terça-feira, 30 de junho de 2009

Depois eu conto

Depois eu conto. Uma vez enterrei um astro. Famoso pra chuchu. Precisava ver, aquela fila de fãs, e parentes, atrás da herança. Já, já enterrei bandido. Matador mesmo. Só a mãe no velório. Não, anão, não. Até falam disso, né? Nunca vi enterro de anão. Nem eu. Ah, freira já, pertinho da capela, lá onde ficam os padres. Acho que depois de mortas eles, lá, o bispo, sei lá, deixam juntar mulher com homem. Acho gozado, bem eles que acreditam na vida eterna, depois que morre, pode. Falo baixinho, mas sabe Deus a suruba que é aquilo. É triste, mas criancinhas já foram muitas: morte morrida, e até de morte matada. O pai... vê se pode?
O caçador, quase sempre, se diz um amante dos animais. O comerciante prega o princípio do lucro honesto. Não se deve dar muita atenção às profissões, com base no que dizem aqueles que a exercem. Pior quando a mãe, com seus sonhos pré-modernistas, foi logo colocar no menino o nome de Augusto dos Anjos da Silva. Virou coveiro concursado, já jovem. E fala pelos cotovelos.

segunda-feira, 29 de junho de 2009

Da cozinha ouviu

Da cozinha ouviu chiar a porta de entrada da casa. Era Ivete que comia consigo um quibe frito, “que o Cupido sovou”. Não a mandou entrar, porque sempre esteve dentro. Claro, não dava para o café fumegante, que saía do coador. Combinações improváveis, de mau grado ao paladar. Ofereceu cerveja gelada, estupidamente.
Conversaram e riram. Por vezes, se tocaram com as mãos desorientadas; abraçaram-se, com a nova música para dançar. Ela ria de seu calção largo. Ele, do piercing naquele umbigo, sempre exposto.
No trabalho de caixa, no supermercado de gringo, ela contava a cena às amigas vizinhas, sempre que não havia freguês. Existiram outras coisas, e ela sabia disso, mas lhe era impossível exprimir tudo em palavras.

domingo, 28 de junho de 2009

Tirou a roupa

Tirou a roupa e pediu o pagamento antecipado, portanto embora quase criança, dava-se aos luxos da mãe, de transformá-la em fonte de renda. Preferia coca-cola, mas experimentou misturar vodka à fanta, portanto embora sóbria nos hábitos, deu para procurar devaneios desabituais. Gostava ainda de brincar de bonecas, quando pegou barriga com um velho caminhoneiro, portanto embora infantil na prática, mostrou-se adulta no primeiro aborto. Pensou em fugir para a cidade grande, mas com dó dos manos ficou mesmo em casa, portanto embora dona de razão própria, preferiu doar-se aos dons da emoção. Ferida crescia com a falta de puerilidades, até aprender a brincar com as armas dos homens, portanto embora mocinha nos sonhos intimistas, virava bandida aos olhos do povo. Jogava cartas com destreza forjada, quando trocou as damas pelos cartões de crédito, portanto embora larápia nas regras do azar, se casou com a sorte de um rico fazendeiro. Conheceu Maurílio na festa dos Santos Reis e foi, portanto, embora... daquele tédio.

sábado, 27 de junho de 2009

Derrubou o braço

Derrubou o braço sobre a mesa, violentamente. O copo na mão perdeu o gelo, no calor do impacto. Gim se foi aos pingos, junto com as pedras. Madeira velha, de móvel sexagenário, coberta de gotas e poças.
No papel amassado que arrancou do bolso viam-se manchas de caneta azul. Ele o abriu aos pedaços, às viradas, aos lados, como se buscasse o lado certo de alguma coisa nessa vida. Enfim estirado, mirou-me duro , baixou as pálpebras e leu pausado:

Amor perdido depende
Do ponto da partida
À ida para a solidão!
Amor perdido depende...


Pediu outro gim, drummonando a fala, mas com certo jeitão-hemingway.

sexta-feira, 26 de junho de 2009

Range a roda

Range a roda abafada, enquanto a tarde desaparece em luz pianíssima. A velha pick-up que serviu de orgulho, hoje transita como coisa, lata andadeira. Como se procurasse um guia para encontrar a estrada; o trajeto laborioso pelo qual foi e voltou como ninguém. Já era da geração das estrelas. Saiu na revista Cruzeiro, reluzente, quando ela foi lançada. Tio Plínio, homem moderno, foi à cidade com Tufão, um árabe puro sangue, que voltou sem graça na carroceria, morrendo de medo de cair e nem pular pulava.
Há doze anos, quando o tio bateu as botas, a pick-up herdou primo Ninho que, embora filho, nem o “plin” do nome, cristal virtuoso que era o Tio Plínio, conseguiu fazer tilintar. A coitada foi ganhando amassadinhos daqui, riscos dali, uma capenga pro lado, um tremor na direção e virou essa. Cheia dos trancos, desbotada, como se jogasse pra trás todos os seus rumores. A cara da tia Olga, coitadinha, viúva do tio.


quinta-feira, 25 de junho de 2009

Meias verdades

Meias verdades facilitavam-lhe a mentira. Vivia e vendia assim. No rentável comércio de automóveis semi-novos, olhava os fregueses fixamente à frente, sem vê-los. Como isso fosse a expressão usual do pão de cada dia, fazia churrascos às noites, todas elas. Amigas de ocasião, às terças-feiras. Futebol com comerciantes afins, na quarta. E se iniciava na quinta o final de semana. Os churrascos voltavam-se à família e aos amigos próximos. A lealdade, por conseguinte, era uma qualidade comprável.
Como na segunda-feira trabalhava até tarde, deixava a garagem às onze da noite quando o motoqueiro parou a sua frente. Queria negociar nos mesmos moldes, mas com métodos distintos. Também era ladrão, mas usava arma. Sem chance de voltar a quilometragem da vida ou tapar com massa os tropeços, bem que tentou empurrar-lhe a BMW preta, único dono. O deselegante bandido, no entanto, não conhecia a sinuosidade do negócio, e descarregou seis tiros. Ao policial que o algemava justificou-se, profissional: “não mexo com carro”.

quarta-feira, 24 de junho de 2009

Banalizar o despertador

Banalizar o despertador não bastaria, era a hora! Com neblina nos olhos, chuvas de suor e nebulosas no cérebro, inclinou o corpo e se levantou, lento. A patroa sonhava com coisas caras, claro, ouviu um enrolado balbuciar dorminhoco: “trufas negras”. Metida, pensou.
Já no ponto de ônibus sentia doer as vistas, sempre que um farol apontava no rumo de suas retinas. Àquela hora havia quase ninguém aflita como ele. Outras três, e estaria no trabalho, martelando o ponto, rodeado de falas e histórias. “Peãozada alegre, não sei o por quê?”.
Passava um pouco das oito quando perdeu um, dos muitos dez dedos que ainda tinha. A serra ligada, nem ligou para a sua dor. Teria direitos trabalhistas, licença de uns dias. Voltaria depois, aleijado. Nesses dias, ouviria a mulher, maldizendo-o, descuidado. As trufas negras permaneceriam lá, nalguma raiz velha ou mato mofado, que ele nem imaginava onde era. Nunca soube de um ônibus para lá.

terça-feira, 23 de junho de 2009

Nosso pai

Nosso pai era homem ralhador. Repreendeu a deus e ao diabo quando os moços da cidade, desses, que vêm pescar só nas férias, o apelidaram de Terceira Margem. Era a sério. Depois se conformou, quando explicaram que era nome da história de um mineirinho, por nome de Rosa. Sossegou, e até meio se orgulhou. Dizia que os homens modernos que nascem e morrem numa clínica, deviam morar também numa clínica. Longe do rio.
Caniço importado, chumbada brilhante, barcão chique, com motor e tudo. Eles só não tinham peixe, o resto estava lá. Nosso pai dizia que esses pra quem dão tudo o que desejam, uma hora não sabem mais o que desejar. Pediam pra ele dar jeito. Ele dava. Sumia na canoa, só com o bambu e umas frutinhas. Voltava empeixado pros bonezinhos NY. Eles iam, nosso pai ficava. Sofri quando eles voltaram, noutras férias. Perguntaram do Terceira Margem, não respondi. Olhei o rio – o rio.

segunda-feira, 22 de junho de 2009

Juntava ferramentas

Juntava ferramentas na medida em que perdia o desejo de trabalhar. Um leve e doce exagero de que a morte o rondava lhe caía do coração, mas com a aflição de garoto internauta no horário em que assiste à missa, rezava para aquilo acabar logo. A única ligação de Arlindo com a beleza da vida era Belinha. Excitava-se até o vigésimo dedo do pé sempre que a via passar, encoleirada ao labrador Clodô.
Dissimulando uma proximidade casual, escondeu sob uma enorme folha de antúrio, aparentemente despojada no canto direito do portão de sua casa, uma sardinha fresca, capaz de atrair o cão. Belinha passou, Clodô parou, insistente. “O cachorro gosta de você”, ela lhe diria. “Adoro animais”, responderia, para início de conversa, e a convidaria para um suco de limão. Fariam-se conhecidos, amigos, por suposto, amantes, não fosse a dignidade do acaso. Ao abocanhar a sardinha, Clodô sofreu uma parada respiratória. Malditos espinhos, esses, que a vida movimenta.

domingo, 21 de junho de 2009

Bebia e se apaixonava

Bebia e se apaixonava, ambos um pouco demais. Após o velório e o enterro do tio, pensou em matar a tia recém enviuvada, na esperança de que o moço loiro da funerária retornasse, com aquele olhar de peixe morto. Com ele iria até o final da vida, pensou entre outro gole, antes de conhecer o novo porteiro do prédio.
Por sorte não cumpria essas maldades da paixão, deixou viva a tia, que era quem lhe curava as ressacas do fígado e da alma, com conselhos e sal de fruta. Sós, sem o tio provedor, viviam juntas e inadimplentes, à beira do despejo, no sala e quarto periférico. Dois anos foi o tempo. O oficial de justiça bateu na porta, com a sentença definitiva: a rua.
Ao ver aquele jovem moreno, de gravata listrada, ela pediu que esperasse um pouquinho. Vestiu a camisola amarela, pediu à tia o conhaque e dois copos, colocou no toca-CDs “Besame mucho”, e ordenou que ele entrasse, sem derradeiras pressas.

sábado, 20 de junho de 2009

No amor como na ira

No amor como na ira a gente se persuade. Provavelmente a ocasião teria feito o ladrão, e do roubo teria nascido a paixão, mas não. A perseguição implacável ao casal na motocicleta não deixava dúvida: era gente errada. Polícia não persegue assim, com uma, duas, três, dezenas de motos, camburões e táticos. Havia um erro em fuga. Esperavam-se prisioneiros, mas a oportunidade era a de fugir.
De repente os tiros, muitos. Uma complexa paisagem óptico-acústica se forma pelos lados, de cima, e sabe Deus senão também de baixo. Não há freio que desfaça o tempo, e os fugitivos bateram, sem clemência, na traseira do ônibus que carregava vidas. Morte imediata, com as mãos ao alto, no asfalto quente.
Ele, trabalhador do comércio. Ela, manicure. Fugiam dos pais, para a lua-de-mel.

sexta-feira, 19 de junho de 2009

Deselegante no trato

Deselegante no trato interno, o maitre trotou na direção do cozinheiro: “és um cavalga dura”, esbravejou, português. Severino, bom menino, disse a ele que o povo, lá, gosta. “Ora pois, se gosta, tu que voltes à tua terra”, ouviu do galego duro, que já mudou de feição e de tônica: “lá gosta, lá gosta... lagosta não tolera inabilidade, ora pá!”.
Desde que chegou a São Paulo, procedente do oeste do Pará, Severino se volta à gastronomia. Picou saladas e infringiu frigideiras, esfregando forte com palha de aço, até riscá-las, inadvertido. Mas cozinhou o sonho em fogo brando. Orgulhoso e soberbo, chegou a primeiro imediato do chef. Faz o bechamel com perfeição, quando o prato é ao thermidor, mas às vezes se esquece do sal na lagosta.

quinta-feira, 18 de junho de 2009

Folhas verdes

Folhas verdes, tardias, brotaram na cabeceira da cama. A cerâmica do piso desfez-se em primitiva areia e cristais. Da luminária, no criado-mudo, refletiu um enorme Sol poente. Os quadros na parede escorreram à condição de tinta formando novas composições, aleatórias e abstratas. Por sorte o teto não se desfez. Àquela hora, Aurélio veria estrelas, mas estava frio, e necessitaria de um grosso edredom para cobrir as constelações. Mirou o pernilongo zumbideiro, com olhos de lince: íris enorme e os globos oculares vacilantes, pra lá e pra cá. Mataria o bicho, se pudesse. Colheria flores, se andasse. Respiraria aliviado, se lhe retirassem os aparelhos.
Todas aquelas prescrições e diálogos médicos. Aquela debilidade presa a tubos. E só alguma sorte, quando exageravam na morfina. Era possível tocar na redenção.

quarta-feira, 17 de junho de 2009

Estudou o onanismo

Estudou o onanismo em lugar do humanismo. Como em quase tudo na vida, confundiu-se relapso, mas relaxou e, por conseqüência óbvia, gozou.
Ouvira dizer que o humanismo seria a fonte de sua salvação e prazer nessa vida, no entanto descobriu rápido que havia diversos significados para o termo, que iam desde o interesse dos sábios do renascimento pelos textos clássicos, em detrimento da escolástica medieval, até o positivismo comtiano. Preferiu algo mais rápido e objetivo para sua satisfação. A ler Petrarca, Rabelais ou Thomas Morus, conheceu Carmela, a bela. Conhecer é modo de dizer, na verdade incorporou-a aos pensamentos, quando começaram trabalhar juntos na lanchonete. Aquelas coxas roliças, os lábios carnudos, nádegas empinadas e olhar matreiro o fizeram se fazer de sabido. No primeiro intervalo para o café, dirigiu-se a ela, de boca cheia: “sou onanista!”. A moça encarou-o, séria, mas logo afrouxou seus sentimentos: “sei fazer coisa melhor!”.

terça-feira, 16 de junho de 2009

Assim que comunicaram

Assim que lhe comunicaram a morte da mãe, Miguel Taborna surpreendeu a todos dirigindo-se para a loja de embalagens, antes mesmo de ir à funerária. Esclareceu rápido, a perguntadores atrevidos, que não iria embalá-la, não. Comprou um enorme rolo de barbante grosso, e sorriu, ainda que meio entristecido: “sei o que faço!”, vociferou misterioso.
Foi o primeiro a estar no velório, nem haviam aberto o caixão com o corpo materno para exposição, quando desenrolou a compra e ateou fogo numa das pontas do tal barbante. O cheiro daquilo era insuportável. Comadres rezadeiras mal chegavam ao “que estais no céu”, do início do Pai Nosso. Parentes diagnosticaram uma putrefação precoce. E apareceu Carlinhos, o Fedido, amigo íntimo de Miguel. Conhecedor das intenções do companheiro, pois ambos tinham o mau hábito de soltar peidos nos velórios alheios, Miguel gargalhou, vencedor: “pode parar, que no da minha mãe eu ganhei!”.

segunda-feira, 15 de junho de 2009

Sem maledicências outras

Sem maledicências outras, quando baixou o enfado ouvindo Chet Baker, ironizou Glauber Rocha e mudou o filme, pensou pedante o texto de Paul Valéry, riu da mesmice de Sean Connery, usufruiu Franz Kafka como alguém que não passava uma barata, achou Jorge Luís Borges um cego, Fernanda Montenegro deslumbrada com a moral de ser séria, Chico Buarque um egocêntrico, Dostoiévisk um cristão problemático, Bertrand Russell um laranja inteligente, Marcel Proust uma bicha mimada que escrevia bem, Manoel de Barros um artesão publicitário de slogans, Portinari um figurativo marqueteiro, Auguste Rodin um oportunista do óbvio, Antunes Filho um pernóstico espevitado, Elis Regina uma afetada da emoção, resolveu dar uma pausa. No fundo, se achou genial por contradizer o óbvio coletivo dos descolados. Os amigos, porém, nunca mais o chamaram para tomar uma.

Do outro lado...

Do outro lado... Tinha o hábito de começar assim seus relatos de um mundo após a morte, no qual teria estado algumas minúsculas vezes. Foi e voltou, contava, exibindo um pedigree de três enfartos, um afogamento em que foi salvo e dois acidentes de carro, nos quais morreram todos os demais envolvidos.
Não se aprofundava na conversa porque, religioso convicto após as tantas idas e vindas, não chegara ao inferno, desconhecia o purgatório e sequer se aproximara do céu. Dizia da existência de um túnel escuro, que terminava na luz.
Só se deu conta de que falava bobagens quando seu tio Carlos lhe disse para tomar juízo. “Todos aqui vão pensar que você é louco”. Olhou a sua volta e refletiu sobre as palavras do tio, sábias, pensou. Tio Carlos tinha know how, afinal morrera quando ele ainda era criança...

domingo, 14 de junho de 2009

Birrento contumaz

Birrento contumaz, se fosse voz de morto, seria gemido de alma penada. Nas manhãs ensolaradas, de aspecto esplêndido, uivava aos arrastos de choro e gritos, daqueles que saem agudos da amídala, palatina e epiglote para ganhar o quarteirão, e os ouvidos de todos os vizinhos.
Era, Marcelo, uma criança de vontades. Outros que engolissem sua sonoridade pernóstica, seus escândalos presumidos ou desejos afetados. O vizinho imediato, cirurgião veterinário, bem que tentou não se importar, mas como dormir com aquelas estridências?
Contam que fez a extração das cordas vocais com anestesia local, numa tardinha em que o peste escapou da mãe e foi para a rua, berrar com as formigas. Todos estranharam a demora e o retorno, com aquelas marquinhas de corte e pontos cirúrgicos. Chamaram o síndico, o padre, a polícia e os parentes, mas Marcelo não disse uma palavra sobre o que lhe ocorrera.
Sua mímica de choro e esperneares, agora, era pura comédia de gestos aos olhos dos outros. Doce silêncio.

sábado, 13 de junho de 2009

Vencida a peleia

Vencida a peleia, Oscar pediu outra cachaça. Sujeito besta, aquele Germano. Veja se pode, tirar satisfação bem no bar. Enquanto descia os sorvidos goles, o homem destilava conversas com Deus, mas a sua argumentação era do Diabo, pois se sabia, a partir dali, um condenado.
Quando puxou o canivete para os insultos de Germano até pensou em Antonia, mulher do tal. Foi pior. Da pena o pensamento voou para o tesão. Aquela era o fogo em si. Uma perdida previsível.
A polícia não tardaria. Ele pagou a pinga. Todos olharam-no indignados. Flagrante não sofreria, nem com os homens, nem com Deus. Antonia que explicasse seus pecados.

sexta-feira, 12 de junho de 2009

Reprimendas descrentes

Reprimendas descrentes não bastaram. Ironias ou gozações, dizia que eram contaminações do astral, quadraturas planetárias ou energias presas. Falta de bom senso e incenso, isso é que eram.
Quando nos conhecemos, na livraria do centro, me disse que havia magia nos textos de Guimarães Rosa. Atentei. Justo ele, tão católico. Depois Flora descambou para as prateleiras esotéricas. E era tarde. Havíamos lido, juntos, às vezes abraçados, todo o Grande sertão: veredas, ouvindo música de harpa e cítara, cheirando essências e tomando chá, de artemísia ou do verde. Fomos morar no mato, mas a essa altura eu já forçava o cósmico. A gota foi quando ela me mandou desligar a internet, porque desarmonizava o ambiente, desequilibrava sabe Deus quais forças. Fechei o notebook na cara de Flora, e fui procurar outro sinal de wireless.

quinta-feira, 11 de junho de 2009

A fotografia na parede

A fotografia na parede era um pretexto para falar do afeto. Um espaço, feito aquele, que ficava atrás do corpo de Cosmo, e do qual jamais conseguia ver nada. Todos temos tais espaços cegos que nos persegue, mas ele o considerava sagrado. Dizia morar ali o seu anjo da guarda. Na sala, frente às imagens do avô e da avó, era assim. Moraram, de fato, ali na casa, onde agora morava Cosmo. E os apontava aos visitantes: - Vovó era um doce. Vovô, um trator.
Ela doceira, de mão cheia, ele agricultor, que trabalhava de sol a sol. Ambos concediam, na visão de Cosmo, à definição presente de suas personalidades, o fruto de seus labores passados. A viva explicação do neto tinha algo do silencioso flutuar de uma recordação. Quando saía à lida, e lhes virava as costas, Cosmo jamais esquecia um simulado “tchau” reverencioso. Como se quisesse apenas lhes apresentar o seu anjo da guarda.


quarta-feira, 10 de junho de 2009

Justo ele

Justo ele, touro reprodutor, foi se esquecer da função. Não era boi. Boi é bicho castrado, que vai para céu. Marido da vaca, destinado ao abate, puxador de carros e outros deméritos que o homem lhe impõe. Touro, contrário às coisas, tem carne esquisita, dura. Não serve para servir.
O coitado tinha número ao invés de nome. Nome mesmo, só quem lhe dava é Sebastião, o tratador, para o dono era PO-423, e nem se importava que lhe tivessem nomeado, em fazenda alheia, o pai e a mãe: Enlevo da Mangabeira e Bruma de Avalon. Lá ele era mesmo o PO-423, fruto de melhoramento genético.
Frustrado, o dono, fazendeiro rico, viu fracassar seu intento cafetão. O PO-423, nada. Dizem que depois disso o abandonou num pasto, junto às vacas e aos bois sem raça... Sebastião só ri. “Poderoso do Tião” anda famoso. “Fez pra mais de cem bezerros pobrinhos”...

terça-feira, 9 de junho de 2009

Chamava de balangadeira

Chamava de balangadeira a sólida cadeira de madeira maciça vergada, de permanência hereditária no fundo da varanda. Fora do trisavô, passada ao bisa, antes de confortar o avô, que a presenteou ao pai. Feita para ver vistas, pelos olhos passados mostrou paisagens bucólicas, no sítio da família. Pelo olhar presente, erguida ao sexto andar, dava para um triste edifício e suas janelas medíocres.
Pena que os olhos da ocupante Wanderléia não viam mais nada. Estirada como estava para a fotografia do perito, jazia sem ritmo para frente ou para trás. Sem a tonteira dos balançares embriagados ou o cochilo saudável do pós-almoço. Ao investigador mal educado que perguntou duro onde ele havia colocado a vítima, o traído aflito apontou a herança passional: - ali, na balangadeira...

segunda-feira, 8 de junho de 2009

Fiéis ao pecado

Fiéis ao pecado como de fato eram, os dois irmãos belos de cara, mas horríveis de princípios, receberam no curso de Letras o apelido de flores do mal. Feito lâminas sonoras, falavam aos cortes, palavras que fendiam almas e ofendiam qualidades.
Gêmeos no tédio e no ideal, deram para ler Baudelaire a qualquer flâneur incauto. Até a passagem do furacão Homero, e a cólera de Aquiles. Aluno da engenharia, o primeiro era dado a aventuras, ilíadas e cachaçadas. Aquiles, seu camarada da química, mal caía no sono já levantava para o chope.
Currículos tão distintos não poderiam terminar em poesia. Aquiles foi direto no tendão: “meu negócio é Apollinaire”. Os flores do mal se entreolharam. Um tempo curtíssimo, para uma gargalhada homérica.

domingo, 7 de junho de 2009

Versão sem remix

Versão sem remix de um rap rasteiro, de sua boca só saia cacetes e porras, além de eventuais filhas-das-putas. Gritava a toa, por razões que não tinha, feito adolescente histérica quando vê seu paquera do outro lado da rua. Deu para promover o tráfico, essencial para o consumo, entre as amigas chiques do condomínio fechado. Cheiros e sabores para o êxtase das mal amadas senhoras. Dos bons e à vista.
Só não contou com a raiva gratuita de Carmen Letícia de Abreu e Brás. Então fez o que fez. Pediu ao avião uma triplicação do psicoativo ecstasy, e deu quatro comprimidos à Carminha: branco, azul, amarelo e laranja. Disse à pobre rica que agora “era assim” que se tomava. A moribunda ainda implorou água, mas ela pediu uma pizza, de carne-de-sol com mussarela.

sábado, 6 de junho de 2009

Fez tanta sala

Fez tanta sala para a vida, que acabou perdendo a pose. Sem varanda e sem cozinha, sentia-se marcada por Deus com o sinal das grandes predestinadas, enquanto descia flagelada às grutas da vileza humana. Meio madame, meio Almodóvar em preto e branco, se casou com o dono da enorme escola particular, para retomar glórias e shoppings.
A ação sempre afasta o mau sentimento, e se sentiu bem, chacoalhando as cadeiras nas camas e mesas dos ricos do lugar. Pilotou banquetes, saboreou empregados, pariu herdeiros. Sorridente e desbocada: - A vida é um lingerie vermelho.
No afã de uma nova jóia, ajoelhou-se ao colo do marido ordinário e esperou o tapa: - Já te dei um carro essa semana...

sexta-feira, 5 de junho de 2009

Odiava a imaginação

Odiava a imaginação, exatamente porque não tinha nenhuma. Ai do funcionário, colega ou cidadão do lugarejo que apresentasse (ou pior, que escrevesse) uma boa ideia qualquer. Sua intimidade com a mediocridade logo acendia o sinal de alerta. Tratava de enquadrar a coisa como ideia perigosa, ímpia, atrevida, o pobre de talento.
Então elogiava outrem, sempre na presença daquele que pretendia rebaixar, rival do elogiado. Até o dia em que o silencioso e criativo Felipe lhe devolveu a punição: “ninguém elogia com boas intenções”, disse, citando Miguel de Unamuno, que obviamente Fernando, o sem-talento, não lera. Foi a conta. Este último, em síncope nervosa, soltou-lhe impropérios de nanos calões. E Felipe agradeceu-lhe: isso, sim, é elogio!

quinta-feira, 4 de junho de 2009

Inquieta como abelhas

Inquieta como abelhas, Fabiana só tinha sentimentos profundos por pessoas ou situações que lhe trouxessem vantagens. Diante delas sua alma bradava tal gata no cio. E foi numa dessas importantes reuniões de condomínio que conheceu Orestes, de camisa lacoste e conversa mansa.
Ele logo reconheceu as muitas superficialidades da moça esbelta, que se aproximara falando do tempo chuvoso. Espirituoso, ofereceu-lhe carona no elevador e riu. Ela aceitou, e riu também. Olharam-se pelos quatro espelhos, ali fechados. O caráter provisório conjugava-lhes os verbos ter e estar. Tinham-no e estavam em. Ela alisou o jacaré com o indicador, displicente. “Você tem bom gosto”, disse a ele, sedutora. Uma forma sutil de se auto-elogiar...

quarta-feira, 3 de junho de 2009

Separados na fúria

Separados na fúria, Fúlvio jurava de pés juntos que, de Simone, não queria sequer sentir o perfume. O intrometido almíscar mais de uma vez impingiu surpresas nostálgicas às narinas do rapaz, acostumado a habitar o mundo da lua, desde o rompimento com a moça. Virava a cabeça, vira-e-mexe vazia, ao mais ínfimo aroma daquela fragrância rasteira, cujas ordinárias gotas misturara inúmeras vezes ao seu suor apaixonado.
Adotaria um cheiro cítrico floral, como conduta radical, à volátil lembrança de Simone. Seu cérebro das emoções petrificaria os neurônios, até que o tempo lhe trouxesse o olfato cético às cavidades nasais sem estímulo.
Passaram-se os anos e aromas. Armanis, bvlgaris, ruas, casas ácidas e doces cabanas, quando enfim Fúlvio falou: “esse mundo não cheira nem fede”...

terça-feira, 2 de junho de 2009

A angelical devassidão

A angelical devassidão de Mara Magali sofria um branco naquela hora. Como todas as noivas, demonstrava a pureza do pudor e a perplexidade característica da data. Nem seriam ultrajantes os seus pensamentos em Luiz Gustavo, ainda que o noivo se chamasse Carlos Henrique.
Tão traído quanto Mendelssohn que, desavisado, emprestava sem direitos autorais a sua marcha nupcial, Henriquinho, como queriam os parentes, fora tomado de alegre surpresa quando a noiva, um mês antes, lhe informou da gravidez. Chorou do amor presente, e lhe jurou paixão eterna. A gráfica rápida se encarregou dos convites, o tráfico de influência cristã da tia carola assegurou o padre, o brechó entrou com o vestido.
O certo improviso não teria sido obstáculo nem causado transtorno ao êxito da cerimônia. Especialmente se Mara Magali tivesse dito “sim”.

segunda-feira, 1 de junho de 2009

Há entornos naquela vila

Há entornos naquela vila onde gente de bem se recusa a passar. São áreas de alto relevo geográfico, mas de baixa relevância social, como os morros cariocas, se bem me entendem. Nem Eurípedes, meu motorista, gosta de transitar por lá. Infelizmente Mãe Jandira reside naquela coisa, e se recusa a atender em domicílio aqui na zona sul, a burra. Nunca ouvi falar que entidades só baixassem num endereço certo, mas ela diz que são as guinés, arrudas e alecrins do seu quintal. Os espíritos vêm pelo cheiro. Eu bem que poderia mandar fazer uma horta com essas coisas, hidropônica, porque não tenho e odeio terra, na varanda do apartamento, só para trazer a Mãe Jandira e não me submeter aquele lugareiro.
Depois falam mal quando a gente perde a boa fé. É o que dá mexer com gentinha...