quarta-feira, 30 de junho de 2010

Quadro esboçado

Quadro esboçado, espaço exíguo. No sofá, reproduções da felicidade dos retratos: casal às pontas, crianças, pipocas e copos na mão, cachorro à frente, no chão. Ela tem o enigmático olhar na tela de alguma tevê, que está onde estamos: então olha pra frente, para nós, espectadores. Ele tem o olhar de homem que acaricia interlocutores, presta favores e atenção. Meninos, não. Pouco ou nada eternizam em suas concentrações dispersas, desafios em crescimento, representações pueris. Não custa apontar os olhos para a esquerda e para a direita, só pelo prazer de ver o cachorro seguindo as sutilezas de nossa visão. Demonstra ser o mais atento de ali; o espírito lúdico ou a compreensão ligeira em forma de vida. Há uma ponta de poltrona vermelha à esquerda, devia ser da avó que morreu faz pouco. De algum pintor feito Velázquez, com certeza não era...

terça-feira, 29 de junho de 2010

Estamos envoltos

Estamos envoltos em mato denso. Rubião foi velado no remanso de córrego curto. Sabe-se lá se de lá aqui já virou comida de jacaré. Ele era um líder nato, e eu sempre achei que os líderes autênticos morrem primeiro. Mas foi pura sorte... a nossa. Ele nem viu quando a fumaça levantou da asa esquerda. Na batida não existia mais. Alves e eu, sim, nos tocamos as mãos, como quem cumprimenta a vida e o burburinho de aves. Alves conseguiu desentortar a porta e deixar a cara num raio de sol tênue, que vazava entre as folhagens. Eu destorci o tornozelo torcido pra sair. Aí, verde escuro. Rubião saberia utilizar a bússola do painel. Nem sei onde fica o painel, e Alves não vê. Vista turva, diz com a cara mais rasgada desse mundo. Devem vir nos procurar, porque procuram aviões perdidos na mata. Mas já escureceu e amanheceu algumas vezes, perdi a conta. A ponto de esconder de Alves esse chiclete de hortelã que guardo no bolso...

segunda-feira, 28 de junho de 2010

Eram duas janelas

Eram duas janelas diminutas, como os olhos de um rato acuado na sombra. Por elas, Idalina olhava a rua parcimoniosamente movimentada. Tinha a casa, ideias e dinheiro guardado, mas não tinha a lenda como certeza. Inventara há tanto que fora feliz com o também imaginário marido aviador, que seus pensamentos já voavam pela incerteza da história. Era maquiladora de mortos por profissão: sempre pronta a deixar belos os rostos sem vida. Naquela noite, depois de responder alguns e-mails de relacionamento, ficou indecisa entre uma taça de vinho ou os pontos do tricô. Optou pelos dois: a imprecisão do cérebro e a destreza das mãos técnicas. Fez que misturou incompatibilidades, dada a sua pouca resistência às bebidas alcoólicas. Quando bateram à porta, Idalina já estava fora dos pontos. Tricotava torto sem reparos. Atendeu ao moço da funerária com um sorriso maroto: “Entre, Tácito, tome uma taça do vinho que abri. A feiúra daquele morto pode esperar o encontro com Deus, mas sua Idalininha aqui está como o Diabo gosta, pela hora da morte!”.

domingo, 27 de junho de 2010

Quando coroinha


Quando coroinha badalou o sino para a frente e para trás, cintilando o brilho prata do objeto no reflexo da luz rasteira da manhã. Tentava desvendar fenômenos e desejos da fé, que só lhe debruçou à janela da alma tempos depois. Desmanchou um noivado e a zaga do time de futebol por causa disso. A centelha divina houvera lhe proposto um isolamento, lá pros lados do Morro do Quebra Cabaço, que era como a gente do lugar denominava uma montanhazinha erma, a poucos quilômetros dali. Um pouco por exibicionismo, outro por espírito de imitação, tornou-se eremita. Senhor de seu Sol, sua Lua e do radinho de pilha que o acompanhava no isolamento, com a função de conferir-lhe a mínima noção do mundo lá de fora. Comeu frutas e gafanhotos, bebeu mel e chuvas, plantou mandioca, porque mais não sabia. Paramentado de profeta, sob os clarins de imaginárias trombetas, desceu à vila meses depois, para pedir doações que lhes garantisse algo essencial: um bocado de sal e as pilhas. Foi quando avistou no jornal da banca a foto da debutante Estela, linda, estrela. Retornou à casa do pai, e anunciou a sua redenção: “não dá pra ser profeta sério com tanta mídia!”.

sábado, 26 de junho de 2010

Uma sensação

Uma sensação de para quê tomou Elpídio. Aquela disputa pelo espaço urbano, travada entre um bando de agonizantes contra outro de famintos terminais, é o que deixa a vila perneta, cega ou maneta, concluía. Com a turvação que precede os assassinatos caminhou até as proximidades do barraco de Jeceara, sob o entardecer característico do lugar, que se parecia com uma flor carnívora. Sua sombra já não o seguia. O teria abandonado em algum dos trabalhos anteriores, sempre ao início das noites, ao som de onomatopéias, fonemas coléricos ou com ares de sedução. Algo nele o induzia a não pensar antes da obra em si, a ater-se apenas à técnica, para não se identificar como um soldado raso de uma guerra perdida. Conciliador do irreconciliável. Bateu três vezes na porta, pra dar sorte, Jeceara atendeu. Elpídio poderia dar-se ao luxo de dizer qualquer barbaridade com aquela faca na mão. Teria respostas para todas as dúvidas da moça marcada, mas não disse nada, cumpriu o ofício. Deu desconto ao mandante pela facilidade do serviço. A si, a auto-justificativa foi ainda mais leviana: “ela teria se suicidado mesmo”.

sexta-feira, 25 de junho de 2010

De minha parte

De minha parte o que é, é; o que é que é isso, está combinado; é e é, e pronto. É justo, não é? É fácil, depois, dizer que não é. É uma desculpa daqui; é uma desconversa dali; é um monte de não é bem assim. Já falei: vendo os filhotes, mas só se levarem a dupla, o par, os dois juntinhos. Essa raça não sabe viver sozinha, sabe não. Então não vou jogar os bichinhos na fogueira da vida. Porque jogam, sabe? Tem gente aí que não está nem aí. Aí, eu, não! Aí se depois separam os bichos, já sabem. Aí é que eu quero ver! Vão ter comigo, aí vão! Não é chatice ou marcação, não. Mas eu sei como é essa gente aí. Aí, quando eu era pequeno, minha mãe ralhava porque dizia que eu repetia as coisas, essas coisas. Na escola, a professora me chamou de “re-dun-dan-te”, assim, redundante dita aos soquinhos. Não sei, acho que repito aí uma coisinha ou outra. Não gosto de nada sozinho: coisa dita uma só vez, parece que não está dita. Então não vendo um filhote só. Um só, não. Tem que ser os dois.

quinta-feira, 24 de junho de 2010

A aparência

A aparência, de duas uma: ou convenceria o velho fazendeiro a adotá-la em seu afeto, como fazia com terras, filhos e vacas, nessa ordem; ou a expugná-la como estranha interesseira e, portanto, uma ameaça a quem, como ele, teme até o sinal da cruz, porque divide em três os beneficiários do nome: pai, filho e espírito-santo.
Carla Mescalina foi vestida com preto básico, emprestadas pérolas, pintura à altura e um sorriso santo, que ninguém julgaria falso. Ninguém exceto ele, o velho, pai do noivo submisso que ela laçara numa festa country. Como quem rodeia a rês antes de mandar o valor num lance, o esperto latifundiário mediu Mesca de cima para baixo, de frente e por trás, da cabeça aos pés. “Bonito o seu cabelo, moça”, falou sonso. Para completar antes que ela pudesse ser-lhe grata, foi justificando a negativa: “...é que aqui a gente não cruza com loiras. Ciência genética, dona. Última palavra no nosso negócio!”.

quarta-feira, 23 de junho de 2010

O ocaso não vinha

O ocaso não vinha ao caso, trocadilhou com a obviedade de um software o sonso Gentil, maldoso e nerd. Não se poderia dizer que ele se separava, na verdade, desconectava-se de Veruska, assim, meio control-alt-del, um diabo de um alt-f4, um consolidade tchau. Deu pau na moça! Travou o utilitário, a coitada, que só pensava num vírus para vingar-se. Um cavalo-de tróia que devolvesse a Gentil, quando ele o abrisse, as pandóricas caixas de picuinhas que ele lhe impusera, durante aqueles três meses de namoro 24 horas on-line. “Estar juntos não se resume a torpedos e e-mails”, ele disse à amiga Rê pelo twitter. Gentil sentiu maldade. Lançou na rede as instigantes fotos que fizera da ex-namorada com a câmera fraca do celular, numa tarde lan-house e motel. Veruska não se deixou deletar. Enviou newsletter a todos os amigos, copycolando as fotos, às quais acrescentou a legenda: “vejam o que Gentil perdeu nesse tempo em que ficou só fotografando”. Dizem que depois da peleja virtual ele se mudou para a Secund Life, definitivamente... e não deu o endereço pra ninguém.

terça-feira, 22 de junho de 2010

E aí começou

E aí começou a solidão e a noite. Em coisas sem importância, como biscoitos untados na manteiga sem sal, Bete e Tiago já falavam pausadamente o quase nada. Com a visão de bem querer, que então não havia, olhavam o mundo passando sóbrio e indiferente. Ele nem perguntava aonde ela ia. Ela achava que fazia bem ao adotar a timidez ou zombaria. Trauteava antigas canções no lugar do silêncio. E aí chegou o estorvo e a tia do interior. Inevitável que a velha descortinasse o clima. Maço de cigarros pela metade, batom, pó de arroz, rímel e lenços de papel entulhavam a convivência. Conversas fora de tom, horas incertas para tudo e pior: um pintcher ardido que nunca desacompanhava a anciã vaidosa e alcoólatra. Extasiou a casa, mesmo aquela, que já não existia. Couve-de-bruxelas com limão, diária e ritualmente, foi a conta. Bete e Tiago voltaram ao diálogo franco, abriram verdades, infringiram o tédio e optaram pelo pé na bunda da tia mala. Vivem uma lua-de-mel sem volta e compassada!

segunda-feira, 21 de junho de 2010

O garçom jogava

O garçom jogava gelo nos mictórios. Com mesuras todas, explicava a Roberval que o mal era o calor da urina; provocava o cheiro. Roberval acreditava que não, não disse, usou. Na hora abissal, ao aroma nauseabundo, tomou a decisão transcendental de derreter cada pedra com as mãos inquietas dirigindo os jatos. Pouca cerveja, concluiu com boca seca. Voltou à mesa preenchida de cascos vazios, só lembrando. Um palpitar lhe aumentava a competitividade contra o garçom e o freezer. Um levava, outro fazia inimigos. Roberval nunca vencera em nada. Seu fígado já dava o jogo por perdido. Então pensou na trapaça! A cerveja não haveria de passar por todo ele: boca, saliva, esôfago, estômago, dar uma volta no fígado, intestino, rins e bexiga. Seria lançada diretamente sobre as pedras de gelo. Disfarçou com a garrafa, e entrou no banheiro, certo da vitória. Mas as pedras não derretiam. A cerveja era gelada. Decidiu aquecê-la, como pode. Para seu mal, o amigo Marcos entrou no banheiro. Roberval jamais conseguiu eliminar o apelido de vasilhame.

domingo, 20 de junho de 2010

Parece gente

Parece gente esse antúrio sensível. Folhas feito as caras dos portraits de Modigliane; orelhas em pé, assim, cachorro atento, lisonjeando-se de si mesmo, como se pudesse dizer, Me deixe em paz, então tal gato. Tem rugas nos membros e entranhas, prontas a renovarem a vida depois da morte, como se o tronco fosse a própria humanidade, sem intermediários entre as pessoas e Deus. É ateu o antúrio? Na florada, não! Demonstra sua fé naquela exposição torta e ereta, que pessoas querem enxergar fálica nas suas inseguranças. O antúrio é substantivo, masculino, singular. Quando ascende com a flor é puro exibicionismo, sem a essencial intenção da cópula. Flor para ele é fruto, talvez gozo, nunca um flerte ou processo de sedução. Falta a ele falar claramente, ao invés de seguir a luz em silêncio. Saberíamos por que se mantém planta...

sábado, 19 de junho de 2010

Não havia maçã

Não havia maçã que desse. Descia sacos e pacotes da prateleira horti-fruti para alimentar o menino amargo. Nada de nada, insistia o peste, a não ser maçãs. Psicólogo pediu respeito à vontade. Médico disse que morreria. Pai-de-santo tentou pipoca. Nutricionista mandou bater... com leite, ao contrário do avô sensato, que até emprestou uma varinha de marmelo. Era maçã até o cansaço. Maçã quae sera tamen. Maçã dos quintos dos infernos. Sugerida a fome, aceito o castigo. Fora a vizinha Ofélia quem propôs a dieta. Dois dias, moleque azul. Três, já não se levantava da cama. Terminaria se suicidando, porque sim, petulantemente, por que não? No quarto, a mãe condescendeu e foi à cozinha. Maçãs, muitas delas. Levou-as picadas e sem as cascas, no gosto dele. Fez que não, com olhar acerado e arrogante. Ranhetou. Balbuciou algo como arroz, como feijão, como bife, como batatas fritas. Fome é sempre eficaz em genocídios!

sexta-feira, 18 de junho de 2010

Dotava o ex-marido


Dotava o ex-marido de vícios e defeitos. Coisas do foro íntimo, batidas com pontas de pimenta, vinagre e páprica picante. Procurava, então, expressar da maneira mais ajustada que pudesse os seus pensamentos e, por essa maneira, decidiu que escreveria um livro de contos à simplesmente tagarelar com as amigas nem tão próximas: “Flatulências sonoras sob o cobertor”, “Respingos que não acham vaso”, “Uma havaiana verde na mesa de jantar”, “Lâmpadas apagadas, corte de energia”, “Bitucas na taça de cristal”, “Cueca e toalha: usos e afinidades”, “O indicador que não deixou pelos no nariz”, “O violento esgrima com palito de dentes”, “O risco marrom por trás da cueca” e outros, cujos conteúdos remetiam mais a um monstro do que a um homem. No lançamento, convidou a ex-sogra. Agradou-a com bombons silvestres, mas não se descuidou na dedicatória: “toma, que o filho é seu!”.

quinta-feira, 17 de junho de 2010

O marido era preto

O marido era preto e leve; Valéria amarela, pesada. Dois improváveis, como poucos se vêem, viram-se num parque sem tempo, hora do almoço. Raras enciclopédias ele vendeu naquele dia ambulante. Faxinas desfeitas pelos alunos do colégio ela as refez, paciente. Na pausa do meio-dia, iniciariam os meses, anos. Olhos e coração do marido se encheram de valores, valerias, Valéria. Olhos puxados, corpo estendido, alargado ao banco, queda ao flerte. No material do trabalho ele descansou a vista na letra esse, sushi, o começo com comida convidada. Decerto daria amor. Deu. Pureza tanta. Viviam porque se viam. Contou que quis ser contador. Ela, bailarina. Contabilizaram danças, goles de guaranás, até sushi com feijoada pros dois gostos comeram. Velhinhos vivem num sorriso usado. Foram três por aí, com o nipo-afro-descendentezinho à frente. Quatro, na tentativa de um casal. Cinco, quando era chega, mas chegou sem avisar. Amam-se no futuro, na cadeira do quintal, sem reclamações de esquecimentos, monotonia ou morte que os separe.

(À contista gaúcha Ana Santos, autora do (futuro) livro O que faltava ao peixe)



quarta-feira, 16 de junho de 2010

Imaginei que a luz

Imaginei que a luz da santa fosse de um carrinho de pipoca. Vista à distância, mas tão próxima de casa, ela provavelmente nem faz milagre. Passou a habitar uma pequena capela feita de alvenaria por algum devoto. À noite tem lá sua lâmpada acesa sem cessar: fraca, amarelada. Verão aos besourinhos marrons e pingos de chuva, mas protegida por portas de vidro. Daí a confusão turva com a imagem de um pipoqueiro. Fico imaginando se o meu mal não é muita fome e pouca fé. Acho que não! Foi confusão leviana, desatenta. Desde muito cedo havia manhãs de domingo e missa. Tarde, quermesse com pipocas na mesma igreja. Essas associações, com o tempo, emaranham-se. Acho que trazem a memória remota ao presente do indicativo. Minha avó, da cama de onde não sai mais, vê operários e pianistas inexistentes nos limites quadrados do seu quarto. Trabalho e arte. Deve ser uma espécie de milagre, como aquele que transforma o milho em pipoca.

terça-feira, 15 de junho de 2010

Por um lado

Por um lado torcia pelo seu time, o problema era pelo outro. Uma estranha compaixão lhe tomava a alma, como num movimento de dança, cujos passos iam e vinham. A partida transcorria com a lógica da maldade humana. Ambos lutavam pela derrota alheia, só André é que tinha lá suas dúvidas. Chegou a ser condenado, naquela sala, por falta de caráter. Ouviu indagações secas: por que não te calas? Chateou-se com o rancor incontido dos companheiros de torcida. Fazer o quê? Era-lhe um vício agradável desviar das veias a adrenalina sonsa. Mas no primeiro gol do adversário, mortificou-se. No segundo, trocou o ar terno pela ira morna. Foi no terceiro, porém, que derrubou cerveja gelada no livro de filosofia zen. Cuspiu no prato antes de comer e corneteou em tom abusivo: “timinho de merda!”. Foi pouco, para o sopapo que tomou, sem ver de onde veio.

segunda-feira, 14 de junho de 2010

Farto, bateu asas

Farto, bateu asas. Não era abominável ou malcriado; “sabe o que quer”, observaria a mãe, ao contrário dos outros. Mas a casa onde fora comer era de amigos. Ele saiu da mesa para virar assunto, depois de um agonizante combate entre o peixe ao forno e a carne assada. Interrompeu sem cerimônia o solene jantar e lançou-se no sofá vermelho. Pior, pediu um palito de dentes ao mordomo, bem no centro do obscuro olhar da anfitriã. “Que gracinha, só falta arrotar!”, ironizou o pai da noiva. A moça, coitada, sentiu-se um feto em plena traição ignóbil. Com graça e elegância pediu licença a todos, para juntar-se ao seu. Seu noivo. Seu sem-noção. Seu estúpido e indigesto convidado de honra, cuja mercê do convite tivera o propósito ingênuo e formal de pedir-lhe a mão. No pé do ouvido do parceiro ela ainda murmurou dissimulada: “volte pra mesa, amorzinho, estão todos te esperando”. O rapaz levantou rápido, deu dois tapas na barriga com ambas as mãos, e dirigiu rápido ao corredor central, sob a vista de todos: “aí, moçada, vou ca.., digo, vou ali no banheiro e já volto. Me esperem pro doção de leite, heim?”.

domingo, 13 de junho de 2010

Nem trocaram uma

Nem trocaram uma única palavra. Arrisquei e ganhei. Por suposto Toninho e Laura se silenciariam. Ele, com aquela voz esgarçada que tinha, estava de fato magoado. Ela, dos lábios de fígado, nem aí. Debaixo da garoa o silêncio é uma graça divina. Sob o aguaceiro, uma imposição.
Depois, pão molhado já não desce bem. Ela, antes, insistiu. Laura era uma obsessiva gelada de reservas. Toninho, um insolente turrão. Mas, ali não. Não disse nada. Era por razão de gosto mesmo. Ele odiava aquilo. Perseverante, a Laura. Fez que fez e percorreu lépida o espaço entre a felicidade e a padaria. Pediu logo quatrocentos gramas, cortadas bem fininhas. Quase transparente, que por um triz não se pudesse ver do outro lado, Laura disse. Pagou pelo prazer, alheia às considerações do namorado. Apostei com Alfredo que, se ela insistisse, aquele gesto sem importância poderia significar o fim. Não deu outra. Não joguei com a sorte. Na verdade, eu sabia, desde pequeno Toninho odeia mortadela.

sábado, 12 de junho de 2010

Enrugada por afagos

Enrugada por afagos interesseiros, Dasdores quase nunca se expunha à luz do dia. As más línguas costumavam referir-se a ela como “peixe-remo”, menos porque arrastasse os barcos mais improváveis do que por tratar-se de um animal que vive nas profundezas. Rancor do passado é nome dessa desavença. Dasdores fora da época dos bordeis, quando se achou na vida. E participou, sempre como protagonista, da descendência dos luxuosos apartamentos às esquinas mal iluminadas. Trabalho duro, cada dia mais escasso. Seria a fome, não fosse Doutor Petrônio, antigo freguês que virou companheiro, cuja mulher nunca soube que durante os quarenta anos de Banco do Brasil sempre recebera uma cesta básica. “Tá aqui o macarrão, Dasdores!”, ele teatraliza todo o quinto dia útil de cada mês. As outras olham aquilo com desdém. Incorrigíveis, saem os dois de mãos dadas até a quitinete onde ela mora. A exceção do enlace é um beijo na boca, agora menos caloroso, mas fiel. Um trago de vinho, que já foi do Porto, e começa a inesquecível sessão das mãos dadas e de Roberto Carlos, que cantam juntos, porque conhecem todas as letras.

sexta-feira, 11 de junho de 2010

Tentaria não ser

Tentaria não ser perfeito, mas até pra te dizer isso, Cleide, já penso que poderia cometer um “gerundismo”: estar errando! Então, ficarei indiferente, como o resto do cosmo quando chove somente aqui sobre a minha casa. Não posso dizer ao Adalberto o que você quer que eu diga. Eu vi, Cleide, era você mesma! Toda apaixonada e cheia dos dengos com o Fabrício. Então essa mulher não existe? Acaba de ser inventada por mim? Eu não me perdoaria nunca, e o Adalberto, então... Ele anda uma onça, Cleidinha. Agora, você me conhece, não consigo ficar bravo nem quando todo mundo esbanja espuma pela boca. A outra coisa que não consigo é praticar impostura, matraquear falsidades. Vá lá você. Entenda-se com ele. Adalberto, quando manso, é muito bom. A única coisa pela qual sinto ódio mortal é o esquecimento. Eu não esqueço, Cleide. Mas sossegue, posso até não falar nada. Assim não me traio. Afinal, se alguém aqui fez isso, não fui eu.

quinta-feira, 10 de junho de 2010

A ordem das ondas

A ordem das ondas não altera o rumo dos peixes. Dado aos ditados, provérbios e anexins, notadamente aqueles acrescidos de seus torpes trocadilhos, Milovan, filho de Milton e Ovanilde (entendeu? Ele dizia), era a própria expressão da estupidez. Falava alto e deixava fraturas expostas até em invertebrados. Típico sem-cerimônia, freqüentava inúmeras festas, as muitas para as quais, evidentemente, não tinha sido convidado, e as raríssimas em que o anfitrião patife, a fim de causar desarranjo entre os convidados, o chamava para “comer umas coisinhas”. Foi de penetra que Milovan exacerbou a lucidez alheia. Levou uma corneta (embora nem precisasse, porque também a imitava com uma contração entre os lábios e as bochechas), e se pôs a tocá-la sempre que via uma mocinha bonita. O vazio veio do nada. Um casal aqui, uma morena ali e um grupinho acolá. Todos saíram à francesa. No saldo, Milovan e o dono da casa, o telefone tocou. Do outro lado, uma voz sussurrou maliciosa: “com bobo não se brinca”.

quarta-feira, 9 de junho de 2010

Prudência e pão

Prudência e pão não faltavam a José Maria. Já a criatividade desgrudava um pouco de seus adestrados predicados. Tinha escassas astúcias, fazer o quê? Sabia abrir a braguilha para um saudável xixi. Entendia alguns desenhos animados, especialmente aqueles sem muito ânimo. Na rua, vendia trufas de chocolate, às vezes pão de mel... e sua alegria beirava o êxtase quando recebia do freguês o dinheiro trocado. Conta para troco representava uma melancolia a mais. Era, enfim, a própria virtude solipsista num mundo de mutretas.O mesmo acaso que o fez desavisado naquela blitz à casa de vídeo pocker em que vendia trufas, viria a ser parceiro de seus sonhos estimulados. Percebendo a ausência de alguns parafusos no vendedor autônomo, o delegado irônico tratou de designá-lo a ajudar a polícia na denúncia aos negócios de má fé. José Maria recebeu a alcunha de Special Me, pela qual se tornou conhecido entre os detetives. Só não contava que a malícia criminosa, e o estouro na venda de suas doces trufas. José Maria mudou, para a surpresa da mãe.

terça-feira, 8 de junho de 2010

O bar parou

O bar parou! Trazendo nos ombros um casal de araras vermelhas, dr. Hércules, contumaz em tudo o que havia disponível naquele corrupto estabelecimento, tinha um brilho esquizóide no olhar. O semblante lembrava, sem sacrifício, a cara de um humorista idiota de televisão. Com sacrifício, a de uma gôndola com secos e molhados, tamanha era a assimetria entre cabelos, boca, nariz e barba. A babilônica figura segurou com cada mão um bico de arara e pediu três ovos, entre os muitos multicoloridos e cozidos à anilina que mofavam entre as sardinhas e as moelas. Rubinho Lisboa, de chofre, perguntou se o freguês havia de querer também o sal, com a natural obviedade galega de dono de botequim. O advogado disse que não. Ou melhor, só para o seu ovo, porque as araras os apreciavam mais sem qualquer alteração no sabor. Três fregueses pararam os copos de cachaça no ar. O que chegava, ficou na porta. Com paciência paterna, dr. Hércules serviu primeiro a ave da direita, para o desespero da outra, abastecida a seguir. Tomou também duas doses, pagou e saiu, silente. Rubinho confessou a todos que não contaria nada em casa à Maria. “Ela tem mania de dizer que ando bebendo”.

segunda-feira, 7 de junho de 2010

De novo, não

De novo, não. Essa aura perfumada tem um tom assertivo de comercial de tv, e assim não dá, Gotardo! Sua elegância é pra esconder a preguiça pré-conjugal, né? Imagina se vai pulular nessa estica? Já te disse... menos. Carícia maquinal eu já tenho com a Carla, a amiga do escritório. Cheia de “oi, querida”! De você, Gotardo, eu espero desperdiçar paisagens, não quero só vê-las, isso não. Sedução tem limite. Já basta dormirmos no mesmo colchão sem compartilharmos as opiniões. Minhas fantasias narcísicas não querem espelhos embaçados. Truque de cena, nem pensar. Até sei... se me calo, aí vem a sua musiquinha eletrônica e besta de fundo. Bebidinha pra lá, rebolação pra cá e... cadê? Fico folheando páginas de um livro que não tem final feliz, vulgo, ver navios. Compenetre-se, Gotardo. Sei lá, distraia minhas aflições com um mínimo de criatividade que seja, mas atue de galã galo, não de mocinho frangote. Deu pra entender, Gotardo? Dou dez segundos, depois vou mandar prosseguir o caixão. Nove, oito, sete, seis...

domingo, 6 de junho de 2010

Dado a mendigar

Dado a mendigar bravuras, impunha o testemunho dos seus para o endosso dos feitos que contava. Ele próprio era o protagonista , e redundava uma ou outra participação nas histórias, quase sempre para ampliá-las em intrepidez. As façanhas correriam bem como os anos lentos daquela vila rural, não fosse por Fátima Márcia, a prima da capital, cuja paciência recusava-se a acompanhar aquelas arengas fantasiosas de Paulo, o Chuquenorres (que era como gostava de ser chamado). Dada às baladas dos barzinhos, entre cervejas e croquetes, a moça não tinha o hábito de beber cachaça, assim, só com conversa para ninar bezerros. Ouviu a da onça, a do salvamento das criancinhas, da doma do corcel selvagem, da fuga do valentão, mas, quando o intróito do lobisomem começou a se desenhar, achou que o bardo já beirava a sordidez. Jogou a franja citadina para trás, e sapecou sem piedade; “aí, Chuque, ‘cê posa de maluco beleza, mas a comadre tem reclamado do comparecimento”. O primo tostado de Sol azulou. Sem perder o ímpeto, porém, convocou a massa: “contem pra prima sobre o aumento da população da vila aqui do lado, que sem o degas aqui já teria desaparecido”...

sábado, 5 de junho de 2010

Risinho irônico

Risinho irônico. Na mesa, oito talheres. Presumíveis resistências. Boas noites, receptivas. Súbitos silêncios. Aquele prato, servido, parece algo que não se come. Os personagens são reais, a história confunde-se. Demonstrações de asco. O garçom de gravata borboleta serve Sílvia. Ela olha, enjoada. Gastronomia grosseira. No prato de Amato, um olho salta. Repugnância generalizada. O ápice surge no servir Alice. Aquela iguaria remete à imundície. Tábata pede licença e desfila ao fundo da sala, com finesse e náusea. Geraldo, que tudo come, arrisca engolir a situação. Higino sente nojo. Anna Karina, enfim, afina o discurso contido: - “Dorival, que perversidade é essa?”. O dono da casa, abanando sua disponibilidade às senhoras, reforça-se no ar sarcástico. Convoca o maître com sotaque paulistanérrimo: “pô, Arrrthurrr, num ti falllêêêi que o pessoal era de moral, ô meu? Leva logo essa gosma e traz o prato principal, morô!”.

sexta-feira, 4 de junho de 2010

Cortejou-a e já

Cortejou-a e já a chamou, compulsivo: - Quer ler Camões comigo? Desatinada e sem dor, Gracieti pensou no poema de Rilke (“Oh, este prazer sempre novo de emergir do barro!”), antes de dizer seu “sim” ao velho literato, naquela biblioteca vetusta da universidade antiga. Ardeu sem se ver envolta, servindo a quem a venceu sua barreira já quase obsessiva às coisas do pós-modernismo. Consentida à prisão pela vontade, ela contentou-se descontente às letras do cortejador jurássico e viu verdes os campos de um amor emergente. Mas o velho era galinha. Pelo vão do olho cego, camonianamente declamava o clássico português a todas.
Tendo com quem a matava a lealdade, Gracieti decidiu inverter a sedução. Plugou no computador do garboso galã o pen-drive da Björk e pôs-se a declamar Leminsk, enquanto improvisava passos de uma exótica dança livre.

quinta-feira, 3 de junho de 2010

Como hóspede

Como hóspede (ou refém) de Guilhermina, Olegário sentiu que a história interferia em seus desejos. O que foi feito de minha viagem? Chegou a surpreender-se. A prima ofereceu-lhe pousada na cidade turística, mas os programas revelados invariavelmente terminavam no tédio. Visitar as velhas amigas da parente para apresentações, em definitivo, não era o melhor programa, naquela cidade repleta de museus, livrarias e espetáculos. Olegário sentia-se o macaco de um zoológico volante. Cada merci daqueles custava-lhe uma caixa de estomazil. Os assuntos conversados, então, beiravam a explicação em ladainha que seu contador costumava dar-lhe sobre os novos índices de desconto do imposto de renda. Duas, três, quatro visitas em dois dias. E faltavam apenas dois para que ele retornasse à sua casa, no interior. Até que Guilhermina vislumbrou um “programa cultural”. E lá foram os dois à casa de Francine, a ex-milionária amiga da prima que “tocava piano muito bem”. Uma hora depois de um histórico das “ma-ra-vi-lho-sas” viagens que fizeram à Europa, as duas decidiram pela música. A anfitriã sentou-se ao piano e, num bote simultâneo, Olegário vomitou no carpete!

quarta-feira, 2 de junho de 2010

Meus senhores

“Meus senhores, minhas senhoras, aqui está a mulher que percorreu 350 quilômetros a pé para dizer ao ex-marido que a cadela Belinha, da raça fox paulistinha, dera cria a quatro rebentos”. À direita, a sujeita mirava a platéia, lábios puxados por um sorrisinho magnificência e seguidos movimentos de sins com cabeça silenciosa, num distinto gesto de “sou eu mesma”. A rapaz do violão ponteou as notas do Parabéns pra você, para um público que cantou, como se estivesse embaixo de um gigante chuveiro, esfregando o sabonete Lux nas axilas ensopadas. Finda a farsa, Antonina, para o desespero dos colegas que estavam em torno, ergueu o braço direito. Sim, ela é do tipo que pergunta, quando todos querem ver logo o final do evento. Esticou o pescoço para ampliar o ângulo de visão da galera, e sapecou insólita: “os cachorrinhos estão vivos?”. A andarilha fez que sim, dessa vez com a cabeça enfática, mas como não foi questionada, jamais explicou o motivo daquela exótica romaria.

terça-feira, 1 de junho de 2010

Dá pra amar

Dá pra amar um cara assim? É porcão, Efigênia, tem arroubos verbais e arrotos incontinentes na sala. Na privada ele é público; todo mundo ouve o animal. Metido a malandro, fala aí nas rodinhas de amigo que não suporta mulher fiel, mas que me enche de porrada se eu o trair. Ele meio bregão, às vezes erudito, outras experimental. Eu o conheci no boteco do Jura, lembra? Maldito porre. Mas logo se instalou aqui no meu apê, com seus peidos arquetípicos e os chamadões de “mais uma”. Não sei se sou outra, mulher ou garçonete, Efigênia, me enfio nos decotes e ele lá, com a voz rosnada da garganta de fumante e o cérebro sabe Deus onde. É um vadio-bomba. Chega da rua e explode no sofá, esparramando estilhaços de bitucas, controles remotos e almofadas-vítimas num raio de cinco metros, ou seja, em toda extensão da casa. Olha, Efigênia, acho que a única, a uniquinha coisa que eu não ignoro nele é aquele jeito sonso-sedutor. Sei lá, dá uma coisa. Quando grita que vai embora acabo dizendo que não precisa. Olho o animal de lá da cozinha, pela fresta da ciumeira, e acabo preferindo assim.