quarta-feira, 31 de março de 2010

Das formas

Das formas de suicídios que avaliou com atenção, nem cogitou inventar muito ou partir para as novas tecnologias, optou pelo tradicional estouro dos miolos. Lançar-se ao vazio, ingerir veneno, jogar-se debaixo de um caminhão ou ônibus lotado, posicionar-se a esmo no pasto descampado para o relâmpago fulminante, fechar a porta e abrir o gás, foram possibilidades excluídas. Temia pela espera, que bem poderia ativar-lhe a razão para convencer-lhe da desistência. Haveria de ser e parecer lunático, como forma de preservação da moral dos suicidas. Pensava regozijado nessa faísca de mistério. Intuía a culpa que deixaria aos próximos e o acender de sua existência, tão apagada às vistas alheias. Convencia-se, enfim, que o gesto era coisa dos vitoriosos, quando decidiu consultar um terapeuta, a que sempre se recusara. Tomou um anti-depressivo e concluiu nessa vida: “melhor morrer de tédio”.

terça-feira, 30 de março de 2010

Vetusta e besta

Vetusta e besta, Veruska achou um jeito, honesto a seu ver turvo, para controlar-se da secura dos anos: se casaria com Dráuzio, o mudo afeminado da farmácia. Só no civil, pensou em princípio, mas seriam justamente os princípios que a impediriam de uma cerimônia assim. Então marcou um padre, doou-se um vestido branco e divulgou às divas velhas, amigas de dermes, fofocas e infortúnios. Suas contrações e espasmos, moídos pelos milênios de espera, haveriam enfim de receber o sopro da vida.
Na hora marcada, um marco: Dráuzio surgiu de terno cinza, gravata em linha e perfume bom por toda a parte. Pedaço de mau caminho, pensaram todas aquelas da platéia histérica. Tendência ao horizontal, imaginou Veruska, já mais afoita. Esqueceram todas do lapso iminente. O padre bem que tentou, mas Dráuzio jamais conseguiu pronunciar o “sim”.

segunda-feira, 29 de março de 2010

Dois tapinhas

Dois tapinhas nas costas alheias era a marca d’água de Reinaldo, através da qual dava baixa nas suspeições de que era um afetado, pelas roupas de grife que usava. Apresentava-se como um “descaralhado humorista”, capaz de por a rir um padre nos ofícios de um velório ou a funcionária pública do guichê de reclamações. Tinha, porém, seus inimigos escolhidos a dedo. Com excelsa frieza, mantinha Laerte, o dono do bar, na mira intranscendente de um falso abraço, cuja proximidade física era utilizada para um proposital bafo de três dentes de alho que Reinaldo mascava a seco, sempre que ia ter com essa vítima de seus recônditos ódios. Feita a desfeita, ainda cuspia no chão do bar, logo em seguida ao bafo. Até a noite na qual sua proximidade pôs Laerte de prontidão. Pastelão, esquivou-se do abraço e arrotou cebolas respingadas sobre as grifes de Reinaldo. Um susto que construiu uma amizade eterna.

domingo, 28 de março de 2010

Aposto que coisa

Aposto que coisa do Abreu não foi. O pobre tem medo até de minhoca, imagine se mexeria com cobra? Silvestre, sim, é traiçoeiro. Trabalhou com bichos no zoológico de Vila Velha. Depois tem mais: sempre teve pretensão ao cargo. Fica enfiado lá na casa de fundos onde mora, emitindo aqueles sons parasitas de fritura, fervura, móveis arrastados, tosses limpa-almas, martelo nos pregos. Daí a criar cobra é um pulo. Quem já entrou lá pra ver? Parece que vive numa teia de sonhos e desconfianças.
Quando sai pela manhã vi Amadeu na porta da loja, caído, respirando sem fartura. Chamei o resgate, que chegou logo. O moço da viatura já viu os dois furos no braço de Amadeu e alguma coisa pra fora em sua face. “Vampiro ou cobra. Olha a língua, como espicha”, disse. A peçonha tiritava no pouco espaço quadrado. Cascavel. Fora deixada numa caixinha para presente, no caixa... Cobra no caixa. Bem feitinha que só vendo.

sábado, 27 de março de 2010

Com repulsivo

Com repulsivo carinho e uma incômoda atenção, Katyna não quis afastar-se do caixão do marido. Um arsenal de olhares a fustigava. Todos pareciam esperar por uma cena em 3D de aflição explícita. Todos intencionavam à hipótese que Katyna havia arrancado o pino de uma granada, que explodiria histórias para os restos de suas vidas. A viúva louca. A viúva em êxtase. A viúva rapisódica.
Como uma horda de vampiros, os presentes àquele velório queriam sugar a emoção da pobre até a última gota. Levar consigo um naco, parco que fosse, da tragédia alheia.
Com seu conhecido hábito de dizer as melhores coisas nos piores momentos (ou vice-versa), Katyna colocou suas mãos sobre as mãos cruzadas do morto e confessou, baixinho, embora todos a tivessem ouvido: “Agora, sim, Clodoaldo, terei confiança na fidelidade desse corpo!”.

sexta-feira, 26 de março de 2010

Quando disseram

Quando disseram a Cláudio que suas histórias, assim, contadas, tinham dimensão plástica, o pobre ficou meio agastado. Sabia que o plástico demorava para se reciclar na natureza, ele lia, ouvia, ecologia, então começou poupar palavras. Chegava mesmo a cortar os sentidos, como na estranha explicação que (bem que) tentou dar à existência de cachorros de rua. E foram muitas as esquisitices: mágica do vôo do inseto, floresta encantada da música, cinco fatores da língua, erros dos restos, protestos das nuvens. Enfim, afirmações sem nenhum pé e carentes de cabeça capaz de conduzi-las até uma sensatez final. Foi na desordem do medo, no entanto, que Cláudio decidiu emudecer de vez. Sua dimensão plástica, disseram os críticos, resumia-se aos gestos. Nos ouvidos confusos do moço isso soou como um acinte ambiental. Coitado, até pensou em suicidar-se, em nome da preservação.

quinta-feira, 25 de março de 2010

Empecilho na hora

Empecilho na hora do calor sempre surge: a roupa, por exemplo. Vai ver era por esse estorvo que Adão e Eva andavam nus. Nunca soube muito sobre a atmosfera no paraíso. Falei até para a patroa, ali pelas onze horas, quando o Sol não quer conversa, a não ser embaixo de árvore ou de uma marquise: “Alzira, minha camisa tá mais ensopada do que aqueles pés de frango ruinzinhos que você fez ontem à noite pro jantar”. Ela andava e suava, nem parou pra retrucar as injúrias.Batia os pés no chão e deixava o bafo se levantar magnificente. Olhou de través. Foi o que conseguiu, naquela quentura. “Nossa, Alzira, ‘cê parece que incha quando fica assim, avermelhada, feito brasa”. A pobre curvou as duas mãos sobre os dois joelhos, de pé, mas meio arriada. Então afastou os pingos que lhe escorriam aos olhos, usando o antebraço. Ergueu os olhos e com a mais cálida expressão de enfado balbuciou sílaba a sílaba: “vai se fu-der, A-ma-deu”. Alzira quando arde perde aquela chama de amor que tem pela gente.

quarta-feira, 24 de março de 2010

Convidou Olívia

Convidou Olívia para um sol. Esperança crente de um caliente encontro. Olívia não foi, para seu lamento. Perseverança e empenho tendem ao êxito do insistente. Chamou Olívia para o escargô ao vinho. Olívia disse que o tempo a impediria. Não gosta de chuva, garoa ou respingos. Implorou à Olívia um luar no parque. Olívia culpou a mãe, por não sair à noite.
Paciência é o preâmbulo da impaciência, sentiu cabreiro. Frustração é a ausência de um prazer inteiro, pensou decisivo. Então convidou Fátima para um sol. Sabe como é, a praia, o calor da areia, a cervejinha gelada, a brincadeira no mar, deixaram os dois bem soltos para um namoro dissimulado. E se amaram, gostaram e continuaram. Hoje vivem felizes no apartamento reformado do casal. Raivosa, Olívia não pode “nem ver” Fátima na rua.

terça-feira, 23 de março de 2010

Na mala

Na mala, além de alguns reles pertences, havia uma carta do prefeito de sua cidadezinha de origem, recomendando o homem ao deputado Tavares de Bernardo. Dizia que ele se chamava Alfredo, que sempre fora honesto, trabalhador e arrimo de família. Dizia que depois da morte dos seus foi educado por parentes do próprio prefeito, que nunca deixou de cumprir uma única ordem, que aprendeu muito cedo a ler como ninguém, que lia tão bem que fora designado pelo padre, para ler os textos bíblicos das missas. Dizia que o ar de distraído que carregava no semblante era apenas aparente, que jamais perdeu um horário, que sempre se dispunha a auxiliar o próximo. Pedia, enfim, uma chance de trabalho para Alfredo, fosse onde fosse, houvesse o que houvesse.O deputado Tavares de Bernardo só ficou sabendo de Alfredo pela polícia da capital, que achou por bem entregar-lhe a carta, encontrada com o morto, atropelado na avenida Central.

segunda-feira, 22 de março de 2010

O bom do esoterismo

O bom do esoterismo é que ele explica tudo: da dor no calo ao mais puro conhecimento do real e do imaginário. Então você acha que, com um trunfo desses, eu sou o quê? Claro, esotérico. Fiquei assim com o passar do tempo. A gente fica mais sabido, dizia sempre minha avó, coitada, já falecida. Eu cumpro minha parte. Faço umas fofocas, é verdade, mas também filosofo, estetizo, moralizo ou dou sentido à vida. Levo à plenitude a máxima do Hugão, amigo meu aqui da esquina: “o que vier são três palitos”. Bom, ele diz “é” ao invés de “são”, mas já que eu não sou tão analfa-funcional, corrijo a concordância. Por falar nisso, digo sempre que Platão disse. Todo mundo acredita. Ninguém leu mesmo o Platão como deveria. Quando Platão não poderia ter dito é que são elas. Aí, só o esoterismo é que salva. É dez!

domingo, 21 de março de 2010

A já comprida

A já comprida bondade de Bete crescia a olhos vistos, como as folhas das samambaias que ela cuidava tão bem. Fiel amiga, ótima amante e excelente esposa, Bete era aquilo com o que um homem sonha, mesmo que para isso deva perdoar o amor daquela pérola pelos cachorrinhos da raça fox paulistinha. Esse homem era eu próprio. A casa limpa, com as pias brilhando, os banheiros cheirosos, os espaços harmoniosos e a comida sempre quentinha, na hora e com os menus exatos, eram meus. Vivíamos como Eva e Adão antes da maçã. Julieta e Romeu depois de mortos. Perfeitos, não fosse o cérebro de Bete, do tamanho de uma ervilha. Ela se descuido da pinta negra na coxa, e aquilo foi crescendo, de jabuticaba a ameixa, até quase o tamanho da cabeça Bete. Mas Bete era incomparável. Só nos separamos, mesmo, quando começou a nascer cabelos naquela negritude redonda. Senti um coisa estranha, fazer o quê?

sábado, 20 de março de 2010

Saiba morrer

Saiba morrer o que viver não soube, bocageou o tagarela Antunes, no momento em que baixavam o caixão de Gotardo à sepultura. A viúva de saudosa gotejou tensões, e arriscaria a fala no mais baixo calão contra Antunes, não fossem as circunstâncias cerimoniosas. Engoliu o gosto infeliz do silêncio, mas prometeu a sim mesma retrucar o impertinente.

Pouco tem se passou até a condição ao seu intento. O descuidado amigo do marido morto pairava soberbo sobre as falas, na roda de amigas fúteis, quando a viúva se aproximou serena. Retirou o homem num canto, e disse-lhe ao ouvido o que ninguém mais escutou. Antunes retomou tirante a violáceo. Por certo as moças não entenderam sua lividez. Que foi? Fala, homem? O que a viúva te disse? Amordaçado pelo escrúpulo, Antunes apenas esquivou-se ao verbo: “nada, nada, foram umas coisas que o desgraçado do Gotardo disse a ela sobre mim”. As moças trocaram risadinhas, frias e maliciosas.

sexta-feira, 19 de março de 2010

O hábito de marcar

O hábito de marcar as vítimas com o desenho de um tomate na testa adquiriu depois do sexto ou sétimo crime. Mexeu com a cabeça para os lados, num negativo lamento. Excitação do pó, não constatação. Cadú descortinou a possibilidade da fama de serial killer, sem contar com o pensamento labiríntico-decifrador do delegado Archimedes Kassadhor.
Mulher no parque: tomate. Pivete no beco: tomate. Motorista de táxi: tomate. Gay na sarjeta: tomate. Homem de terno: tomate. Sim, sherlocou Kassadhor, a próxima seria uma velha em casa. E foi ter com a avó, que não saía há séculos. Bingo! Cadú tirava a faca da bainha quando ouviu o click atrás da porta, e mirou o revólver engatilhado do delegado que apontava ao meio de sua testa. Pasmado, Cadú deixou a faca cair e esperou a morte. Na outra mão Kassadhor tinha um tomate, que espremeu entre os dedos para o horror do assassino. Cadú bem que tentou lamber-lhe os dedos...

quinta-feira, 18 de março de 2010

Das várias prisões

Das várias prisões para as quais fui mandado nenhuma me deixou tão desgostoso como essa. Meu maior erro é criar hábitos e confesso que tinha na leitura um encontro manso com o tempo. Meus defeitos mais terríveis e funestos, inclusive aquele de terminar as discussões com aquela chave de pescoço, que invariavelmente silenciava para sempre os desafiantes, até se amenizavam ou desapareciam completamente no entretenimento das páginas. Quando li O homem sem qualidades fiquei meses sem discutir com ninguém. Ler Doutor Fausto e A montanha mágica poupou muito meu braço. Livro grande, em geral, é bom pra gente pensar em outras coisas. Agora, você veja, aqui, minha pena já aumentou outros trinta anos ou mais. Essa cadeia, desgraçada, não tem biblioteca.

quarta-feira, 17 de março de 2010

Era o demônio

Era o demônio infante, com seus oito anos de idade e maligna astúcia. A mãe dizia que “não”. Que crianças não são ruins. Cria, a coitada, que Rousseau tinha razão. Até que a coisa, aquilo, ela, a criança, pintou com batom sutil a gola branca da camisa do pai. Sabia, é óbvio, as conseqüências, mas o genitor negara-lhe o jogo de vídeo game que queria, e queria, e queria. E riu oculto, da fúria da mãe com o pai; dos gritos de ódio da suposta traída; da defesa vã do homem inocente. Então simulou o choro sentido, o sofrimento de pureza infantil que, sim, cessaria, com o conquistado jogo de videogame.

terça-feira, 16 de março de 2010

Não determinou

Não determinou a quantidade de balas que queria, mas pediu muitas. A briga era com “gente grande”, e não tivesse sido marcada pelo emesseêne, bem que lembraria a antiga forma dos homens do campo para resolverem suas pendengas à bala.
A dessemelhança dos meios, ainda assim, igualava-se nos fins. José fugiria com Lena, filha de Paulinho Bubú, dono do tráfico na vila Elvira. Haveria, porém, que tirá-la do mocó paterno, o que seria, em si, uma missão para um batalhão de elite. Mas destemido e apaixonado, foi em frente. Evitou matar à toa (só não poupou os inevitáveis) a escolta de Bubú. E deu com Lena, lívida, sentada de frente na sala do pai. José corria até ela quando Bubú surgiu detrás do armário do canto, com o intestino debaixo da pança e a metralhadora sobre ambos. Dois, quatro, seis, muitos tiros em repetição. José tombou de amor e bala. Seria aboio seu grito, não fosse sampleado.

segunda-feira, 15 de março de 2010

Feito massa

Feito massa sovada com fermento, maré ou leite fervendo, Odécinho crescia a olhos vistos: vertical e horizontalmente. Sempre pronto a decepcionar as expectativas de quem quer que fosse, tinha o acaso como marca de nascença. Era a própria indiferença moldada no descuido. Meio passado, diria depois Orlandinha, por quem ele se apaixonara comoventemente: talvez a única comoção, diga-se, da vida negligente do rapaz.
Pena que a doce moça teve que dizer isso à polícia, num interrogatório que durou horas. Ninguém conseguia entender como Odécinho pode morrer naquele encontro com o poste, quando, distraído, olhava para Orlandinha, do outro lado da rua. A cegueira do amor não o atentou ao obstáculo do primeiro plano. E a primeira vista foi a última que viu, antes de quebrar o pescoço.

domingo, 14 de março de 2010

Pedi caipirinha

Pedi caipirinha e me distrai contemplando o copo, o mexedor, o canudo dessa metáfora do Brasil. Cachaça, limão taiti, açúcar e água congelada. Dá pra alegrar milhões, com a simpática mistura patriótica.
Depois vem um todo difuso, de sílabas soltas ou amalgamadas à lerdeza indolente das frases pouco apropriadas, de recompensa – sabe Deus por quê. Arte de ser oportuno ou impropriedade dos gestos? Como compartilhar o incompatível? A morte ou a merda, são desfrutes individuais: morro ou cago sozinho! Outro gole e um olhar ao verde da casca de limão partido. Estalo no palato, siberianamente gelado, expia os males.

sábado, 13 de março de 2010

Confesso que

Confesso que meu senso de humor é mais desenvolvido do que o do ridículo. Uma benção, como diria a vizinha crente, porque, fosse diferente, e eu nem conseguiria mal traçar essas linhas torpes. Imagine? Cheias de personagens infames, tinos duvidosos, bichos desenturmados e asnices dos cinco continentes aos sete mares.
Acho que é porque não me sinto completamente feio, só grotesco. Então com esse ar de fanfarrão nostálgico, vou abrindo ao amável e distinto leitor a possibilidade de textos repletos de despropósitos e carentes de compreensão segura. Iuanderstén?
Quando a confissão chegar à minha paixão por flores artificiais, móveis encapados com papel contact e sofá brilhantes de tecidos sintéticos, corte a trela, leitor. Você não merece bestificar-se.

sexta-feira, 12 de março de 2010

Deu ao filho

Deu ao filho o nome de Presócrates, dada à boniteza com que via a filosofia. Aqueles pensadores, seus tratados, textos e frases serviam para todos os gostos, dizia Paulino, sem temer jamais uma indigestão. Funcional no seu analfabetismo, exalava fulgores de um padre rebelde ao discutir a retórica aristotélica, a razão prática kantiana ou os aforismos de Nietzsche, que recitava a quem os quisesse ouvir. Em algum lugar do mundo deveria estar o original, da paródia que Paulino representava.
“Quanto mais me elevo, menor eu pareço aos olhos de quem não sabe voar”, confessava de si para si próprio. Até que deu de cara com a fisicamente enorme Claudilene Curry, a austera e redonda professora de filosofia da renomada universidade pública. Ao ouvir as asnices de Paulino, aquela quantidade enorme de humanidade desferiu-lhe uma citação shopenhauerana: “quanto menos inteligente o homem é, menos misteriosa lhe parece a existência”. Aquilo deixou Paulino indignado. Com a mesma cara que teve ter ficado o Cristo, quando Judas tocou-lhe com os lábios.

quinta-feira, 11 de março de 2010

Nunca lhe indagaram

Nunca lhe indagaram por que optara pela corrupção. Talvez ele próprio não soubesse responder. Foi como hábito inocente, do tipo comer pastéis na feira-livre aos domingos pela manhã. Depois, aquilo se incorporou a ele, como um vício. Virou um dependente. As poucas recaídas morais, cada dia menos freqüentes, nem de longe superavam o prazer. “Satisfação sempre dá”, comentava aos cúmplices.
Impunidade é uma certeza. “Não se pode vacilar”, ensina aos mais novos, professoral. Já formou vários, orgulha-se. “Alguns renegam, mas a maioria ainda passa por aqui, na delegacia, e deixa sempre uma lembrança pra gente”.
Bom pai de família e religioso exemplar, teme pela aposentadoria que se avizinha. Marcaram festa e tudo para o mês que vem. Como sofre de ansiedade, comum na profissão, já avisou que fará o pé de meia nos próximos dias. “Tem muito milionário safado que, agora, vai contribuir”, adverte ameaçador... e precavido.

quarta-feira, 10 de março de 2010

De porte

De porte, vou dizer ao senhor, não tenho nenhuma, no momento. Essa aí chegou anteontem, fraquinha, branda, quase covarde. Pega a laço, parece. Brincadeira. Comprei de uns criadores lá da baixada do Encostado. Quer dizer, olhando assim até parece que eles não criaram nada, mas tentaram. O senhor não conhece aquilo lá. Bichinho feito essa égua que sobrevive naquilo é porque é forte. Então vou lá, escolho os vivos, já basta como qualificação do animal. A seleção natural é sem comida, sem pasto, às vezes até com quase nenhuma água pra beber. A gente, aqui, reclama de barriga cheia. Olha aquele cavalo baio ali, alegrão, fogoso, duvido que durava no Encostado. Sei, sim, daquelas coisas, o senhor não sabe? Minha patroa nasceu lá.

terça-feira, 9 de março de 2010

Reuniam-se no imponente

Reuniam-se no imponente cemitério, às vezes e com data marcada, para pedantes encontros litero-filosóficos acerca da vida e do nada. Preferencialmente quando as salas de velórios encontravam-se vazias, o que poderia resultar, habitualmente, numa mudança de datas.
O conferencista quase sempre era um catedrático da universidade pública da área de humanas. Segundo ou terceiro escalão, mas com a pose de primeiro. Como pouco lia, quase não publicava e tinha uma contribuição nula à ciência, falava aos seus, ali reunidos.
- Uma flor, professor?
- Penúria! Dizia com sapiência aos poros, ante o olhar admirado e encantado da platéia, que tomava chá e absinto, porque tinham a ver com aqueles momentos. Os encontros poderiam compor o currículo Lattes de todos, não fosse um coveiro ignorante acabar com a magia do evento: - “Olha aqui, sem autorização da Prefeitura não vou mais deixar vocês ficarem aí, zumbizando”.

segunda-feira, 8 de março de 2010

Um sulco

Um sulco na poeira grudada à testa indicava viagem longa. Comprara a bike e adicionara o descompromisso, quando se encheu das contas alheias no pacato escritório de contabilidade. Não era rico. Remediado, começou com a visão que teve do cachorro dormindo. Auto-suficiente, descansado. Até lágrimas nos olhos ele tinha, como se tivesse rido de um sonho desses inúmeros que cachorro tem. Aurélio, então, fez idéia da vida mortiça que levava. Fez direito. Entregou as contas aos donos, vendeu a portinha no centro e deu para pedalar. Metódico e aos prazos, pré-estabelecidos. Marcava datas e metas para chegar e sair de cada cidade. Calibrava os pneus sempre com aquela quantidade de ar. Deixava que lhe passassem os carros predadores, os outdoors persuasivos, as vontades do consumo fácil. Mas como deixar de vez os hábitos de velho contador?

domingo, 7 de março de 2010

A mostra de arte

A mostra de arte popular foi instalada sobre um banco de areia, destinado a tapar o buraco de uma erosão galopante, que engolia tudo o que lhe estivesse em cima. Lenta e progressivamente, a areia descia para um buraco sem fim, sabe-se lá para preencher qual oco da Terra.
Artistas mortos riam do céu, observando a corrida de compradores afoitos. Os vivos dessabidos agradeciam-lhes a influência. E aquele salão improvisado afundava. Um compre antes que acabe literal. Madames enchiam sacolas de bonecos vitalinos. Espertos enrolavam telas com anjos e caras de Poteiro. Embalavam Silvas e Ivonaldos. Os consumidores, porém, não levaram tudo. A areia com as obras acabou tragada pela Terra faminta. A arte submergiu no solo movediço.

sábado, 6 de março de 2010

Crio, sim

Crio, sim, com a maior devoção. Comecei a coleção de lesbites quando meu primo comprou um computador e me deu o aquário velho. Veja o senhor, eram três fêmeas e dois machos. Hoje, tenho mais cem. Não tenho dinheiro para comprar outro aquário, então eles vão ficando nesse mesmo. É, ração também parei. Dou farinha de pão. Eles gostam. Tem uns ficam um pouco descoloridos com tanto pão, mas a natureza é assim mesmo, né? Separa os fortes dos fracos. Pior foi na semana passada, quando minha vó trouxe um acará-bandeira de presente. Coitada dela, tinha boa intenção. Tive que por o peixe no aquário. Logo, ele mandou bala nas caudas dos lebistes. Tirei o bicho assim que vovó saiu, mas ele fez um estrago bom. Também, não devemos forçar a natureza, né? A água está meio turva, porque eu não tenho bomba de oxigênio. Gozado é que o aquário havia se estabilizado, ia bem. A natureza, às vezes, decepciona a gente, né? Pra falar verdade, não vejo a hora do meu primo enjoar daquele computador, e comprar outro maior pra ele...

sexta-feira, 5 de março de 2010

Empombado com Kafka

Empombado com Kafka, rasgou o livro na frente da platéia, como se sofresse ali a metamorfose de palestrante a estúpido, com fala barata. Sempre modulou a voz num tom de auto-ajuda, um gutural imperioso, assim, um diabo de um porta-voz do definitivo.
Não contava, porém, com aquela audiência. Estranhamente, os presentes haviam lido a obra kafkaniana. Do moço moreno alto, da terceira fileira, começaram a sair as primeiras hastes, que serpenteavam no ar, tocando a face do conferencista. Logo outras hastes brotaram na obesa senhora da segunda fileira. E outras, muitas, todos os presentes envolveram o profanador de livros, com inúmeras hastes que lhes cresceram às testas. Antenas de insetos; se sabe lá qual. Ajustaram às bordoadas a face do homem aos picotes do livro. Obrigaram-no, por sinais e tabefes, a comer os pedaços do papel letrado, página a página, palavra a palavra, até que ficasse verde, sem fôlego. Então retornaram todos à condição humana, com o ar displicente daqueles que nunca presenciaram nenhum fato estranho.

quinta-feira, 4 de março de 2010

Queria visitar

Queria visitar Camilo, mas Camilo não queria visita. Inconveniente em tempo e espaço, Rivaldo era do tipo que sentava, bebia, comia e não ia embora. Tomava o que havia e dava conta do sofá da sala. Por vezes, o inconveniente visitante levava Alzira, amiga de álcool e grude, e se punham a escolher o assunto da roda, a música de fundo ou programa da televisão. Ao dono da casa cabia a passividade diante daquilo, que ao invés de visita apresentava-se como um enorme complô.
Quem sacia a sede, se coça e ainda faz troça na seara alheia, hora ou outra descobre que a recepção virou desforra. Camilo não queria visita. Traçou vingança. Quando Rivaldo chegou, continuou a dedilhar o teclado do piano, como se nada... O litro de uísque estava ali, aparente e insinuantemente despojado no balcão do bar da copa. Rivaldo logo se serviu, e abasteceu Alzira, sem escusas ou licenças. Com os gelos tilitando nos copos, ofereceu ao anfitrião. Camilo sorriu enigmático: “não, não bebo isso!”.

quarta-feira, 3 de março de 2010

O atestado

O atestado de óbito tinha o carimbo do cartório e, logicamente, o nome do falecido: Antonin Bela. O mesmo Antonin que, anos antes, colocara anúncios nos jornais, procurando mulheres para “relacionamento sério”. O mesmo Senhor Bela, que colecionava banheiras antigas, compradas em lojas de demolição ou arrematadas nos leilões. A notícia de sua morte e a falta de herdeiros gerou curiosidade pública: qual seria o fim das famosas banheiras? Juntos e xeretas, os irmãos Silva foram à casa do morto, destravaram a porta com macetes próprios e avistaram, lá nos quartos, as primeiras banheiras. Aquilo cheirava estranhezas e formol. Na primeira delas, o corpo de uma mulher loira; segunda, outra loira; na terceira, uma morena. Susto e pânico! Nem viram as outras dezenove banheiras, chamaram logo a polícia. Antonin Bela seria o monstro procurado. A investigação ganhou ritmo frenético: cada corpo, uma história triste de desaparecimento. O pavor se consumou na exumação do corpo de Antonin. Os mais próximos logo sentenciaram: “esse aí não é ele não!”.

terça-feira, 2 de março de 2010

Estilista de sucesso

Estilista de sucesso, Gabriel Luz ousou criar falsa imagem de simples. Chinelo de borracha, jeans e malha branca, para a coleção do clube das senhoras obesas dos maridos ricos. Contratou redondos modelos, com aparência doméstica, errou com classe, expôs conflitos internos entre as manequins improvisadas (do tipo “gorda é você!”) e barbarizou nas luzes e sonorização do cenário: estroboscópicas vermelhas e valsas austríacas sampleadas.
Não deveria ter chegado ao ponto de eletrizar poltronas. Choque e gordura tendem a uma explosão sinistra. Mas seus íntimos propósitos viriam consolidar-se. Em entrevista à imprensa, ante a revolta das senhoras, foi enfático: “feios odeiam feios”.

segunda-feira, 1 de março de 2010

Seu assunto

Seu assunto predileto eram os próprios sonhos. Sobre alguns, pulava burlesco algumas etapas, especialmente aquelas nas quais se dava bem. Mal de si era o tema mais propício, capaz de arrancar hilários risos dos ouvintes, por serem totalmente desprovidos de elementos éticos e morais. Contou do buraco com o qual matou o cego, do alto balcão de doces anti-anões, da música que declamava aos surdos e do espelho trincado, que lançava aos olhares das mulheres feias.
Anti-herói de si próprio, jamais salvou criancinhas, ajudou velhinhas nas ruas ou deu esmola a aleijado. Até que encontrou Arquimedes, o ilusionista, que se dizia capaz de materializar os sonhos alheios. Sem receio ou fingimento, pôs-se a contar-lhe o sonho com Eva e Linda, a gêmeas xipófagas por quem se fizera apaixonar, a fim de promover-lhes a discórdia. Arquimedes envolveu-se na trama, e logo desmascarou o contador: “elas fingiram que te amavam”, sentenciou seco. Rubro e sem jeito, o rapaz calou-se, definitivamente. Nenhuma palavra, nenhum sonho. A desilusão no amor fora o pesadelo definitivo.