerro os dentes, aperto com força meus dez dedos às mãos fechadas e costumo chutar o primeiro objeto inanimado que me aparece à frente. Tenho consciência: justiça só vale para os seres vivos.

segunda-feira, 14 de dezembro de 2009

Humanos direitos

Humanos direitos. Era assim, que o sargento Sandoval, definia os “bons”. Com um contorcido de sorriso amigável, interrogava os “suspeitos”, postado diante deles como a encarnação do demônio. Tomado por um sentimento que exige decisões rápidas e não admite escrúpulos morais, julgava os integrantes da fila, que mandava formar durante a blitz na favela, como se jogasse um punhado de sal no doce de leite da vida. Esse vai, aquele fica. Decidia, sectário.
Errou inclemente ao indicar Carlão Bala à fila dos que iam. Ir, significava o mal, para os maus. Bala era o próprio bem, entre os bons e maus, apesar do codinome dúbio. O crioulo forte, recebeu o apelido por sua fé em Cosme e Damião, que o levava à farta distribuição de doces entre os meninos da favela. Bala comeu o doce que o diabo salgou. Voltou à vida na vila meses depois, baleado e entristecido. No dia dos santos de sua devoção, esperou horas no distrito policial até a chegada do sargento Sandoval. Dirigiu-se a ele com seis balas de coco, e lhe entregou envolto em amabilidades. “Você não teria direito a isso, humano, mas espero que elas sirvam para adoçar sua chibata retórica equivocada”. Sandoval não abriu a boca. Foi procurar um dicionário, para saber se punia ou não o humano errado.

domingo, 13 de dezembro de 2009

Foi a maneira

- Foi a maneira que Deus encontrou para nos colocar no mundo... A pele em contato com o ar. O despojamento de todos os bens materiais, como forma suprema de reencontro com a natureza em sua essência. A coragem nos resta para nos desapossarmos. Privação de todos os contornos criados pelo homem para iludir o próprio homem. No fundo, penso também que é o abandono da vaidade, do pouco duradouro, do ilusório. O fim do juízo baseado nas aparências, no orgulho, na presunção. Nenhuma presunção...
O delegado Tonião Barreto baixou os óculos, e por cima das hastes superiores olhou fixo para o cidadão que falava sem parar, coberto apenas por uma toalha, que lhe estampava sobre as costas o personagem Piu-piu:
- Olha aqui, ô bicho doido. Você pode dizer o que quiser, aí com seus argumentos, mas da próxima vez que andar pelado pelo calçadão central da cidade vou enquadrar por atentado ao pudor. Tá entendido?

sábado, 12 de dezembro de 2009

Era um entusiasmado

Era um entusiasmado com as evoluções de sua cidade. A pequena Pau de Fora, no sertão guarani, expressava o nada à vista dos visitantes, mas para Jasmino, um dos primeiros moradores, era a metrópole dos sonhos. Fincou aos calos na mão e língua de fora a primeira cruz, no local onde profetizava a primeira igreja. Com uma velha carroça buscou os descartados paralelepípedos da cidade vizinha, para calçar a rua central de Pau de Fora. No barro e no adobe construiu o que chamava o primeiro Pronto Socorro, sob a direção de Dona Clara, benzedeira renomada.
Os anos se passaram, a população de Pau de Fora crescia à escala decimal. O amor de Jasmino pelo lugar, no entanto, era cada vez mais arrebatador. Fez uma ponte, onde não havia rio. Ergueu um morro, para instalar um Cristo Redentor. Do buraco, fez a piscina pública. Contam os últimos habitantes que Jasmino só superou suas façanhas empreendedoras na inauguração do cemitério que, segundo ele: seria composto por vários túmulos de mármore branco. Na manhã daquele dia, Jasmino se suicidou na porta da necrópole. O cadáver tinha nas mãos um bloco de flores, esculpidas em alvo mármore.

sexta-feira, 11 de dezembro de 2009

Dado aos afazeres

Dado aos afazeres miúdos, Febrônio impressionou a plebe quando apareceu de seda púrpura para consertar o banco do jardim da praça. Reluzia, no sol do meio-dia. Foi talvez essa atenção que chamou a si, empavonado, a causa de sua condenação.
Naquela cidade, há tempos, sumia meninos. Primeiro foi Carlinhos, no esplendor dos doze anos. Veio a seguir Valdir, já quase à beira dos quatorze. Pedro Vaz fizera onze. E o pobre Juarez não tinha mais do que dez, quando seu corpo foi encontrado, com lamentáveis marcas de destruição moral. A lenda urbana apontava um monstro rubro, que brilhava como seda à luz, aos olhos de testemunhas vagas e incidentais.
O faz-tudo Febrônio era solitário. Um contratado eventual para dar jeito nos vulgares problemas elétricos, hidráulicos ou de qualquer espécie na casa das pessoas ou nas coisas públicas. Quando saia de casa tinha, antes do gesto, um chamado de alguém. Mas gostava de conversar com meninos, o que só pela seda a cidade percebeu.

quinta-feira, 10 de dezembro de 2009

Bruxuleava risos

Bruxuleava risos curtos, quase apagados, para a patroa histriônica que lhe contava façanhas da última viagem à Europa. Claribel era tímida. A patroa, exuberante. Ouvir as versões eloqüentes daquela mulher que falava nos luxos das grifes, castelos, príncipes e coisas do velho mundo era, para Claribel, como escutar contos de fadas com enredos inimagináveis. Como se, ipê roxo no alto do morro, ouvisse histórias de uma arraia marinha.
Bastava um casual encontro na cozinha, na sala ou na varanda, para que a dona da casa derramasse um palavrório sem fim, que invariavelmente terminava nos preços em dólar, euros ou libras, dos vinhos que a mulher bebera, dos pratos exóticos que comera ou das passagens dos barcos que navegara. Claribel não cambiava aquilo. Para os parcos passes dos ônibus periféricos que apanhava, para chegar ao trabalho, sempre precisou implorar o dinheiro àquela patroa. Mas ouvia as falas da fartura. Fazia parte do serviço, pensava, calada.
O melhor áudio da vida Claribel deixava para as tardes de domingo, quando Dorival, mecânico honrado, seu namorado, sussurrava-lhe baixinho no ouvido: “um dia vamos nos mudar dessa cidade de loucos, minha Belzinha”.

quarta-feira, 9 de dezembro de 2009

Xinxim só sem dendê

Xinxim só sem dendê. Hot-dog sem salsicha. Nenhum fubá no angu. Seu desejo pelo inexistente jamais lhe permitiu lamber os beiços bestiais. Fabrício era fecundo na imaginação torpe, mas, por desconfigurar o óbvio, queria o amor de Adalgisa. Sestrosa e sagaz, a mulata era do dendê, da salsicha e do fubá. Quando focou Fabrício soube de estalo que, ali, não haveria tempero para as carnes. Nem trela lhe deu, para que não a culpassem depois pelo fracasso do rapaz, querido pelas tias e por todos que mandavam naquela casa arcaica.
A moça continuou solene a faxina sem fim, até a repulsa... Fabrício a tomou por trás, feito a sem-vergonhice que Godô, o poodle solitário da casa, tinha o hábito de fazer com as pernas das visitas. Fingindo gostar daquilo, a mulata não mudou as regras do jogo. Virou-se como uma loba e lambeu o tarado do queixo aos olhos. Babou-lhe no nariz e chupou-lhe a orelha esquerda. Assustado, o rapaz recuou. E meio chorando, meio esbravejando, soluçou a advertência: “sexo só sem baba”.

terça-feira, 8 de dezembro de 2009

Vô Júlio nunca

Vô Júlio nunca mais voltou. Fanfarrão e sempre de óculos escuros, tinha um ar de cafajeste. Toda família observava... ele até fumava. Contam que veio de Portugal para o Brasil trazendo apenas os quatro filhos e a mulher, mais nada. Contratado para a lavoura, nunca pegou na enxada. Abriu logo um armazém de secos e molhados, para vender bacalhau e tremoços aos compatriotas, quase expatriados. Somou, mas nunca dividiu. Vinha às vezes visitar a filha, já casada com outro português, já com quatro filhos, já com netos, bisnetos de vô Júlio, como eu. Outros moravam longe. Numa tarde de domingo, como se fosse ao armazém fazer alguma lida, desapareceu. Ninguém nunca soube se por ar, por terra ou por mar. Velho mar, que vô Júlio tanto nostalgiava. Vai ver fez a história ao contrário. Foi ganhar a vida em Portugal onde, contavam as tias, aqui enraivecidas, tinha deixado uma outra família.
Dizem que as histórias de quase todos os imigrantes são parecidas. Podem ser, mas só da minha o vô Júlio fez parte. As outras estão vagando por aí, sabe Deus onde...

segunda-feira, 7 de dezembro de 2009

Era de cristal

Era de cristal o coração de Katherine, mas parecia de diamante. Não que fosse uma jóia, e até quebrava, mas Claudnei nunca supôs que seria por ele. Desligado feito poeta em pregão da bolsa de valores, o rapaz contava confidências à coitada. Dizia de sua paixão por Daiane, de seu caso com Karolaine, sua vontade doida de brincar com Jakelline. Ela ouvia e guardava. Depois chorava, escondida.
Tanto escutou, tanto pranteou, que deu na telha de Kath dar um basta à vida besta. Nem tinha terminado a faxina da sala do doutor, quando pulou do décimo andar do escritório. Colocou antes, no correio, uma cartinha a ele, onde contou tudo, desde o dia em que ela chegara do interior e o vira pela primeira vez. Guardou a lembrança na memória da esperança: primeira figurinha de um álbum que nunca conseguiu preencher. Claudnei nunca entendera nada de corações de mulheres. Ainda nessa hora, imaginou que Katherine promovera a cena derradeira apenas para, como dizer... sacaneá-lo.

domingo, 6 de dezembro de 2009

...outrossim, levaremos

...outrossim, levaremos também dois perus recheados. É bem sabido que a Jandira, prima lá da praia, engordou como uma condenada. Disse-me o tio Toninho que a inútil começou a dar para o namorado, aquele japonês vesgo, com cara de quem não tem olhos pra nada. É bem sabido que o tio Toninho (a quem, penso, você deveria destinar quatro litros de cachaça, porque o infeliz anda bebendo pela família toda e dando baixarias como nunca), às vezes, destila lá seus venenos.
O primo Waldir incumbiu-se de levar os aperitivos mais caros. Ele pode, né? Anda metido com a política na cidadezinha dele. Não quero dizer nada, mas você viu o carrão que ele comprou? Peça, portanto, apenas àquela degenerada da sua irmã que ao menos faça um doce, já que nunca fez nada na vida.
Bem, na esperança de que esse será mais um Natal inesquecível de nossa família, despeço-me, cordialmente. Até o dia 24 de dezembro.

sábado, 5 de dezembro de 2009

Menos por fraqueza

Menos por fraqueza do que pela convicção de que um homem que vence na vida é capaz de saber mentir, Orlandivo mentia, sempre e em toda a situação. Era chamado pelos mais cultos de mitômano, mas procurava sempre conviver com pessoas socialmente inferiores, cujo poder de detecção da falsidade de suas histórias limitava-se a uma desconfiança crédula. Metido às posturas irrepreensíveis, contou a um que certa vez, na Inglaterra, fora chamado pela Rainha para dar jeito nos modos de um dos príncipes-netos. Com meia dúzia de cascudões e castigos, como o de colocá-lo de joelhos nos grãos de milho, ensinou o loirinho com quantos paus se faz uma carruagem. “E o moleque passou até a pedir benção pra avó”, concluiu vitorioso. Quem você acha que é chamado para corrigir os times que vão mal nos campeonatos? Perguntava aos distraídos, e logo se apresentava como a solução.
Perdeu a pose no clube, quando João Trinca, cansado de suas fantasias mirabolantes, lascou na roda uma máxima de canto de boca: “Olha, Orlandivo, outro dia Deus me chamou para consertar o Diabo e eu não dei conta, não. Se Ele te procurar, pode dizer que é meu amigo!”.

sexta-feira, 4 de dezembro de 2009

Orientado era o que era



Orientado era o que era. E por nunca se perder, decidiu ganhar a vida como piloto de rally. Estudou mecânica, arrumou o velho Opala e com o dinheiro acumulado dos últimos cinco décimos-terceiros comprou um computador de bordo. Não era lá muito crédulo na perícia de Alice, sua mulher, de quem reclamava das faltas ou dos excessos, mas era ela quem estava à mão. Pilotaria o Opala, enquanto ele seria o navegador.
Largaram, com um intervalo de dois minutos do carro anterior, e mantiveram a regularidade, similar àquela que mantinham no casamento, consumido pelos muitos quilômetros e baixa velocidade. Passaram poças, trilhas, buracos e crateras. No limite da glória, Alice o beijou, “meu navegador”, disse dengosa. O resultado veio logo: primeiro lugar, na estréia. Sorte de principiante, intimidade confirmada, meses de luta para o merecimento dos dez mil reais. Foram comemorar no Bar do Pulo, beberam e pularam. Na saída, a fatalidade: o carro deu de frente com uma carreta carregada de frangos para o abatedouro. Ele morreu na hora. Alice sobreviveu, capenga e desorientada. Jamais soube onde foi parar o dinheiro do prêmio.

quinta-feira, 3 de dezembro de 2009

Dado o espaço

Dado o espaço disponível entre as pernas, pela falta de virilidade ética, guardou na cueca a bolada de dinheiro que recebeu do governador para dizer “sim”, quando sim, e “não”, se não, de acordo com a vontade do freguês. Sentiu um comichão com a própria importância, e saiu do palácio sorrindo para os seguranças e faxineiras. Acreditar nas várias possibilidades de ganho simultâneo, nas verdades que criava e na impunidade nacional, sempre facilitaram-lhe o uso da mentira.
Passou na revenda e levou um carro zero à mulher. Da joalheira, comprou um pequeno colar para a amante. Mas foi no açougue que fez a festa: esnobando farturas para o churrasco com os comparsas. Só não imaginava que Dorival, o braço-direito, resolvesse ceder a mão para o cumprimento dos adversários, e as meias para armazenar os mimos financeiros da contra-informação.
À polícia, que descobriu a bandalheira e colocou tudo na mídia, justificou-se convicto: “tenho uma conta no açougue, doutor. Estou devendo, inclusive, oito peças de picanha!”.

quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

Pousou manso

Pousou manso o rosto cheio de espinhas nos cabelos de Alma, como se dormisse dentro deles. Não existe contentamento sem proibições, pensou sereno, enquanto tentava inutilmente afastar as barras da grade que os separavam. Conhecera Alma no dia de visita, quando já cumpria a pena por estupro seguido de morte há três anos.
Era metalúrgico, de ombros largos, cabelo semelhante ao pelo das ovelhas, aloirados. Não se lembrava bem se, no dia do crime, atacara a moça com uma faca ou pedaço de madeira. Sabe que bebera um café preto e três cachaças, pagou e saiu da birosca, quando voltava da fábrica. Então um homem sério iria aceitar zombaria de cachorras-do-funk? Depois, se lembrava de uma sinistra calmaria. O teto da casa, idêntica a tantas, naquele conjunto habitacional girava único. A noite, estranhamente lisa e sem ruído, se quebrou com a porta, na ponta do pé de bota do policial nervoso. Levaram-no, perigoso, sem nunca ter ofendido ninguém.
Contou a Alma que, já rapazinho, quebrara o dedo do patrão numa desavença, o resto, disse-lhe várias vezes, é passado.

terça-feira, 1 de dezembro de 2009

Com a nitidez

Com a nitidez de um dia pálido, depois do Sol se pôr, Gonçalo viu Claudomira de mãos dadas com Germano. Imaginou que aquilo era coisa do Diabo, e que Deus, para mostrar ao seu concorrente do que é capaz, foi quem o colocou passando naquela rua, naquela hora, para ver a amada entrelaçada ao rival. Orou até três: pai, filho e espírito santo. Contou até mil, para que passasse o impacto passional, em nome da sua fé inabalável. Sabia-se um homem dividido em dois homens, contudo sem deduzir se transformava-se em um só à noite ou pela manhã. Mais tarde, contou ao pastor a cena que vira e, para o mal de seu pecados, viu que o religioso sorriu dissimulado, bem no cantinho esquerdo dos lábios. Lábios que em nome de tanto Deus repetiu o perdão, no momento pareciam condenar-lhe a “corno dos infernos”. Gonçalo baixou a cabeça e saiu calado. Ideias irascíveis não combinam com compaixão e fé, bem raciocinou. Pensou nas juras de Claudomira, na falsidade de Germano e na maliciosa displicência do pastor. Com seis balas no tambor do velho 38, guardado sobre o guarda-comida desde a sua conversão, professou a velha fé. E distribuiu, irmã e eqüitativamente duas balas para o cérebro de cada um.

segunda-feira, 30 de novembro de 2009

Verve musical

Verve musical... verve musical... se assobiasse o “Parabéns” ela era capaz de desafinar! Mas insistia em se apresentar como flautista. Já ouviu? Coitados do Altamiro Carrilho, do Paul Horn, Jean-Pierre Rampal, James Galway, Alain Mariondo, Mauro Senise, Pixinguinha, Celso Woltzenlogel, Danilo Caymmi... Se ouvissem aquilo mudariam de instrumento, para a gaita de fole. Talvez Hamelin, que é inventado, pudesse se equiparar a ela, como a própria se inventou.
Convidou a turma para ir a casa dela assistir seu concerto. Carecia conserto. Não que se rejeite um convite, mas ouvido também tem limite. Isso não se faz, Arnesto. Pois não é que a bruxa lascou “Brasileirinho”? Foi a própria representação do povo no diminutivo: pobre, capenga e tropeçado. No fundo o que deu foi uma raiva pândega. Só rindo da ousadia! À boca pequena, quase soprado, um olhava para o outro e pensava num lugar apropriado para ela enfiar a flauta, e bem que poderia ser na transversal, pra coisa saber que com música não se brinca!

domingo, 29 de novembro de 2009

Conto vagões

Conto vagões de trem desde criança. Cada comboio que passa é uma aritmética doente, feito uma felicidade com limite. Também, acho que não existe felicidade sem limite. Vou seguindo os forçosos caminhos lógicos: um, dois, três, até o último. Os trens cresceram com as cargas. De gente, eram menores. Agora, além de enormes, parecem estátuas carentes de arte, passando em série. Nenhum aceno do vagão cinco ou um gracejo do vagão vinte e dois. Só aquele brilho outonal, empoeirado pela indiferença e sem conceito sobre si mesmo. Diabo de um rio sem peixe, serpente desprovida de veneno. Mas até que não vem o fim não saio dessa cadeira. Não paro os números pela metade...
Nesse meu aniversário de oitenta anos deram-me uma locomotiva de brinquedo. Vai ver imaginam que eu goste de trem. Odeio! Conto todos porque sempre pensei em explodir um deles pela metade, mas nunca cheguei a um número absoluto que fosse a metade. Daquele, bem no meio. Eles mudam de quantidade. Deve ser para atormentar minhas contas. Safados. Na dúvida, mantenho essas dinamites no guarda-roupa há quarenta anos. Se não errei até agora, espero mais um pouco. Quem sabe padronizam, para o meu prazer.

sábado, 28 de novembro de 2009

Quando perguntavam

Quando perguntavam a Alexandre “o que é que você tem feito?” ele era enfático: nada! A autenticidade às vezes indignava o interlocutor, mas este deveria se dar por satisfeito, porque na maioria das vezes em que lhe faziam tais perguntas, Alexandre simplesmente continuava a olhar o céu ou a contar acerolas de uma árvore carregada da fruta que plantaram no fundo da casa onde morava, e não dizia coisa alguma.
Seguia a orientação para luz que têm as plantas. Falava em “perda de tempo” para quem insistia em “ganhar o tempo” com a mesma desfaçatez com que os cachorros fazem sexo, quando encontram uma cadela no cio. Respirava anônimo. Soletrava pensamentos. Murmurava pausas. A letargia da existência era para ele a própria essência de existir. Mas percebeu a ironia de Orlando, quando este o apelidou de “Nobody”! Foi com um gemido de pesar que olhou para o ex-amigo. Um descontentamento incidental conseguiu, enfim, roubar-lhe a atenção, e com a vagueza da distância entre um pingo e outro de uma garoa, levantou os dois ombros simultaneamente, como se concluísse: “e daí?”.

sexta-feira, 27 de novembro de 2009

Hora do lanche

Hora do lanche. Gorete deixou a escrivaninha sem a pressa dos astros. Contemplou, de pé, o último arquivo do computador e o salvou. Olhou para os papéis esparramados sobre a mesa e endireitou-lhes as pontas insubmissas. Da memória, buscou as cartas, traduções, ofícios e recados que realizou com a competência cega de secretária executiva bilíngüe. Ajeitou a blusa em busca da decência, a saia, no perfil da forma, o relógio de pulso e as discretas pulseiras, nos padrões da estética profissional que cumpria à risca.
Ao sair da sala olhou para trás. Vaso com flores frescas sobre o aparador, tapete em linha exata à escrivaninha, as pequenas almofadas arrumadas à esquerda do sofá comercial, portas internas fechadas. Tudo na mais perfeita ordem, pautada pelo rigor da empresa. Apertou o botão do elevador e olhou para o botão de chamada, como se visse o infinito. Desceu estática com dois outros homens que já se encontravam no elevador. Foi ao estacionamento e entrou em seu carro. Tirou do porta-luvas o frasco amarelo, e com a água da garrafinha que estava no console tomou dois, quatro, seis, oito, doze comprimidos. Ajeitou-se no banco e esperou pelo resultado. Enfim, sairia da rotina.

quinta-feira, 26 de novembro de 2009

Profética

Profética, a morfética! É abrir a boca e lá vem problema. Quando diz que vai chover, pode esperar um temporal. Se reclamar do trânsito, pare, porque a iminência de uma batida é segura. Mas o pior dos vaticínios ela cometeu ainda sob a névoa da manhã, daquele inverno de julho. Quando os primeiros raios solares se preparavam para refletir na vidraça do edifício Nero, ela sentenciou incauta: “nossa, parece que o prédio está pegando fogo!”.
Oito horas depois, durante o resgate do centésimo primeiro corpo daquele incêndio terrível, um bombeiro menos graduado jurou ter ouvido de uma das vítimas, já moribunda, juras de verdades obscuras: “foi uma mulher, foi uma mulher. Ela parecia soltar fogo pelos olhos”. Mas relato perdeu-se na história da tragédia. Ninguém liga para alucinações, palavras mortas ou profecias.

quarta-feira, 25 de novembro de 2009

Impliquei com

Impliquei com a Ágata por causa da sobremesa. Onde já se viu, depois de uma macarrão à bolonhesa servir bolo de chocolate? Ela é assim, voluntariosa. Dia desses cismou que a dobra de minha calça era pra dentro. Passou a roupa assim. Onde já se viu? Acha que eu vou andar de lado? Pior foi no mês passado. Disse que não faria faxina no forro porque não matava lagartixa, bicho bom, que comia aranhas e formigas, sei lá... Queria ver se uma lagartixa pegajosa caísse na cacunda dela. Mandei pulverizar veneno em tudo, só então avisei a Ágata, que chorou de raiva ou dó, não sei também. Manienta, manienta é o que ela é. Quando mando ela ir buscar meu sapato preto traz sempre o par errado. “O senhor tem tantos!”, diz, a doida. E as flores que ela colhe no jardim para decorar a casa? Teimosa. Já falei que não suporto flor em casa. Lembra velório. Depois, fica com aquele cheiro de cemitério amanhecido. Sorte da Ágata que pra mim tudo tá bom. Sou um sujeito sem muita birra ou quizila com a vida, senão ela estava ferrada...

terça-feira, 24 de novembro de 2009

Não era mau

Não era mau, mas tornava difícil para si mesmo ser bom. Com o caráter provisoriamente definitivo, distribuía conselhos a quem não os pedia, dava veredictos a torto e a direito, sentenciava finais de histórias e falava como se toda a sabedoria do mundo lhe tivesse sido conferida, e a mais ninguém. Era, enfim, um chato ortodoxo, desses que não admitem brincadeiras a sua petulância.
Essa espécie de loucura, similar a das virgens que se julgam grávidas, fez de Percival um malquisto notório. Um antipatizado até pelos cachorros do bairro, que ele teimava em colocar para dentro de suas respectivas casas. A ruga de reflexão que carregava entre as suas sobrancelhas, porém, foi desfeita com a visão de Iolanda, a morena-jambo sagaz e sestrosa, que se mudara para lá havia pouco menos de uma semana. Com a leveza de um lutador de sumô, arriscou uns galanteios à moça, que lia sentada num banco da praça: “você deveria passar um protetor solar 30, para sua pele não sair nunca desse tom lindo que tem”. Indignada, a jovem o olhou da testa à ponta do sapato, diagnosticou a figura, e simulou uma conversa com uma amiga íntima: “na página 23 desse livro, a mocinha manda o cara ir à merda”...

segunda-feira, 23 de novembro de 2009

Duplicou a aposta

Duplicou a aposta. Tinha a seriedade de uma criança pidona, que quer ouvir a mesma história pela trigésima vez. Olhou as cartas de esguelha, acendeu um cigarro, baforou. A timidez do adversário lhe parecia falsa, então também tramou um temor negaceado. Triplicou a aposta, insolente feito o gato que, do alto do muro, observa o cachorro latindo e pulando para tentar alcançá-lo. Coçou o queixo, baixou os olhos, disse que não queria outra carta. Ensaiou o pedido de outra dose de uísque, voltou atrás. Um copo com água, pediu seco. Abriu o jogo. Full house: uma trinca de dez e um par de damas. O adversário sorveu os lábios, irônico. Abriu o quatro de paus, o cinco de paus, o seis de paus, o sete de paus, o oito de paus: straight flush. Esticava a mão às fichas quando recebeu sobre o mindinho o peso de um soco firme, de mão fechada. Enfureceu-se, e já partia para briga, quando o agressor sorriu, com a displicência de uma vingança: “sortudo!”.

domingo, 22 de novembro de 2009

Já tá pensando

- Já tá pensando em besteira! Falou em flor Graciete, ao namoradinho inseguro. Ele coçou a virilha, desajeitado, e respondeu vermelho, evasivo: “Não!”. Ela se riu, com preciosa malícia. Trocaram os desejos pelas mãos, dadas corretinhas, entrelaçadas. Na solitária casa da tia só Michael, o labrador xereta, conferia aquele amor adolescente, abanando rabo e emitindo um monossilábico “au”, a cada selinho do casal.
A urgência impregnava a cobiça. O anseio se fundia aos sussurros. Apetite e aspiração provocavam os hormônios sintonizados. Graciete fez o que pode para poder fazer. O namorado repetiu ensaios de proibições passadas.
Michael ergueu curioso o par de orelhas amarelas. Como se farejasse e festejasse a chegada da dona distante, pôs-se a babar sonoro: au, au, au, au, au, au, au, au, au...

sábado, 21 de novembro de 2009

Os cabelos

Os cabelos da gringa estavam colados no seu antebraço. Leves e claros, feito os dias sem vento. A ignorância de Tobias para aquelas palavras que ela dizia era extremamente divertida e variada. Bem sabia que elas deveriam conter muito veneno para pouco prazer, mas garantiam-lhe um certo quê de importante junto aos seus, pobres guias turísticos daquelas cachoeiras distantes de tudo. Se Deus premedita tudo, e até sabe como alguém irá pecar, não havia motivo para ele pensar em culpa. Percebeu, sim, que a loira era casada com o loiro forte, mas se o marido só pensava em fazer trilhas, porque ele, Tobias, não haveria de trilhar os caminhos da moça? Só não contava com a chegada repentina do gringo, bem no momento em que a gringa estourava uma jabuticaba em sua boca, utilizando a própria boca. Bem que tentou dissimular a maldade que o homem enxergou, mas o braço forte do alemão foi mais ligeiro do que uma possível explicação. Com gosto de sangue e fruta, cuspiu o dente nas pernas da gringa. Voltou ressabiado para o barraco e pediu para Clarinha um pano limpo e uma sopa de aipim com queijo. “Esse trabalho me machuca”, ainda esbravejou, mascando absolutamente nada.

sexta-feira, 20 de novembro de 2009

Então fariam

Então fariam parte da repetição diária dos conselhos. Ventríloquos da seita que pregava a abundância sobre um roto tapete persa. A contribuição dos consulentes seria módica, quase insignificante, mas semanal: às sextas-feiras, das oito da manhã às seis da tarde, com intervalo de hora e meia para o almoço. O ritual era esse. Cada fiel que entrasse ouviria um breve mantra: dois minutos. Abaixaria os ombros e receberia três micro-croques no cocuruto: 9 segundos. Mentalizaria o desejo imediato: 30 segundos. As luzes se apagariam, para o mínimo de visibilidade mútua, e viria o aviso: troque o duvidoso pelo certo: 15 segundos, incluídas as vinhetas de abertura e encerramento. E a libertação: volte para o seu trabalho e produza.
Começaram bem. A fidelização dos fiéis chegava a 87%, o que lhes garantiria uma retirada de 3% sobre a receita dos donativos. Que passaria a 4%, caso atingissem a marca dos 90% de retorno. Mas, tanta metamorfose, os deixaram irreconhecíveis. Quando alardearam que eram, já, o próprio Deus, o pastor-gerente os demitiu, por justa causa.

quinta-feira, 19 de novembro de 2009

Prosaico e separado

Prosaico e separado de seu trajeto no dia, Abílio abriu o porta-malas do velho monza e meteu lá duas cestas de piquenique, feitas de palha trançada e cobertas por pano xadrez. Bateu a tampa desconectado da modorra de uma vida de minúcias. Acelerou, e só estacionou sua alegria na casa de Flávia, colega no cartório, que num dia de carência fora guardiã de sua vida íntima, e testemunha auditiva de suas lamúrias contra os carimbos tacanhos, os obsoletos selos e as falidas firmas reconhecidas. Sobre o acolchoado do banco do carro tocaram-se as mãos, dois dedinhos de prosa e olhares cúmplices, que enxergavam a cena daquilo que acontecia com eles mesmos.
Na margem do pequeno rio próximo à cidade, sob a copa da figueira, trocaram juras eternas de ódio à profissão de escriturários. A ânsia tátil, no entanto, não passou das baguetes com patê de atum, retiradas delicadamente das cestas, debaixo do pano xadrez.

quarta-feira, 18 de novembro de 2009

Dançar flamenco

Dançar flamenco era o forte de Carmen. Claro, com um nome desses. O detalhe é que ela era japonesa. A mãe veio grávida, de Kanagawa para o Brasil, e foi no cartório de São José do Rio Preto que o pai, mal e porcamente, soletrou o nome da criança recém-nascida: Khar Mi Yamagushi. Saiu feliz com a certidão de nascimento de sua guria e um papel que também não entendia, mas onde se podia ler: Carmen Irmã Dulce.
Foi no colégio do bairro que a menina conheceu a imigrante espanhola Dona Guilhermina, teimosa professora, que insistia em manter as “raízes hibéricas” dos alunos. A japonesinha logo começou a ensinar seus pais a falarem a suposta língua nativa do Brasil: “holla”, “muy bien”, “a mi me gusta” e outras expressões corriqueiras. Mas gostava mesmo era de dançar, e não tardou em aprender sapateado ao som das castanholas. Destaque na pequena escola rural. Destaque na média escola municipal. Destaque na grande escola estadual, Carmen foi convidada a dançar para o presidente do país. Num gesto magnânimo, o poderoso político foi cumprimentar os pais da bailarina, após o espetáculo. O Senhor Yamagushi, depois de três genuflexões e de sorrir sem parar, respondeu-lhe aos cumprimentos, sem pensar muito: “muchas gracias!”.

terça-feira, 17 de novembro de 2009

Os lábios erguiam

Os lábios erguiam e baixavam, como dois agressores da barba. Era dado às coisas do esoterismo doméstico. Lia a vida na borra do café; previa mudanças pelo caminho das formigas; garfo caído era visita de homem, se garfinho de sobremesa, de menino. Até que a faca de carne foi ao chão, num descuido imperdoável. Procurados com atenção, os olhos dele podiam ser vistos como duas luas flutuando numa atmosfera insegura. E agora? Fez o riscado em cruz com a própria faca, sobre o chão onde a apanhou. Via-se claro o seu desconforto, como a visão que temos de um relógio parado. Disse qualquer coisa de si para si mesmo. Um esconjuro, um pedido de calma ou uma reza, sabe-se lá. Começou a mover-se lentamente, com a faca ainda em punho, rumo a pia da cozinha. Sua expressão era de a humanidade toda era um enorme saco de demônios, cuja boca deveria estar sempre bem amarrada, para se evitar que ela o atacasse. Lavou o metal, enxugou-o com um pano branco e o guardou na gaveta. Depois virou-se, e sorriu, profetizando a salvação: “calma, gente, o equilíbrio foi retomado!”. Caminhou sereno rumo ao quintal, e teria, quem sabe, até assobiado de felicidade se, no caminho, não tivesse pisado no rabo de uma lagartixa esbranquiçada... Novos presságios!

segunda-feira, 16 de novembro de 2009

Vida cantora

Vida cantora. A introdução no dia de hoje é em si, a última nota da escala musical. Vou confidenciar o motivo: é que hoje é o dia do meu suicídio. Quer vir me cumprimentar, aproveite. Parto ali pelas oito da noite, mas até lá levarei um dia normal. Vida cantora, legítima, com seus sambas, serestas, tangos e chorinhos. Você tem dó? Então vamos lá. Dê um dó pra começar a escala. “Quando eu nasci veio um anjo safado, um chato de um querubim, que decretou que eu estava predestinado a ser errado assim”. Viu? Sou capaz de cantar no dia agendado para a minha morte. Quer passar a ré? “Cheio dos risos falsos, da alegria, eu andei cantando a minha fantasia, entre as palmas febris e os corações”. Sim, cometi pecados aos acasos, tendo a felicidade como justificativa. Agora falta pouco e vai ser rápido. Amanhã você comenta com todos: o cara cantou, cantou e morreu. Pode até dizer que eu era meio doente, afinal estarei morto e tudo se encaixará. Boa música não extrapola na intensidade ou timbre, no ritmo, melodia ou harmonia. Vida cantora, não desafina. Termina, quando o som da vez é o do silêncio.

domingo, 15 de novembro de 2009

O silêncio vincava

O silêncio vincava na vila dormida. De repente, o ar vociferou um uivo de bicho grande. Lobo, lince, onça ou... “Lobisomem”, gritou um, do quarto de fundos da casa dos Silveira. Pra quê! “Vam’lá pegá o bicho”, veio no vento uma convocação nervosa, sabe-se lá, então, se dos Silva ou dos Nogueira? Uma veneziana acordava com uma cabeça perturbada. Outra janela espreguiçava desentendida, com duas mãos coçando os olhos. Ploc-plocs de passos inquietos das gentes valentes começaram a descompassar silvos e roncos. A vila virou um luzeiro, num pega pra capar desajustado. “Foi por ali?”, “cerca a esquina”, “vou por aqui, mais o Tonho”. No escuro de cada um, uma vontade louca de não topar com o bicho. Da boca pra fora uma aparente coragem que vinha de dentro. “Tenho família, né Carlão? Diz-que esses monstros matam assim, ó!”, disse Lézo. Carlos Gotardo não disse nada. “Tá no telhado!”, apontou Luquinha. “No telhado é chaminé, seu leso”, alguém respondeu.
Tico-Louco ficava se rindo, com os olhos até vermelhos, da arte prazerosa. Amanhã à noite, na mesma horinha das duas e meia, arremedaria um estouro de boiada, um incêndio, essas coisas de medo. Depois pensaria nisso.

sábado, 14 de novembro de 2009

Conforto? Gosto

Conforto? Gosto. Não sou lá dos que o tem, mas tento. Carro que anda, casa onde não chove dentro, comida quase sempre quente. Vício? Não. Fumo quando bebo umas cachaças, só aos sábados. Não todos. Luxo? Não. Roupa dura bastante, até acabar. Acho que foi isso. Isabela era luxuosa. Lia Capricho e livros do Paulo Coelho. Adorava colecionar sapatos. Tinha um monte de pares, a quadrúpede. Enjoou do arroz, riu do fusca e disse que preferia o cheiro de uísque, a oposta. Nada meu era bom. Avisei uma, duas, três, sei lá quantas vezes. Primeiro bati nos olhos, com as pontinhas dos saltos finos daquele tamanco dourado, indecente. Com aquela bota de couro vermelho, dei firma nos dentes.
Cega e banguela ela perdeu o luxo. Tá ali, no sofá da sala, quietinha, a besta.

sexta-feira, 13 de novembro de 2009

Disfarçando a encabulação

Disfarçando a encabulação e os tiques nervosos, Leonardo demonstrava-se, sempre, senhor da situação. No bar, entre amigos, contava a história de Janaína, sua ex-namorada, cobiçada por todos os presentes pelas curvas e simpatia avantajadas. Vaidoso, era daqueles que apreciam martirizar o ouvinte, com pausas de suspense. Como na parte da prosa em que revelava a primeira vez que a tinha beijado. “Estávamos na Ilha do Mel, no Paraná, navegando em uma escuna vermelha. Então ela se aproximou, de biquíni minúsculo e sorriso fácil. Eu fingi que não era comigo. Vocês sabem... aquele pedaço. No vaivém das ondas ela sentiu um certo enjôo. Fui consolá-la...”. E eis a pausa estratégica. Tomou um gole de cerveja, pegou um bolinho de aipim, mordeu, limpou calmamente a boca com um guardanapo, apanhou o copo de cerveja novamente e, quando foi entornar outro gole, Basílio que, como os demais, sempre o considerou um desagradável, soltou forte um berro bêbado: - Desembucha logo, ô Leo! Eu bem desconfiava que o que houve entre você e ela foi um vomitado à primeira vista...

quinta-feira, 12 de novembro de 2009

Otávia, onde você

Otávia, onde você estava? Eu tava no sonho, uai. E você pensa que eu sou poeta onírico? Oní... o que? Deixa pra lá, e diga o que você fazia sozinha no sonho? Quem disse que eu estava sozinha? Você disse que estava... No sonho, eu disse. Estava com quem? Com o Ari da Padaria, comendo sonhos. Então o que você comia era o sonho? Os sonhos, porque tinha os de goiabada e os de creme. E o que o Ari te dizia? Comia, uai. Como? Ele comia, não dizia, já viu o Ari falar de boca cheia? Por que, então, você sonhou com o Ari? Porque ele vende sonhos, justamente os sonhos que eu comia. É... mas poderia ter sido com a Marli, a moça da padaria? Foi com o Ari, fazer o quê? Sei... e que gosto que tinha esse seu sonho? Já disse, creme e goiabada. Nunca vi mulher no sonho comer sonhos! Claro, você não é um poeta oní... o que mesmo?