quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

Bateu a cabeça

Bateu a cabeça no vidro da janela, mas não doeu tanto quanto o amor transformado em conta de plano de saúde, parcelas do sofá e prestações da nova geladeira. Saboreou a dor do galo na testa, como se fosse uma esperança. Tadeu haveria de colocar-lhe compressa de panos quentes. Depois de andar em círculos durante horas pela saleta do apartamento, percebeu que não havia nem uma poltrona quitada para sentar, nem um tapete que pudesse acomodar a poltrona, uma luminária ao lado, capaz de lhe clarear novas leituras, nem a poltrona, enfim. O marido chegou tarde, com ideias distantes e corpo parcialmente presente. Débora tratou logo de apontar-lhe a dor, o inchaço na cabeça, o vazio de “alguma coisa”. Temos que conversar, disse, por fim, reflexiva. E reclamou, sem piedade, da necessidade de uma remodelação da sala.

terça-feira, 28 de fevereiro de 2012

Pirotecnia a toda

Pirotecnia a toda, Procópio Carlos era o possuidor do fogo. Por trás transparecia um fantoche de sombras, ligado por fios a algum manipulador invisível picado por pulgas nas axilas. Visto de frente, era de um brilho agudo, que doía nas vistas não só pelas cores berrantes, mas pelos berros opacos de conteúdos incolores. Combinou imitar Monroe sem vestido branco subindo ao peito, mas com a evidência de um pecado vizinho. Ninguém concordou em morar ao lado. Procópio Carlos tratou então de rever a performance, e faria Klaus com seus deuses em cólera. Para a felicidade atônita da plateia muda, a energia acabou. Procópio Carlos não se transformou sequer num retrato em branco e preto.

segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

Era uma dessas

Era uma dessas árvores tristes, para a qual ninguém olha. Naquela agitação de carros coloridos e gentes gordas, a pobre parecia disfarçar que existia no contraste, como um meio de guardar sua dor num lugar seguro. Com o tronco e galhos quase pretos e a folhagem cinza, testemunhava xingamentos, amores, agressões e pressas. Com os anos, veio a reforma paisagística da avenida. Frondosos ipês, formidáveis flamboyants, tremendas sete-copas, foram, logo, dizimados pelas máquinas, ávidas pela transformação. Por aquela criatura vegetal, passaram retroescavadeiras, roçadeiras, homens armados de enxadas e de foices. A nova avenida ficou reluzente, inflada de asfaltos, garbosa. Só a velha árvore ficou, que hoje se parece com uma feinha tirando o sarro na volúpia progressista dos bonitos.

domingo, 26 de fevereiro de 2012

Esquisita

Esquisita, era que se dizia da mulher de Adalto. Sem antecedentes, é bom esclarecer, mas possuía um espaço-reservado-às-autoridades quase natural. Gostava, porque sim, de fardas, patentes e sujeitos eleitos com votos. Entretinha-se olhando o nascimento das intrigas. Porém, ressalte-se, ninguém nunca a viu lançando tais sementes. Era do tipo rolhada, que nem sombra fazia às luzes ralas dos presentes nas reuniões festivas. Só muito mais tarde descobriu-se, pelo fio de soluço que soltou desavisada, que seu mal se originara na frustração de ver o marido reprovado na escola de cadetes. Bem que sugeriu a ele eleger-se, vereador que fosse, mas queda do homem pela educação acabou por transformá-lo em professor. E ela, nisso...

sábado, 25 de fevereiro de 2012

No quintal úmido

No quintal úmido, as gotas, com um descompasso rítmico de dar dó. De pingo em pingo se equiparavam aos pensamentos de Laurindo, vagantes acima dele, uns depois outros, sem se abranger nem se juntar. Agora, sim, o velho Laurindo, rindo, erguia o boné ao policial que passava e ordenava silêncio, como para dar-lhe a entender que já tinha entendido. Sua vida não estava pra contendas. Até seu polegar caloso soava oco na madeira da mesinha, ao toque manso de uma melodia imaginária. O raio havia caído na casa ao lado. Desmanchara-se em clarões e incêndio para subverter o escuro da noite. O pânico dos vizinhos estrondosos acordou Laurindo, que já sonhava há horas (ou imitava, fingido para si mesmo, os sonhos que um dia sonhou). Aquela chuvinha, que vinha e ia, e ele só espiando o movimento. Mundo louco esse daí.

sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012

Depois de matar

Depois de matar a imagem de Amália, a amada morta que vivia dentro dele, Rodolfo, enfim, se liberou do pretexto para soltar suas fantasias. Diminutas, é bom esclarecer. Afinal, olhar de viés ao V do decote reluzente de Laís não era nenhuma perversão, naquele escritório opaco e opressor. Tampouco apreciar de soslaio as coxas cilíndricas da quadrada dona Deise, secretária do chefe, poderia se enquadrar numa depravação. Certo é que se confessou, e o padre o orientou a procurar uma alma gêmea. No velório de Adalberto, o atropelado, Rodolfo pode observar para além da pena a viúva Belinha. Meses, anos, depois do acontecido, finalmente tomou coragem! Segredou à Belinha uma receita infalível para desvanecer a imagem de Adalberto daquela cara triste. Só não vingou o novo vínculo porque Belinha foi firme. Disse-lhe que jamais olharia para decotes ou coxas, fossem da mulher que fosse.

quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

Ele é cheio

Ele é cheio de pressupostos. Susta o tempo de si próprio, na retórica, e dos outros, na mais pura chatice mesmo, para dizer o óbvio.

Eu? Diria que o entendimento do mundo anda impenitente. Assim... como diria... relapso. Daí a julgar... Diria...

Não disse? Parece olhar dentro de si mesmo e ver um poço sem fundo. Pura persuasão, adorno empolado, sei lá.

Irreconhecível é a melhor palavra! Quando digo que a falta de acesso à compreensão é um fenômeno, digamos... indizível, quero dizer...

quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012

Manejou a presença

Manejou a presença de Diana com tácita distância. Fosse ela à varanda, ele, esquivo, estaria num canto oposto da sala. Santo guerreiro, ele pensou de si próprio, sem tirar o olho dos passos ligeiros da moça. Já nos verdes anos a então garotinha oferecida via nele um pedaço de amor maduro. Agora, adultos, virara caça. Oxalá seu tronco mirrado e magríssimo lhe gerasse asas, e Diana jamais o encontraria planando pelos céus, mas a realidade era ali, na casa do amigo, naquela festa, nos cômodos cada vez mais reduzidos que lhe exigiam manobras e disposições ímpares para os lapsos seguros de fuga. Aquela angústia não duraria o tempo de toda a comemoração. Decidiu encarar a predadora no círculo central da sala. Sem surpresas aparentes, parentes e presentes riram espantados, quando ela lhe lascou um enorme beijo na boca.

terça-feira, 21 de fevereiro de 2012

Arrasou

Arrasou, Kateleine! Você parecia invisível quando bateu o salto na sala e deixou o glutão fazendo graça para os amigos ricos. A filósofa que lhe habita foi esclarecendo logo o que era o bem e o que era o mal. Melhor! Qual é o papel do ser humano nesse mundo. Tipo “quem sou?”, assim, “onde estou?”. Aquele gordo bipolar, bem se viu, não entende nada de filosofia: bico de tucano, carro de marajá e aí? Você foi demais, Kateleine. As peruas escorregaram no caviar, babaram champanhe, mas só deu você. Gostei, amiga. Você não é de entregar a carteirinha pra vigia de condomínio fechado. É de demarcar território no banco do carrão. Ah, Kateleine, como eu te invejo!

segunda-feira, 20 de fevereiro de 2012

Ruína

Ruína, daquelas de lascar, Adélio não amargou. Sofreu cãibras de fome dosada, atrasou o aluguel da bicicleta, varreu migalhas para juntar montinhos de vida. E foi pisando... Servente rala-pescoço, ajudante de coveiro, auxiliar de lixeiro. Pior, disse Nélinha, foi a falta de carapuça que servisse ao tomé que deu no Nelson. Inútil se desculpar, que criado a feijão preto quase podre, que voou por terra ou foi enterrado no ar. Esquisitices adelianas, ela falou, com ar professoral. Um gigantesco monstro é o que ele é, sentenciou. Nelson não tinha mais que aquele mínimo pra passar o mês, e Adélio bem sabia. Acha? Tomar breakfast no hotel? Bréque-féste?

domingo, 19 de fevereiro de 2012

Ali, aleatórios

Ali, aleatórios, gesticularam insultos, e tanto-fazes e culpas-suas. Não cabe às redondezas tentar entender motivos, que devem surgir dos hábitos dela ou dele de destroçarem ideias ou observações: um do outro. Banidos da reflexão e do silêncio ofendem-se mutuamente. Basta um amarelo, para que ela diga azul e ele enxergue vermelho. Não há sustos ou dúvidas, só um sangue superficial e traquina que lhes sobe às cabeças. Tortas hipóteses, argumentos capengas, conclusões inconclusivas. Depois se dirigem à estrita plateia dos amigos. Espirituosos e sorridentes confessam estridentes que vão se casar no mês que vem. Optaram por viver felizes para sempre.

sábado, 18 de fevereiro de 2012

Alugou um

Alugou um sósia para desacatar Marlene. Qualquer pergunta tenderia à compaixão. E odiava suspenses, ainda que pudesse levantar suspeitas. Temeu hesitar perante a docilidade da voz, os trejeitos das madeixas, o suposto dengo, que sem pestanejar ele tanto amou. O destino, depois, que o esperasse. O erro se esbagulharia nas águas passadas, afogado de mágoas, ou perdido nos afazeres muitos daquela Marlene que já não reconhecia. Não contou com a astúcia do cara com sua cara, e se deram caros. Tão emoldurados para a foto que sequer angariaram suspeitas. A todos pareceu que finalmente foram felizes para sempre.

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2012

Perto do próximo

Perto do próximo ponto o senhor pega a curva que dá nos dois morros. Contorna uma, duas, três vezes, assim. Aí, quando sentir que já dá pra descer vai em linha reta. É bom não parar muito tempo, tem umas ondulações, umas saliências, tem até um buraco, que não é grande, que está lá desde que eu me conheço por gente. Passa por ele. Continua. Firme. O senhor vai dar numa leve lombada, bem menor que os dois morros. Ali, em épocas de chuva, já dá pra sentir a umidade. Desce mais um pouquinho. Não precisa perguntar mais nada. Não tem erro. Bom, se acaso tiver algum obstáculo, assim, um lençol ou uma calcinha, está na hora de se livrar deles, né?

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2012

O perfume denso

O perfume denso de manga madura chamava as aves altas. Fora a luz, meio do contra, não me recordava de nada. Renascia, sim, a brisa, que trazia consigo certa dose dolente de esperança esquecida. O resto era novidade. Como poderia se dar esse óbvio novo? A detestável dúvida ouvia longínquos ecos voltando pra casa. Sabiás andando aos pulos, maritacas atacadas, bem-te-vís cegos de fome, tarjando os olhos de brancas visões. Sem estorvo ou interrupções das nuvens, a Lua nasceu às sete e pouco. Cedo pra um lobisomem ansioso, desse que chega bem antes da meia-noite, e fica esperando as horas passarem.

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

O dia nasceu

O dia nasceu sobre algas de um lodo inconstante. Nesse jardim de verão, a chuva faz graça ao Sol e foge, descabida. Os passarinhos mal conseguem completar seus cortejos, para a infelicidade da música que compõem, com seus cantos e trinados picados aos pedaços. Claro que me recuso a soprar no bafômetro. Esses romantismos bilaquianos só podem refletir alguma espécie de porre, e a lei é implacável. Quando a natureza não quer, os pássaros não cruzam.

terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

O intrépido

O intrépido intento levaria a vila à salvação. Carente de gente, o lugar passara pela evasão em massa, depois da propagação do mosquito. Hilário, o dedetizador, fora linchado e enforcado na praça da matriz, horas antes da debandada. Mongo, seu amante, jurou vingança e progresso. “Não necessariamente nessa ordem”, advertiu, plagiando o filme insano. Pôs à venda o lugarejo, depois de anunciar o fim do mal por toda a região. Ignorando a desconfiança, a população voltou, mais pela avareza do que pela certeza. Picando e matando, todos os mosquitos também chegaram ao fim... junto com o povo. Só Mongo sobreviveu, porque não bebeu da água pública, que envenenou.

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012

Todavia te ouvia

Todavia te ouvia. Não que o vidro fosse grosso o suficiente ou temperado com mosaicos capazes de me impedir a visão. Isso, não. Nem havia obstáculos especulares capazes de me confundir quanto ao lado em que você estava. Os muitos objetos talvez me distraíssem, no decorrer do festim, que nem pude identificar se era uma festa particular ou um tiro. Ouvi e não cri. Quando operamos pensamentos recuperamos memórias, mesmo que futuras. Acho foi isso. A sua dor ficou sem efeito, porque confesso que a minorei, esperando cair do céu a paciência do torturador. Foi um consolo quando chegou a anistia e não tive que depor. Não sei o que diria. Agora, nem quero que você compreenda, porque também me autoanistiei. A culpa sempre abre inúmeras possibilidades.

domingo, 12 de fevereiro de 2012

Incessantemente inepto

Incessantemente inepto, Olegário, por bem pouco, não atingiu a perfeição do grotesco. Repetia a estupidez com tal frequência, que tornava irremissíveis as absurdas realidades criadas. “Sofro de mania diagnóstica”, dizia sonso, sempre que tentava justificar sua postura enxerida. Capaz de maldizer defuntos nos velórios, difamar noivas nos casamentos ou profetizar catástrofes aos recém-nascidos, Olegário atingiu o ápice da ostentação da parvoíce quando, aos berros, indagou ao motociclista moribundo, estirado no asfalto, imediatamente após o acidente, se “não tinha visto que o sinal estava vermelho”.

sábado, 11 de fevereiro de 2012

Imensa exclamação

Imensa exclamação. Não viam Antonia assim apenas pelo seu pescoço mondigliano, biótipo varapau e certo desajeito, curvado e curioso, no andar. Parecia-se com um veemente devaneio, acrescido de um ou outro lapso, tropeço ou insegurança inata, e o quadro que compunha era, não raramente, atribuído ao de um estorvo. Pois foi Antonia, Tônia, Toniquete ou Totonhão quem impediu a morte do cachorro Rosado, coitado. Esquecido no sótão quando os donos fugiram às pressas dos agressivos credores, Rosado já nem gania, depois do quinto dia. Era um sutil murmúrio, que alguns ouviam, mas ninguém via. Exceto... sim, Antonia. Só precisou, curiosa, subir na mureta tosca que dava para a calçada. Seus quase dois metros lhe puseram olho a olho com o pobre bicho, desfalecido, do lado de dentro da janela. A fama de salvadora, o esquecimento às gozações que lhe faziam e o ar heroico, acompanharam Antonia, ora feliz... durante os dois dias seguintes.

sexta-feira, 10 de fevereiro de 2012

Num lugar

Num lugar do morro Mancha Negra, cuja viela não quero lembrar, vivia, faz pouco tempo, um avião do tráfico, dos de FAL, Uzi e três-oitão, fusca velho e colete a prova de balas obsoletas.
De comer, mais espetinhos de vaca que de carneiro, além da gororoba daquilo que restava disto; aos sábados, feijoada e cachaça barata. Do que sobrava da grana, drogas, uma camiseta ou outra, Nike paraguaia, e tênis “de molas”.
Tinha no barraco uma avó que passava dos quarenta, três ou quatro esposas que não chegam aos quinze e um moleque, para os pequenos bicos.
Quando se aventurou à gerência, tomou dois tecos na cara. E apareceu coberto com melhor lençol moinhos santista, que genitora guardava, caso se tornasse um “cavalheiro”...

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2012

Fina flor

Fina flor do Jardim Roseiral, Hortênsia era toda perfume. Vida espinhosa, apesar da onda de milagres que lhe floresciam, tanto no trabalho colorido de arranjadora de buquês, quanto no amor dos filhos ainda em botão. Contou que fez bem em deixar Germano, o jardineiro infiel. Fez melhor ao podar os cactos de seus contatos. Adubou de vez, quando tratou de replantar sementes naquele bairro, terra nova para doar e receber banhos de abundância. Aclimatava o sustento com brotos de simpatia, regados logo cedo, quando o Sol nascia. E feito estaca de responsabilidades múltiplas, fertilizava ações e germinava alegrias. Irrigava as mutações com gotículas de um otimismo visceral. Vivia, assim, a polinização do bem, enquanto dádiva de solo fértil. Não havia, ali, quem não se encantasse com a cor e com a presença de Hortênsia. Flor, se parecia com um imenso jardim.

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2012

Cruzando as manicuradas

Cruzando as manicuradas, aneladas e volumosas mãos sobre a cintura Mafalda, aos berros, transparecia um dragão em chamas, avermelhada de boa saúde. Rugia ante a fuga do “medíocre do Guilherme”, que se recusara a abrigá-la no leito dos sentimentos mais íntimos, com as aquelas frases de circunstância mal ensaiadas, consolações ocas e gestos de negligentes memórias. Mafalda perdera o apetite para os desdéns. Sua fome não engoliria acasos, no cio da iminente transformação em fúria. Guilherme bem que se quis doar ao confuso sacrifício das carícias sonsas, tremeu como uma gota d’água sobre o pelo de um cão em fuga, até sentir o alho no ar. Mafalda comera quilos de quibe carregado, e o pobre foi incapaz de transportar aquele frete.

terça-feira, 7 de fevereiro de 2012

Em paralelo

Em paralelo fez propaganda do bar. Aquele assassinato hediondo lhe rendeu um recorde na venda de coxinhas de frango com catupiry. Cervejas, não. Não bateram seu recorde. Mesmo as marcas no chão feitas pela polícia técnica (quatro, no total: duas de braço, uma de perna e a outra do resto do corpo) não superaram a freguesia obtida naquele jogo da Copa do Mundo. E a seleção perdeu. Mas, como comento, não podia se queixar. “Não posso me queixar”, disse ao amigo frequentador e bêbado antigo. Confessou, sim, um pouco de asco. O sujeito com o facão não demonstrou objetividade. Saiu cortando o rival a torto e a direito. Fez uma sujeira danada. “Sorte” que apareceu na televisão. “Sabe como é, a freguesia gosta de lugar, assim, famoso”.

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012

Lia e sofria

Lia e sofria, e havia males que nem doer doíam. Elitério achou que de um desses, sem dúvida, padecia, sentia e ninguém via. Como, no autodiagnóstico, também mal os entendia, definiu-se, não sabia, com síndrome de rimas tolas ou quem sabe um declínio neurocognitvo menor. Poetagem ou dificuldade na aprendizagem. Afinal, estava lá, no manual. Confessou-se certo temor. Havia doenças novas: desregulagem perturbadora do humor ou, quando nada, uma psicose atenuada. Doeu na gente a morte inesperada de Elitério, atropelado pelo caminhão de carvão. Sem uma solução para os seus males... sem um diagnóstico definitivo.

domingo, 5 de fevereiro de 2012

Tende a muito

Tende a muito instável. Quando muda a Lua, valha-me Deus. Na nova, dá pra ficar de pé junto. Feito semente de prédio, pronta pra subir andar a andar. Quando crescente, parece que sente pontadas de tijolos, meio sobrepostas, meio pensas, meio suspensas, mas há um fundo de prumo. E, na cheia, vira parede. Todo reboco, deslizado de argamassa, massa corrida e tinta fresca. Dá gosto! Luze como fogos de artifício, num bom humor de cobertura com vista para o mar. Todo festa e todo comércio, negocia afetos a troco de nada. Todo coração com persianas abertas, balançando em brisas, lufadas e sutilezas. Mas míngua. É óbvio que você sabe, na minguante. Então desaparece, feito um edifício que caiu de súbito.

sábado, 4 de fevereiro de 2012

Memorava e admirava

Memorava e admirava os ócios de seus ofícios. Ser impenitente lhe conferia suas vantagens. Tal o contador de histórias, a dizer do sexo que não houve ou da riqueza que quase ganhou, uma reta de coerência bronca tornava tátil a satisfação de Túlio. Qualquer troço era utensílio da fala: a caneta bic com a qual mexeu o gelo oculto sob a escrivaninha do escritório; o elástico na régua de plástico disparado para acertar mosquitos; a mão direita canhestra passada às tontas nas nádegas flácidas da secretária esnobe. Vai daí um vaticínio de Cícero, vilão sem causa e volátil como a vodka que ambos consumiam muito: - “Pra mim, Túlio, uma bruxa amaldiçoou teus gestos, e tu nunca vais comer ninguém!”.

quinta-feira, 2 de fevereiro de 2012

Constipou?

Constipou? Sim, porque esses olhos vermelhos roçando o chão, com essas pálpebras montanhosas, não sei não. Essas narinas em cascata, aos fungos e resmungos; esses dedos surdos, que se recusam a gesticular enquanto você fala; é, também a fala, frágil, transitória, sem o habitual poder de persuasão. Tossiu! Ouvi, sim. Não está faltando quase nenhum sintoma. Só... deixe eu ver... não, nenhum. Sua testa arde feito um maçarico, lançando labaredas de pulsões sobre os dentes trêmulos. Calor e frio, fato e sensação. Não sou médico, mas sinto um caminho sinuoso entre a gripe e a prisão de ventre... constipação, minha finada avó diagnosticaria. Minha supérflua memória receitaria cama e um copo com água de hora em hora. Mas, sinceramente, acho você deveria parar com essas coisas.

quarta-feira, 1 de fevereiro de 2012

Creio nas formas

Creio nas formas, na renovação da carne e na inflexibilidade do espírito. Toledo se olhava no espelho, enquanto pensava. Viu que seu rosto tinha a forma do triângulo isósceles apoiado na base, e logo concluiu que seu cérebro devia ser pequeno para caber naquele bico. Pensou em passar uma vassoura nesses pensamentos depreciativos, para varrer com eles todas justificativas que sempre lhe fizeram crer que carecia de perspicácia. Não encontrou o cabo da vassoura! Um parque de diversões de luzes se acendeu aos seus olhos: fora magro e já pensava assim de si. O robusto devaneio não lhe alterara a transcendência. Toledo engoliu outra dose de coerência com saliva: acreditou nas formas, na renovação da carne e no velho e inflexível espírito. Definitivamente, não passaria disso.