quarta-feira, 30 de novembro de 2011

Desdigo o que faço

Desdigo o que faço. Matar frangos não é coisa do interesse de ninguém. Falo que trabalho lá, no frigorífico. Dou o horário e tudo: das sete às cinco horas da tarde. Sei lá quantos foram ontem: uns mais de mil. Eles surgem em fileira, com pés já presos e de cabeça para baixo. Só passo a faca. Dizer que não sinto um troço também não digo. Nos primeiros, depois... é, é meio mecânico. Vou pra um lugar ausente que não sei onde. Viro só braço, faca e sangue. Sempre tem uns doentes querendo meu emprego. Já, eu, procurei evitá-lo, não deu. Acho que logo, logo me pareço com um dos frangos que executo, não dá para adiar o destino. Tomara o chefe perca a cabeça também. Não, não desejo a ele o mal dos frangos, só uns equívocos. Se ele errar, quem sabe eu consiga a promoção para empacotador?

terça-feira, 29 de novembro de 2011

Mil respostas

Mil respostas esticavam a voz de Victor, quando nem se ofereceram perguntas para que explicasse as preciosidades de sua vida contábil. Um hiato enorme separava os ditos das inúmeras possibilidades de compreensão. Por que ele se defendia tão afoito de tão vastos insultos, se apenas o que quis saber Celeste foi como ia sua vida? Valha-me a Virgem Santa, bocejou o cérebro já quase surdo da moça, molestado no humor. E não cessavam aqueles fluxos de substância, fragmentos de histórias tristes, nacos de “haja saco”, porções de desalinhos com a vida. Victor era um néctar de fatos notáveis que ninguém percebia, um engarrafamento de tino e juízo, esconderijo de benignidade, segundo ele próprio desprendia. Até que se disse meio sozinho. E foi quando Celeste olhou para céu e pode respirar, para seguir seu rumo e retorquir apenas: “compreendo!”.

segunda-feira, 28 de novembro de 2011

Falada

Falada, a Chafira. Não porque turca atônita com as delicadezas dos homens latinos, mas pelo kibe que faz. Ficam vermelhos com aquele prazer, machos e kibes. Trigos estufados à custa de uma umidade contínua, intensa, na medida da massa. Saltam aos olhos, quando crus; ou assim, assados na manteiga; quem sabe, estarão fritos. Há maneiras e gestos para enternecer o ponto, com mãos de mágicas e compenetração de sapiência. Idas e vindas com habilidades múltiplas, harmonia e inclinação vital com um olho na forma, outro na fome que fará cessar. Só lá nas faces reentrantes, no pós gula e já engolido, surge a picante malícia, que excita ou irrita o paladar abastado: o gosto, enfim, é o de hortelã.

domingo, 27 de novembro de 2011

Meus amigos

Meus amigos vivem indo para céu. Não sei o porquê desse gerundismo constante, dessa vontade exótica de transformar seus rostos em espécies de camafeus, fazer panquecas de saudades a cervejadas vãs. Alguns só ameaçam, e aí compreendo. Idade, essas coisas. O mal de meus amigos sempre foi a maneira radical no convívio com a Terra. Quase todos, com exceção dos conhecidos. Estes, às vezes, também sobem, mas no caso a compreensão substitui o camafeu. Sobra consolo quando falta proximidade. Um dos últimos, falei com ele há horas, e já agora me parece que sonhei apenas. Nunca mais me faltará em arquétipo, mas em pupilas, aí sim. E nos jogos de Natal... amigo oculto, secreto, essas coisas.

sábado, 26 de novembro de 2011

Dormiu com Proust

Dormiu com Proust, cheio de coisas. Pequenas manias do mau estado, dores do excesso de zelo, contradições da perspicácia. À irmã, que o acordou para o trabalho, pediu licença para a profilaxia. No café, beijou a mão da tia, entre mesuras e agradecimentos pelo pão na chapa. Levou aos lábios uma colherinha de chá, a sorveu alongando o dedo mínimo da mão esquerda, enquanto gesticulava com a direita para comunicar a todos o revés no emprego. Ao olhar reprovador da mãe, fez que sim com os ombros, tornando inofensivo o desastre. Pensou tê-los convencido do infortúnio iminente, e de certa maneira o fez, mas foi justamente o primo rude, da ponta extrema da mesa, quem enxergou, naquela situação toda, o grande engodo: - “É fácil falar de mim, difícil é fazer o que eu faço”, retrucou ao parente fino, como um para-choque de caminhão.


sexta-feira, 25 de novembro de 2011

Aproveitar

Aproveitar o seu humor aproveitaria. Já se valera dele antes, quando o tédio da fala maldizente de Umbelina narrava que mulheres sãs disputam entre si cada espaço que as cerca, só a doentes amam. Foi quando a chamou de “amor”, “amada”. Ambos riram, porque era sempre mais útil, nas situações aborrecidas, do que ouvir a inteligência fina da conhecida. Poderia até gracejar, em outra circunstância, mas ali não seria entendido e poderia parecer tosco, embora pouco se importasse com uma eventual grosseria, entre as tantas indelicadezas dissimuladas que se apresentavam naquela logorréia de intelectuais estreitos. Chamou o garçom e pediu então uma cachaça. No tom cult e goles curtos, trataria sua persuasão íntima, e quem sabe acabaria achando todos ali muito interessantes?

quinta-feira, 24 de novembro de 2011

Metafísica!

- Metafísica! E ao ouvir a expressão do diretor, dita de maneira tão perplexa a propósito do professor de filosofia que explicava os atributos de Deus, o velho professor de educação física ordenou trinta flexões abdominais a cada um de seus alunos. O equívoco jamais foi entendido, porque ninguém reparou. Suados e atônitos, os jovens passaram a tratar com desprezo o professor carrasco, pela ação inexplicável. Apenas o jovem Adiel, no entanto, foi ter com o diretor para comentar a súbita determinação ocorrida na aula de educação física. “Por Deus, professor, quer matar os alunos?”, a autoridade indagou ao velho professor. Sem entender o que seria uma contra-ordem, o idoso homem apenas retrucou empalidecido: “Mas foi o senhor mandou meter física!”.

quarta-feira, 23 de novembro de 2011

Nesse caso

Nesse caso – disse Aderbal – não há necessidade de chamar o doutor. Demasiada assombrada, Inês olhou para os cacos e para o banco do carro, onde a ridícula história deveria começar. Juram que Juliana se suicidou às cabeçadas no para-brisa dianteiro do fusca. Juliana sempre foi determinada, e os elogios fizeram sentido. Tosco, mas próprios. Sempre assegurou sua capacidade de morrer tapando o nariz com os dedos, ninguém a levou a sério. Seus simulacros de explosão pela degustação contínua de feijão tampouco foram capazes de sensibilizar os amigos. Agora, estão aí, Inês e Aderbal, com caras de poucos amigos. Pelo menos uma a menos, com certeza debitaram, com esse ar blasé e relapso...


terça-feira, 22 de novembro de 2011

Na estante

Na estante, o vaso. Uma imagem de um dragão chinês, cerâmica xavante, galinha d’angola e esculturas em pedra sabão que Cortázar, Bolaño, Borges, Unamuno, Góngora e Cervantes jamais imaginaram. Era dos hispânicos e latinos a estante com tais heresias. Não que a tivessem adquirido em períodos distintos. Pelo acaso se juntaram a ela, e conviviam bem, cada qual com seus enredos. Nunca se atreveram a jogar o xadrez no tabuleiro de barro, pois tinham destinos distintos aos seus reis, bispos, torres e cavalos: peões de ideias. Ali, lado a lado, estavam prontos a explicar seus pontos, sem os entregar. Curiosamente dependentes de alguém que lhes distinguisse dos vasos, dragões, esculturas ou das galinhas d’angola...

segunda-feira, 21 de novembro de 2011

O contraponto

O contraponto do sax, em clima sentimental, soprava pela milésima vez nas caixas acústicas da sala. Não era Ellington ou Coltrane o motivo, mas Márcia, a balconista da farmácia, que se alguma vez ouvira um jazz nunca soube. E Lélo, lá. Desmanchando-se nos acordes de In a sentimental mood, entre aspirinas e emplastos para a enxaqueca, paixão platônica e sequilhos de nata. Haveria que doer mais, para dar razão ao retorno à farmácia. Sucumbiu então (e novamente) à dor. Foi. Márcia entreolhou o colega farmacêutico, quando Lélo atravessou a porta. Estava abatido de uma noite inteira de jazz, marcado pela fumaça dos cigarros e diarréico das natas. Pediu mal e tímido um fortificante bom, e a ouvir a voz de Márcia, tudo o que pode ouvir foi um zumbido, com o solo de Coltrane... longínquo e inacabado.

domingo, 20 de novembro de 2011

So-be-ra-na!

So-be-ra-na! A doidivana Elza Maria gritou à elegante Cleuza Silva e Sá, que pairava na pista da moda como gaivota em êxtase ou urubu em pausa. A passarela iluminada agregava algo de brega àquela tarde de senhoras, doadoras de dós aos pobres, carentes, doentes & deficientes. De difícil, exceto as horas de maquiagem, apenas os pedidos aos avaros maridos, aos novos enriquecidos ou, e principalmente, aos falidos. “Para fazer o bem pouco importa nossa vida, nossos problemas com os psicólogos, nossa dificuldade em conseguir uma boa faxineira, nossas limitações no crédito do cartão. A gratificação é sublime”, declarou sublime Elza Maria, à colunista social que, também colaboradora, oferecia desconto para veiculações beneficentes. A única mentira que ouviu ali, saiu da boca da própria Cleuza Silva e Sá, ao descer do palco: - “Men-ti-ro-sa”, desmanchou-se dissimulada à amiga que lhe chamara de soberana.

sábado, 19 de novembro de 2011

Um corre

Um corre atrás, cerca daqui, cutuca ali, bate de lá, marcou a luta entre Eliseu e a barata. Contrário a ele, homem reto e claro, o inseto ziguezagueava pelos cantos obscuros. Só se via a sombra de Eliseu projetada nas paredes, de chinelo em punho e nada do bicho. Depois, o spray, que envenenava o ar. Mas tarde, o agastamento do homem, estirado à poltrona com o enfado dos derrotados, entregue à barata. Ninguém nunca soube o fim do suplício ou sequer quem sofreu mais entre aqueles dois. A barata nunca conhecera Gregor Samsa, e Eliseu que, sim, o conhecia há tempo, conseguiu o subterfúgio que precisava para desistir de vez dessas missões domésticas.

quinta-feira, 17 de novembro de 2011

Boiando na bacia

Boiando na bacia o barquinho de papel seguia o rumo do vento lento. À noite não se podia vê-lo, mas estava ali, restrito às encostas de alumínio, sem destino outro ou praia próxima. A esquadrilha inimiga surgiu pela manhã, formada por dois pardais vulgares como piratas, ávidos por sorver às gotas aquele oceano. Cada bicada afoita na água mansa era um maremoto ao plácido barco, que se inclinava de proa à popa, como se compartilhando com as aves, pudesse bicar a bebida líquida. Um jogo de vida e de morte, vida e morte, vida e morte até que a água lhe adentrasse. Úmido, tênue, desmanchando em suas dobras emborcou e naufragou, lentamente. Virou uma folha de caderno, que boiava com a frase escrita em letras tortas: “aproveite e faça um barquinho”.

quarta-feira, 16 de novembro de 2011

Água na boca

Água na boca bem que sentiu. E não era afogamento, era fome. Boquiaberta quem ficou foi a moça do caixa, ao ver-lhe as babas escorrer pelas laterais do queixo. Dava certa repulsa, mas pena também. Tudo ali era tão caro – ao estômago e ao bolso, que àquele rapaz faminto só caberia olhar e babar mesmo. Educada, porém sarcástica, a jovem olhou para aquele homem parado defronte a vitrine de salgados finos: - Você vai querer alguma coisa? Sim, era evidente que ele queria. Não, seria óbvia sua resposta. Ele deu com os ombros: - Precisaria de dinheiro para querer... “É”, disse a caixa. O rapaz virou-se e seguiu o rumo da rua. Precisou ajustar as calças, ajeitando o cinto puído.


terça-feira, 15 de novembro de 2011

Tanto chovia

Tanto chovia, que Lourival nem levou a sogra. Disse à enfermeira que não combinava sogra com barro, nem com hora marcada. “Aquilo é um atraso só”, falou à moça, que havia perguntado primeiro da velha. Do sítio à cidade nem era muito longe, mas Lourival quis sentir sozinho aquele perfume adocicado e sutil da água nas folhas, sem ouvir reclamações quanto ao vidro dianteiro do fusca, que há anos não fechava. Seguiu inclinado à natureza da vida, “de tocar em frente”, deixando as questões outras para serem revistas com mais calma. Que se danassem os pretextos, quando urgia o prazer. Bem encafifou-se ao chegar ao doutor, porque a paciente era de fato a mãe da esposa, mas de palpites e cabelos brancos, já andava cheio.


sexta-feira, 11 de novembro de 2011

Ler romances

Ler romances e dirigir empresas eram as atividades de Horácia. “Também, com um nome desses, só pode estar de gozação quando manda a gente dobrar os turnos”, dizia a operária aflita. “Também, com um nome desses, só poderia ficar lá no quarto, isolada, mergulhada nos seus livros”, argumentavam as amigas, ante as consecutivas recusas para um passeio ou chope. Todos, no entanto, retorceram os olhos naquela semana na qual Horácia passou a vestir-se estranha. De súbito, dispensou as funcionárias para que descansassem. Foi à matriz da empresa e desancou os chefes. Celebrou com as amigas suas rimas péssimas e louvores à honra. “Coitada, com um nome desses, é lógico que não entenderia direito o Dom Quixote”, disse alguém.

quinta-feira, 10 de novembro de 2011

Viu Vilma

Viu Vilma se aninhar na cama e pensou besteira. O cheiro vinha da caixa de sabonetes, não de Vilma, mas com os olhos no ponteiro de minutos do relógio rosa imaginou um tempo suficiente, sob perfume agradável. Passou os dedos no rosto firme e imóvel da amiga, feito seda farsante ou veludo transgressor. Havia é óbvio, abaixo da face, um corpo de contornos fáceis. Debaixo do insignificante lençol, prováveis delícias. Além do estático, uma infinidade de movimentos possíveis. Algo lhe dizia da insensatez do gesto, afluentes pecados marchavam em direção à sua ética. A solidão até (ou talvez) lhe seria maravilhosa, não fosse a visita de Vilma justamente naquela hora. “Que bonitinho! Zelando por mim”, ela ainda lhe disse, antes de sucumbir aos sonhos.


quarta-feira, 9 de novembro de 2011

Bancário oficial

Bancário oficial do Brasil há mais de década, tinha veia vampiresca. Não que gostasse de sangue, não. Tinha horror, especialmente porque quase sempre incidentes com sangue o impingiriam algum trabalho. Adorava, sim, sugar as paciências dos clientes do banco onde atendia. Concursado, sua garantia de emprego era o infortúnio das vítimas. Com absoluta verve burocrática, abundava criatividade nas filigranas da lei, e fazia velhas voltarem depois que obtivessem um carimbo tal (em cartório), no óbvio documento; jovens, depois que trouxessem certidões com firmas reconhecidas de seus responsáveis; mulheres, homens e gays, depois que refizessem a carteira de identidade, cuja fotografia já estava antiga. E não era nada aleatória a sua meta: ouvir dez desaforos ao dia. No nono, já exalava felicidade, esperando a próxima vítima. Coitado de quem não lhe xingasse... há muitas filigranas e ótimas leis para punir os distraídos.




terça-feira, 8 de novembro de 2011

Só a vila

Só a vila Santa Providência tinha sido atingida. Tudo o que havia de bom tremeu na hora da chuva. O alagamento foi lento. Feito o ritmo da bebida daquela hora, que tomavam Zé Tirso e Manuelzinho, na venda do Tônio... foi subindo, junto com o descrédito de todos os que assistiam. Em horas, havia um rio sobre as secas toras dos fogões à lenha. A menina bebê morreu e se foi, nas águas, pra um céu. Os horrores se perderam naquele espelho de moldura alaranjada, que se manteve dependurado durante anos na parede do bar, refletindo apenas o presente, sempre.


segunda-feira, 7 de novembro de 2011

Assim fiquei

Assim fiquei depois do cuspe daquele cachorro marrom. Deve ter inoculado raiva em mim. Se bem que, às vezes, penso na possibilidade de autoria daquele mexilhão alaranjado que comi na praia, nas férias fervescentes de dois anos atrás. Claro que não descarto o dardo que Augusta jogou fora do alvo, bem aqui, no bico de minha omoplata. É... tem aquela vacina anti qualquer coisa do postinho público, a baba de Adélia, a buchada de bode gastronomicamente contemporânea brasileira, o cisco no olho da queima da cana, a radiação que vazou no terremoto do Japão. Descartei o papel higiênico da padaria porque nada ficou provado contra ele. Situação idêntica a da bicada da andorinha migratória, cuja saúde continua imaculada depois de seu regresso ao Canadá. Mas o médico já me receitou esse anti-histamínico, e minha serotonina está melhorzinha. Anda altíssima.

domingo, 6 de novembro de 2011

Queria viver

Queria viver consigo próprio, sem testemunhas, livre do amor, do ciúme, ódio esperança ou temor. Assim mesmo, feito o Frei Luis de León, humanista e poeta espanhol. Quiçá, compor odes! Até que apareceu Odete, feito a de Tatit, toda enigmática. Completamente diversa, conversa vai, vem, muda o rumo da prosa. E ama, enciumado, raivoso, esperançoso, medroso. Pensou compor a dor do cotovelo esquerdo, ao ritmo pop dos cornos urbanos sobre a cabeça, feito os aviões de Veloso. Escondeu-se na fumaça do incenso e mergulhou no aquário, feito o da Era que um dia foi. Grande escritor! Com todas as frases para serem escritas, feito um monumento na praça moldado por um escultor farsante, sob a encomenda de um prefeito corrupto. Muito distante de León...

sábado, 5 de novembro de 2011

Alguém sentiu

Alguém sentiu naquele século. Só lá se usou essa poltrona azul. Era a pérola na sala, encostada ao canto, na qual a velha tecia afetos para os seus. Daí saiu oculto o blusão cinza: presente pelos quinze anos. Questões com alma, falas de ensinar, cantigas de tamanha ingenuidade. Hoje não faz diferença. Nem essas crianças idiotas a procuram para se sentar, como se tirassem proveito dos minutos de ócio. O cachorro fez xixi no braço esquerdo, sinta o cheiro. O café entornado no acento consolidou-se como marca. Da carta que li ali trago trechos esparsos na memória. Lembro-me que afundei naquele espaço macio e envolvente, depois devo dormido. Aliás, sonhado, porque o paraíso deve ser maior do que a poltrona azul.

sexta-feira, 4 de novembro de 2011

Crema!

- Crema! Crema! Crema! Fora o último pedido de Joacir, e os amigos compareceram. Líder da torcida organizada do Uiarupu Atlético Clube, morrera na véspera, de desgosto, depois de uma derrota, mais uma... Sua loucura pelo placar favorável tinha escapado ao controle. Dado aos goles, afogara-se nas mágoas. Começou por procurar um fósforo. Nero! Queria ver o estádio em chamas. Falava aos socos, à maneira funda e trágica, mas não conseguia arrancar aquilo da garganta. Foi sufoco e foi sintoma. Contam que o fato se deu pelo grito entalado. Apenas uns passos depois do tapinha no braço de Gordo, segurança uirapuruense, e Joacir deitou. Todos pensaram que não tinha a menor importância. Aí...

quinta-feira, 3 de novembro de 2011

Gargalhou de desprezo

Gargalhou de desprezo, mas continuou ouvindo. Puxou pra cima as sobrancelhas, entortou pra baixo os cantos da boca, mas continuou ouvindo. Chacoalhou que “não” a cabeça, em movimentos seguidos para os ambos os lados, sem parar de ouvir. Deu de ombros, virou as costas, parou e ouvia... ouvia. Ameaçou seguir (e deixar Clara lá, falando dos infortúnios do marido, das poucas proezas, dos muitos defeitos, da inércia constante), mas parou, ouvinte. Houve quem supusesse uma explosão de raiva, um grito de basta ou mesmo uma agressão. Ele, não. Só ouvidos. Dos negócios errados, do sexo mal feito, das dívidas infames, depreciações, desprezos, menosprezos, desdém, e ele atento, então, irônico. Até que Clara rugiu: “tão vendo?”. Ele disse: “não, só ouvindo!”.


quarta-feira, 2 de novembro de 2011

Com muito

Com muito gosto e honra, tal Xerazade contemporânea, Talita contava histórias ao marido Sandoval, que além de traído sofria insônia. Contou que os vultos que ele julgara ter visto evadindo-se pela janela, assim que parou o carro, eram de dois gênios, que ela imaginara também ter visto, com os sacos de desejos já saturados, portanto, incapazes de atender a novos pedidos. Sandoval ficou maravilhado: “como é agradável e assombrosa a sua história, minha flor”. Talita então lhe disse que também sonhou que novos gênios surgiriam, e que jamais perdera a esperança de que um deles, enfim, haveria de garantir o futuro do casal, suas cobiças e anseios imensos. Sandoval se deitou no sofá, abriu uma garrafa de refrigerante e tomou o que havia, quase num gole. “Você guarda o gênio aqui, tá Talita?”. Ela sorriu, que sim.



terça-feira, 1 de novembro de 2011

Forçou o frio

Forçou o frio de seus olhos contra o calor dos quadris de Pablita.
- O que é que eu ganho? Disse, gaiato.
Ela mordeu os lábios, nem moveu outros lábios.
- Uma cervejinha pra mim, por favor...
Colocou petulância em sua insolência, importância em sua existência:
- Minha companhia já não lhe basta?
Um gole espumante, branco meio amarelado, molhada com a voz seca:
- Escuta aqui, você está babando?
- E quem não está?
Tornando-o estranho, virou as costas, mudou o hálito de rumo, para soltar pelo salão palavras imprecisas. “Podre”, “idiota”, “babaca”, essas coisas.