quarta-feira, 30 de setembro de 2009

Jogou fora o teste

Jogou fora o teste de DNA do neto. “É melhor viver sem pai do que descobrir quem é o calhorda”. Tião esbravejou com a filha, que engravidara após uma rave, no encontro com Pedro Álvares, o filho do usineiro de álcool. Positivo e cumpridor, Sebastião vivia do outro lado da cana, o do trabalho braçal, no corte laborioso. A filha mimara-se nos estudos, dizia. Para conseguir o status de boazinha com a natureza, a usina montou escola para os filhos dos trabalhadores. Era dirigida pelos seus herdeiros. Lá não há decência, dizia Tião, que só não tirou a adolescente da escola porque o promotor público da cidade ameaçou prendê-lo, caso tirasse. Tudo, absolutamente tudo, era feito no rigor da lei, exceto os excessos.
Adicleusa, a filha e agora mãe, deu para freqüentar as festas dos filhos dos usineiros. Deu para querer roupas de marca. Deu para se dar bem. Gritou e chorou quando o pai destruiu o teste de DNA, que pagara em quatro prestações à clínica da cidade, quando o hospital da usina se recusou a realizá-lo. Com os olhos rasos d’água voltou-se furiosa contra Tião: “pior do que um delito, pai, o senhor cometeu um desperdício”.

terça-feira, 29 de setembro de 2009

Coqueiros enfileirados

Coqueiros enfileirados deitavam suas copas no travesseiro de vento. Naquela hora, o mar revolto e o prenúncio de furacões, deixavam a pequena aldeia calada. A maior manifestação de quem sabe das coisas sempre foi o silêncio. Nino foi à praia, caminhar a esmo.
Conhecia o hábito da privação da fala existente nas prisões. O sábio sigilo dos momentos de espera. A quietude inviolável do rosto de Zeca, que vira estampada junto àquela mesma areia, e que jamais se apagou de sua memória. Fez, naquele ano, o que julgou necessário a sua honra de traído. Pagou no cárcere. Rosa, depois disso, sumiu.
As primeiras ondas gigantescas começam a quebrar aos seus pés. Sente um vago agrado do que julga ser surpreendente. Algo que virá daquele céu escuro e temeroso. Caminha, caminha, caminha e desaparece.
Depois do vendaval a aldeia conta seus restos. Um inventário de nadas. Mas todos estão lá, menos Nino, que viram apenas que andava na areia, na hora da coisa.

segunda-feira, 28 de setembro de 2009

Cortar as perninhas

Cortar as perninhas das formigas, com a ponta da unha suja e remelada, era uma das diversões perversas de D.H.S.. Apoiava o indicador esquerdo nos “dois chifrinhos” da lava-pés e deixava o inseto espernear, até esticar a pata traseira: pronto. Gostava de ver a bichinha andar cocha, arrastando a bundinha, meio sem rumo. Chegava a rir, às vezes.
Tinha de cor o tamanho do Sol, que começava como uma estrela: brilhante e intensa, pela fresta do zinco do barraco. Depois, projetava-se ao lado do terceiro buraco, do quarto tijolo de oito furos, na parede oposta ao lugar por onde entrava, de cima para baixo. Ia descendo, descendo, até chegar no chão, ao lado de D.H.S., que esticava a palma da mão para recebê-lo na linha da vida. Com os grãos da terra do chão fazia bolinhas minúsculas, com a irregularidade que conseguia da força giratória entre o seu indicador o polegar, untados de cuspe. Às comia, às vezes.
Estranhou aquele dia em os homens fardados derrubaram a porta do barraco, foram a até ele e cortaram a corrente que prendia seu pé direito ao pé da mesa, com um alicate enorme. Já havia se acostumado a viver ali, acorrentado, sempre que a mãe saía, ainda escuro, para ir trabalhar.

domingo, 27 de setembro de 2009

Já é noite

Já é noite, Nicolau. Esse otimismo todo deveria estar andando a arrastos de lesma, não a passos de lagarto. Acha que você ainda vai virar? A fórmula não funcionou, e não foi por falta de aviso. Aqueles três goles de dendê, em jejum, poderiam ter te desarrumado. O dia inteiro olhando para o lado oposto ao Sol é demência pura. Meio-dia, e você lá, olhando pro chão. E essa fita preta, feito gravata borboleta... absurdamente ridícula. O que a comadre Nina vai pensar? Você viu, né? Ela passou aí em frente e ficou olhando, igual lagartixa quando vê a mosca. Falei pra você ficar dentro de casa, já que queria tentar.
Vai, entra. Tira essa porcaria dessa tanga vermelha, esse chapéu grotesco, essa bata bronca e vai tomar um banho, pra ver se sai também essa pintura de puta estampada no teu rosto. Você deveria era tentar fazer pacto com o Seu Manoel, isso sim. Quem sabe ele num te arranja um emprego lá na venda. O diabo, Nicolau, não quer nada com você, não!

sábado, 26 de setembro de 2009

Acometido

Acometido de homossexualidade, era o diagnóstico do pastor, para a fúria de Eduardo. A mãe abusara. Endividara-se com dízimos, Eduardo dissera antes, a quem quisesse ouvir, em pleno culto do templo Jesus The Best & Cia, na vila Cantagalinha. Foi como enfiar a unha do sovaco do pastor. “Negar o aspecto varonil, a hombridade, a homência, só pode ser coisa de quem, irmãos?”. E, em coro, os fiéis apontaram os indicadores para Edu: “Do demônio! Do satanás!”. E o homem se empolgou: - Recusar a virilidade, titubear na machência, agasalhar, recusar o atendimento, é atitude de quem, irmãos? “Do belzebu! Do bicho-preto!”. Acuado, como se lhe faltasse o essencial, Eduardo baixou a cabeça. Mas, “por Deus”, veio-lhe o estalo. Caminhou lentamente até a platéia, onde se encontrava Rosecleide, esposa do pastor. Levantou a cabeça, impostou a voz e olhou firme para a mulher: “Mas você é linguaruda, heim Rôse?”.

sexta-feira, 25 de setembro de 2009

A emanação de suspiros

A emanação de suspiros, não dessemelhantes a certas risadas, conferia ao robusto Olegário um certo ar de hiena, obesa e ofegante. Sentado próximo à janela, ao vento farto e luz difusa, media o tempo a coxinhas, consumidas aos centos. Já são dez horas: dois, quatro, seis, oito, dez, doze... quarenta oito palitinhos. Um para cada salgadinho, à média de vinte por hora, havia acordado há pouco mais de duas horas. Hora, aliás, da primeira refeição: arroz às tantas, feijão ao litro e carnes vermelhas aos quilos, de panela, para evitar muitas frituras.
Quando passou dos 150 quilos a mãe preocupou-se. Ele sorriu, satisfeito, feito um acrobata que sobe a escada para dar um salto mortal. Aos 200, a mãe desesperou-se. Ele parecia algo macio, que enrijecera devido aos pequenos aborrecimentos diários. Mudou de feição. Do vigor à morbidez, do prazer ao vício, do sabor à necessidade, já não distinguia a zombaria da seriedade, da dor ou do desprezo. Era como se o ar se adensasse, num abafamento insuportável. Quando explodiu, nem barulho ele fez. Foi como se existisse só para si próprio: metódico e silencioso.

quinta-feira, 24 de setembro de 2009

Desconfiar de alguns

Desconfiar de alguns santos, e comentar com a avó apostólica, era o passatempo de Bira, em férias no campo. Com uma leveza artificialmente doce, assegurava à velha que um homem cheio de flechas, feito São Sebastião, alguma coisa deveria ter aprontado para merecê-las. Comparava São Tomé à própria idosa, para contrapor e denegrir o santo pela falta de fé. “A senhora vovó, não precisa ver para crer, não é?”.
O próprio São Judas, cujo Tadeu do sobrenome e o fato de ter sido outra pessoa, que não Iscariotes, era ignorado por Bira, virou alvo certeiro de suas zombarias miúdas: “com um nome desses, o cara só pode ser um traidor”. Às vezes elevava o nível, assegurando à coitada que o delírio do pecado só pode ser fruto de certas perturbações.
Fim de férias e os avós levavam Bira à estação ferroviária, quando a pick-up do avô sofreu uma pane sobre os trilhos, logo após a bifurcação das linhas. Pega, não pega e lá veio trem. A avó começou a pedir aos santos que evitassem o pior. A menos de quinze metros, subitamente, a locomotiva desviou do veículo, tomando os trilhos opostos. Lívido, Bira até ensaiou uma Salve Rainha. O avô piscou à mulher. A fé, às vezes, depende de manipulação. Como chavear previamente as linhas, para máquina mudar de trilhos.

quarta-feira, 23 de setembro de 2009

Para onde vai

Para onde vai o Joãozinho? Arrumadinho, ansioso, apressado, passa sempre com suas botas e bengala em movimento, como se a vida fosse um constante interlúdio. Terno, como o ar de noite enluarada, mexe a cartola e a gravata borboleta em balanços tão sutis que não os vejo. Mas, quando os enxergo, a garrafa onde se instala, com o apelido de Johnnie Walker, também parece cheia de alma.
O gesto de quem está pronto antes da hora, mas não para de andar, faz de Joãozinho, um alheio do mundo, o sujeito mais empedernido de uma mesa de bar. Um fingimento asceticamente imóvel, de caráter provisoriamente definitivo. Mesmo lá, seguindo seu rumo desconhecido, parece me ignorar como potencial companhia de seu percurso, mas sempre acaba levando-me para outros mundos. Começo por persegui-lo nos pormenores, entornos e vielas, com a agilidade de um atleta olímpico, em quem não se deve perceber o esforço despendido. E quando perco o rumo, e já não o acompanho, sem saber se é manhã ou noite, Joãozinho e o seu casco seguem para um lixo reciclável. Eu, feliz, deito-me na cama, pouco me lixando para o rumo de Joãozinho.

terça-feira, 22 de setembro de 2009

Entre a cruz e o tacho

Entre a cruz e o tacho fervente, Naiane afrontava as convicções de Guilherme. Tépido, apesar da proximidade ao inferno, o marido era incapaz de dizer um a às diabruras da mulher, sempre adornada com enfeites da vida para colocar no palco suas cenas. Era como se o coitado andasse sobre uma corda bamba, ladeado por um precipício de quizumbas e um abismo de rolos, com barracos na base e confusão iminente à cabeça.
Como uma mão que reboca uma boca fechada, ela fazia questão de tê-lo sempre ao lado, como testemunha de defesa para os seus tumultos e barulhos. Brigava nos caixas dos supermercados, na fila do banco, nas salas de espera, nas bilheterias dos cinemas, enfim, onde qualquer cidadão é obrigado a cumprir determinado prazo, ela se apresentava, à vista. Passaram-se dois anos para que Guilherme, acidentalmente, saísse da condição de testemunha à de vítima. Num baile de debutantes, Naiane chamou o maître, para gritar-lhe quanto à baixa temperatura do vinho. Já alto, Guilherme tomou a taça da mão da mulher e atirou-lhe o líquido na cara. Contam que ela desfechou-lhe tantas unhadas, aos berros e sopapos, que o pobre foi embora, tentar a sorte num purgatório.

segunda-feira, 21 de setembro de 2009

Adotada era como

Adotada era como se apresentava, sempre que alguém perguntava sobre seus pais. Ninguém sabia, mas era tão dissimulada quanto essas pessoas que tratam a vida como uma fórmula matemática. Casara com um médico recém formado, o que, na pequena cidade para onde se mudaram, lhe conferia um certo status, capaz de fazer com que as pessoas humildes do lugar a suportassem, apesar de seu pessimismo latente. Em todo o seu presente havia um futuro trágico, igualmente presente: “Em algum dia lindo como o de hoje eu estarei morta”, dizia, como a propor uma comoção súbita a cada diálogo.
A conduta, figurativamente levada aos maus fados e expressos infortúnios, fez com que o doutor Celsius, depois de suportar a esposa por anos e filhos, se cansasse daquele drama contínuo, pelo qual regiamente pagava em carros novos, viagens muitas e grifes dispendiosas, na condição de provedor. Trocou a chata pela exuberante Carla, enfermeira modesta e honrada, otimista das feridas ao câncer. Contam que a ex-dondoca enlouqueceu de vez. Dizia que se mataria nos próximos dez minutos, e foram horas de vigília, antes de internarem-na. Pelo prontuário da clínica toda a cidade ficou sabendo: ela não era filha adotiva, coisa nenhuma.

domingo, 20 de setembro de 2009

Com a paixão não

Com a paixão não inteiramente muda, nem totalmente audível, Orlando procurou Francieli no intervalo da aula. Deu-lhe, divertido, uma felicidade sem profundeza nem peso. Uma boneca barbie, comprada à prestação, vestida de rainha. Descobrira o desejo da amada por meio da amigas. Como um piano, na fração de segundos em que é tocado pelos dedos, e antes de emitir as notas, esperou um sorriso ligeiro, um gesto, um sonhado beijo. Recebeu um “brigado”, de raiva e recusa.
Chorou, no canto do pátio, com a barbie-rainha na mão, e ainda ouviu dos moleques a desfeita inconseqüente: “viadinho!”.
Se cafajeste pelo incidente ou desobrigado da vida pela vaidade eternamente ferida, ninguém sabe explicar direito. Certo é que daquele dia em diante Orlando passou a comprar sempre no crediário, mas jamais pagou uma segunda prestação.

sábado, 19 de setembro de 2009

Como um veículo

Como um veículo de motor desligado, Márcio deslizava pela rua. Passos dândis. O corpo num balanceio tão delicado que os pássaros poderiam carregá-lo. Com a natureza masculina moderada, levava consigo muitas pequenas idéias, e açucaradamente ridículas. Lera vários livros, mas falava com o senso de um professor de educação física. Sempre objetivo... nas trivialidades.
Havia sido convocado a servir ao exército. Caminhava com pátria na cabeça e com os pés em marcha lenta. Chegou, enfim, ao destacamento. Logo se destacou. Pelo seu jeito, fora então convidado pelo militar de plantão a escolher as flores que seriam dadas, na solenidade a seguir, às esposas dos oficiais. Com talento estético para escolher entre as muitas opções a pior de todas, mas de sucesso geral garantido, acertou nas espécies, cores e cheiros.
O general Taveiro adora relembrar como tudo começou. Fala e assina embaixo, para quem quiser ler: Gen. Márcio Taveiro.

sexta-feira, 18 de setembro de 2009

Empanturrava-se de suas

Empanturrava-se de suas histórias. Tinha a mania de contá-las sempre à tarde, após o almoço, sob as copas de um pé de manga. Mortes, musas, sublimes, reis, bichos e agouros eram incorporados ao dia-a-dia da fazenda, quase nos caindo à cabeça ou ao lado, como mangas maduras.
Quando se foi, languidamente arrastado pelos dois brutamontes do hospital psiquiátrico, estava cheio até a metade. Com a outra metade, que não lhe conseguiam arrancar do devaneio, ria exuberante. Pressagiava caraminholas. Via-se-lhe apenas a boca, vociferando entre os dois braços presos aos homens: “O rei do vale mandará as musas, com seus bichos horrendos, extinguir de morte tudo aquilo que estiver fora da sombra da mangueira”. Foi quando a porteira das vacas paridas se abriu, súbita. Os animais nervosos correram em direção à ambulância. Alarmaram os enfermeiros, que indefesos o soltaram. Ele fugiu saltitante e trôpego, mato adentro.
Depois dos almoços, na sonolenta fazenda, ouvem-se sussurros musicais à sombra da tal árvore, como se seus pequeninos frutos formassem um coro de menestréis extemporâneos.

quinta-feira, 17 de setembro de 2009

Era a própria imagem

Era a própria imagem do pré-sal: profundo e quase inacessível. Gostava de política, de futebol e, fundamentalmente, da mulher, mas os tempos levaram-lhe os gostos. Embora o alimento tivesse acabado antes que o apetite, também perdeu a fome. Orava, mudo, a uma espécie de sono pendente. Dava o ar de que se andasse dez centímetros a mais cairia num precipício. Até que descobriu na despensa um livro velho de Manoel Bandeira, que pegou de raiva, e o transformou em objeto de estimação. Sob o velho travesseiro, fez dele um apoio rígido à eterna insônia. No pé dianteiro direito, do banquinho pendido, utilizou-o para acertar seu nível. Deu livradas nos mosquitos, abanou-se, lançou-o no sofá e voltou a pegá-lo. Virou distração às mãos, sem nenhum tempo para cronometrar horas ou dias. Só foi abri-lo na tarde chuvosa, de café ralo. Então quis morrer tão completamente, que um dia ao lerem seu nome num papel perguntassem “quem foi?”. Mas descobriu que a eternidade está longe. Um dia serei feliz? Chegou a matutar com o poema. Viu que sim, mas não há de ser já...

quarta-feira, 16 de setembro de 2009

Perpetuamente enlutado

Perpetuamente enlutado, o coração de Maulícia chorava gota a gota. Uma lembrança da pipoca, comida com Felisberto, um trago a mais ou beijo manso sobre a súbita linha reta de seus lábios desaparecidos. Aqui e ali as lembranças estacionavam nos instantes que, de tantos e tamanhos, já não deixavam vagas para as raras alegrias provisórias.
Leu Schopenhauer, mas não entendeu, e fez de Veronika decide morrer, paulocoelhamente, o seu livro de cabeceira. Foi a sorte. O alto a ajudou e Maulícia começou a enxergar de novo a vida que lhe era esquiva. Bebeu anos solares, com a sede de uma única tarde: a do encontro com Tobias. O personal trainer que contratou, para ter onde depositar seus demônios, a levou ao céu. Gay assumido, deu-lhe um plus na maquiagem, um upgrade nos cabelos, um visual em sintonia e disposição física invejável para correr, em oito minutos, de sua casa até o cemitério do centro, onde estava sepultado Felisberto. Na última visita, ao invés das flores e lamentações, Maulícia levou um bastão de borracha cor-de-rosa. Lançou-o sobre o túmulo e falou bem alto, para o outro mundo: “só volto aqui, Bertinho, quando você for lá em casa, me devolver esse bastão”.

terça-feira, 15 de setembro de 2009

Ser e parecer sério

Ser e parecer sério. Esse era o sonho de Rodrigo, que apegava-se às gravatas, clubes de serviço e missas, a fim de lograr seu propósito. Deu-se que Márcia, a esposa, doou-se à vida. Os filhos Lucas e Mateus cismaram de trazer para casa toca-CDs que não lhes pertenciam. O cachorro Bilú sumiu, sem deixar pistas. A mãe, acometida de uma tosse infindável, foi internada, sem previsão de alta. O sócio, matreiro, engendrou um pedido de concordata. E Rodrigo saiu do sério.
Contam que a motivação maior, no entanto, foi o acidente que ele provocou involuntariamente quando saía da farmácia. Um pouco desatento com o trânsito, parecia que preocupado com alguma coisa, contam testemunhas. Acelerou o velho monza sem olhar para a rua, e subiu sobre duas motocicletas, que passavam lentamente. Dois mortos e um garupa ferido no crime que o delegado, bacana, descreveu como culposo. Rodrigo deixou de considerar a seriedade uma qualidade. Espatifou-se sua inteireza de caráter. Retidão, agora, só nos seus olhos, que olham fixos para um certo infinito.

segunda-feira, 14 de setembro de 2009

Meus olhos erravam

Meus olhos erravam pela sala, quando acertei Janete. Toda enigmática, divertia o tédio rodopiando os dedões, com as duas mãos encaixadas em si próprias. Misteriosa como um animal com falta de ar, parecia nem ouvir a música, numa inquietude íntima que soprava por olhos e ouvidos. Bem quis tomar emprestados aqueles ouvidos para os meus murmúrios, mas meus imutáveis zunzuns certamente acenderiam o pavio daquela bomba, prestes a detonar sabe Deus o quê. Perguntei a Pérsio sobre a moça. Disse que escutava vozes. Que tinha uma noite em seu cérebro. Que ninguém nunca soube o que de fato aconteceu. Não senti muito. Loucos um pouco, somos inumeráveis, pensei. Aproximei-me, com uma alegria densa. Era cedo para um sorriso de “boa noite”, tarde para voltar atrás. Ela levantou os olhos em minha direção, mas parece que enxergava através de mim. Meio aos trancos ou espasmos balbuciei o óbvio da imaginação gasta: “tá frio, né Janete?”. Ela pareceu divertir-se: “eles acabam de me dizer que dentro de dezoito dias você também estará frio!”.

domingo, 13 de setembro de 2009

Para dizer o que

Para dizer o que se ouve é preciso ver o que se diz. Jurandir aplicava o trocadilho sempre que Jandira lhe contava coisas escabrosas da sogra. A megera, dizia ela, fazia preces sem palavras, para ninguém saber a qual santo rezava. Pior eram os gestos. Recebia o filho como um traidor, e a mulher dele, no caso, a própria Jandira, com dissimulados sorrisos e sins, como se sim. Sempre.
Jurandir, no princípio da parcimônia excessiva, falava que a vida não era assim. Jandira haveria de pensar como mais antigamente e menos ultimamente. “Sogra é uma mãe que ganhamos”, insistia com a irmã, a quem culpava pelas inúmeras sessões de terapia, que a teriam transformado numa egocêntrica contumaz. Depois, não gostava de conhecer ninguém por reputação. Tantas bilionésimas vezes atormentou a irmã, que Jandira, num repente de “tá bom”, decidiu apresentar-lhe a sogra. A velha o mediu dos óculos aos tênis, sorriu que sim, mas gorou-lhe a esperança: “o senhor não se parece nada com Jandira. Vai ver que foi criado longe?”...

sábado, 12 de setembro de 2009

O velho hoje

O velho hoje não termina. Minutos e intervalos somados mal dão conta da minha adoração pela dança. O vasto passado próximo vem com a noitinha. No clube, me afundo na tentação. Afundar na tentação é o máximo. São velhos os parceiros, mas sou assim. Meu marido pensa que pode morrer um dia, bobo. Tem baile. Tem também os netos zombeteiros: “já vai pra dança das velhinhas, vovó?”. Murmuram, brotos verdes.
Há magia nos breves movimentos. Extremamente pouco, minusculamente gigantesco, é o meu sonho bailarino. Levo-o com graça, no vai da valsa. São gozos minimalistas. Dois pra lá, dois pra cá. Acasalamentos sugeridos, flertes no compasso, ritmos de passagem. Cenas rastejantes sobre flocos de nuvens. Primordiais últimos artifícios. Não me entrego à pose de defunta, horrenda entre flores e felpas. E, ave! Marias rezando à minha volta. Não se morre aqui. Se cadáver, sou insuplicável. Quando o dia for noite, dançarei alegre. Meu velho marido ajeita a gravada, arde o rostinho em rugas, com a loção pós-barba escanhoada. Estamos quase prontos, mas faltam umas horinhas para o baile começar.

sexta-feira, 11 de setembro de 2009

Foi boa a mudança

Foi boa a mudança para a Vila dos Remédios. Ar puro, verde cintilante, uns passarinhos exóticos e o resto indiferente. Mesmo assim, meio cordeiro preto com todos os pecados do mundo, nunca mais fiquei doente do pulmão. Ando farto de luz.
Quando fugi daquela trama desgastada, daquela mosca ao romper da aurora, arrasto miúdo atrás de migalhas, pensei viver um verão na claridade, e nunca mais apreciá-lo apenas pela vidraça. A vida não é uma fresta, isso não. Às vezes fico desejando uma mulher pro corpo, e não tendo, ocupo-me na horta de chicórias. Adoro chicórias, com aquelas folhas pontudas e desiguais. Tem, sim, momentos frívolos. Sinto-me vazio como um buraco, mas logo me encho. Sou uma ilha aqui em casa, cercado de silêncios por todos os lados. Uns segundos de resmungos, horas de afloras. Penso em virar escritor, sei lá, poeta... Por enquanto, nesse parnaso, produzo adubo orgânico.

quinta-feira, 10 de setembro de 2009

De moral irriquieta

De moral irriquieta, Ademires dera agora para paramentar os tornozelos. Andava como se possuísse asas nos tendões de Aquiles, uma diaba de uma Mercúria, desfilando na velocidade do vento, como se o bar do Zezão, atormentado por homens e álcoois, fosse o Monte Olimpo. Um dia, era um lenço. No outro, uma correntinha com imagem de santa. Houve até fetichistas algemas, dispostas aos pares, tornozelo a tornozelo. Ela, em cima, forçando os olhos alheios a olharem para baixo. Os homens lá, seguiam um, seguiam outro, pensando só com a visão.
Até era uma moça recatada, porque isso de se embriagar aos sábados, quem não se embriaga? Tanto fez, porém, que se envaideceu além dos porres. Deu pra ficar em pé, na porta do Zezão, estática, para ser apreciada. Do bar, todos se mantinham igualmente estáticos, a apreciá-la. Sábado passado, surgiu Estrupício, o vira-latas da vila. Olhou os algodões que envolviam os tornozelos de Ademires, "estilo flocos de neve", e grudou neles, com as duas patas. Pensou numa poodle-toy, sabe-se lá, mas fez o bar explodir em gargalhada.
De moral irriquieta, Ademires dera agora para paramentar as acsilas...

quarta-feira, 9 de setembro de 2009

Para não atrapalhá-la

Para não atrapalhá-la, vou fazer de conta que acredito na Laurinha. Ela que me diga que o Orlando é só um amigo, que é gay, que é eunuco, que é atrofiado dos olhos para baixo.
Parou de vir aqui em casa repentinamente, mas faz questão de deixar a foto aí, ó, sobre o criado mudo. Ela e essa cara dela, esses dentes que riem. Fico bem quieto. Houve o tempo em que ela foi boa pra mim. Comprava uns CDs de música zen, contava-me das amigas e até jujuba na boca ela me dava. Depois, ficou íntima. Vinha quase sempre, assim, dia sim, dia não, para colocar nossas fantasias para brincar. Deu pra ficar nua, a Laurinha. Aqui no quarto, a doida. Chegou até a alisar-me as partes, o que era de uma inutilidade sem tamanho, mas me fazia bem à alma.
Foi na quinta-feira que me contou do Orlando. Mexi os olhos pra cima, o que no nosso código quer dizer “sim”. Mas juro, se eu andasse e pudesse sair dessa cama dava uma dura na Laurinha. Ah, dava!

terça-feira, 8 de setembro de 2009

Dado aos fake standards

Dado aos fake standards da música americana, Osvaldo arrancava uivos das senhoras, no baile de idosos, quando atacava de The Platters, sozinho, com um backing vocal pré-gravado, furtado do disco original. Canastrão com direito a terno branco, sapato bicolor e a legítima brilhantina no cabelo prateado, esgoelava às pobres velhinhas um “only you can make this change in me”, sonhando mudar de vida, com uma delas, para melhor.
Dona Ernestina Moraes e Franco, paulistana da clara, nunca pode se casar. A aposentadoria integral sobre os soldos do pai, capitão do exército, promovido a general quando morreu há vinte anos, era-lhe extremamente bem-vinda, e seria suspensa caso, como dizia sempre, “contraísse o matrimônio”. Não faltava aos bailes, mas depois de ouvir dezessete vezes “Smoke gets in your eyes”, na voz de Osvaldo, decorou o verso que dizia “All who love are blind”, embora só falasse, e mal, o francês, apresentado como fino às damas do quartel. Osvaldo a convenceu a ficar com ele, mas preservou a pensão do falecido sogro. “Já vivi no movimento clandestino, em 1970”, confidenciou a um amigo...

segunda-feira, 7 de setembro de 2009

Ínfimo, o homem

Ínfimo, o homem. Some no mapa, no qual poucos milímetros são muitos quilômetros. Vai ver homem e geografia não se misturam, ou ambos se ignoram. Cabeça ao norte, os pés ao sul, braços a leste e a oeste, pose de vitruviano, com tendência gravitacional à queda.
Murilo pensava na vida, enquanto despejava, alquímico, a água fervente no pó, para transformá-la em café. Acordara naqueles dias, filosófico, em que considerava a distância entre as coisas um fracasso, um silêncio de um ponto ao outro, recheado por espaço vazio a ser percorrido. Pensou uma Barsa de parvoíces, uma Bíblia de intolerâncias, um Aurélio de asneiras a zoeiras. Pior ainda, depois da primeira poção do café. Mágica excitação dos duendes da memória, cada um deles com um séqüito de divagações corcundas e verdes. Mas foi quando derramou, descuidado, gotas da mancha negra no velho pijama alvo, que se lembrou atormentado que aquele era o quinto dia útil do mês: data em que todas as contas da casa insistem em vencer.

domingo, 6 de setembro de 2009

Intestino imperativo

Intestino imperativo é uma merda. Bexiga irascível não admite lentidão. Fernando é sujeito bom. Caga e anda para as maldades alheias, mas anda um pouco menos. Tem contrações, diz o infeliz. Basta uma colher de aveia, um naco de cenoura ou qualquer nada-biótico e a coisa desanda. Pede aquela licença ligeira, minutinho por favor ou vou ali e já volto, e some. Volta claro, lívido e descompensado.
Por conta dessas descortesias involuntárias perdeu Gabriela. O emprego de atendente, foi pior. Estragou passeios turísticos e subidas de elevador. Dispersou velórios, profanou missas dominicais, o diabo. Afligir o síndico, em plena votação das novas medidas, na reunião anual do condomínio, custou-lhe os tubos e uma advertência. Mal menor, a advertência, para quem tem tubos digestivos tão soltos e complexos. No fundo, foi bom. Um certo alívio. Tomou coragem para construir a nova casa: sala, quarto, cozinha e seis banheiros. Anda meditativo, mas se sente literalmente em casa, mais próximo de si.

sábado, 5 de setembro de 2009

Falei bem claro

Falei bem claro pro Paulinho: - Olha, Paulinho, nossa sorte é que a mãe nunca foi de ler. Geniosa do como era, era capaz de você se chamar Bentinho ou até Quincas. E, eu, Capitu ou Macabéa, já pensou? Ele me olhou perplexo, desconfiado, com ar de sabido, riobaldo, e disse pouco convincente “é”! Coitado, puxou à mãe.
Paulinho é o mais novo dos meus nove irmãos. Dois morreram bebês. Três, mataram. Da Glória e da Graça eu nem gosto de falar. Estão nos Estados Unidos, as safadas. Sisters Dancing é como são conhecidas por lá as vagabundas. Ficamos o Paulinho e eu, então tenho que preservar a família. Lavo, passo, dou comida, quando ele rabuja de fome. O danado é cheio das namoradinhas, se veste direitinho, não sai das baladas, gosta de carrões e música bate-estacas. É, ele é a minha família, meu irmão, né? Livro... a gente escolhe...

sexta-feira, 4 de setembro de 2009

O pastor falou

O pastor falou que só os pobres entrarão no reino de Deus. Então dona Angélica, antes uma profana Kéka, das boates e bafões, alegrou-se, auto-afirmativa, abaixando e levantando positivamente a cabeça, como se dissesse: “viu?”, satisfeita. Fortuna nunca foi seu forte. Deu, recebeu, mas perdeu tudo, até encontrar Jesus. Não que o filho de Deus lhe tenha vindo ao encontro com as burras cheias. Não. Continua pobre, graças a Deus, dono do reino onde tem, portanto, absoluta certeza de que um dia entrará.
O problema imediato é Godô, quer dizer, Godofredo José dos Santos, seu ex-cafetão e atual marido, também convertido, cujas pelejas com o diabo não andam lá muito vitoriosas. É uma luta tremenda, mas ele já conseguiu deixar as calçadas, nas quais explorava a carne para ganhar o pão. Hoje bebe diária e socialmente nos bares. Contaram a dona Angélica que ele até mantém um escritório na birosca do Vadão, onde atende as moças que lhe entregam os dinheiros. Mas, glória a Deus, já instituiu um horário para funcionamento da vida torta, e a fecha regularmente, na hora do culto.

quinta-feira, 3 de setembro de 2009

Mais do que linda

Mais do que linda, Clarice sentia-se exuberante. Guardava na alma um noturno de Debussy. Nos olhos, as Valquírias, de Wagner. Solene por dentro, fogosa por fora. Vestiu a tanga e foi para o mar, dourar na pele as horas escuras do árduo estudo de piano erudito.
“Alô, mate. Alô, limão”, gritava o vendedor de chás, em ré maior. As ondas batiam sustenidas pelo vento cortante. A areia solfejava dodecafônica aos passos lentos de Fred, surfista e cantor de reggae, que vinha em sua direção. “Aí, belê?”, ele disse, pulando abertura, prólogo e atos dessa ópera salgada. Ela se assustou. Stravinsky. Aquele pássaro de fogo, sagração do verão, fagote enviesado e carregado de percussão não poderia subir assim, das conchas para seu coração, já em tempo rubato.
Disse um “belê” em si. Resposta em última nota àquele deus de boina mesclada, com crochês verdes, vermelhos e amarelos. “Mô, calor, né mina?”, ele balbuciou. Ela respirou fundo, olhou para a platéia e fechou o piano.

quarta-feira, 2 de setembro de 2009

Ligar, ele jura

Ligar, ele jura que ligou. Tentou desfazer aquela tragédia anunciada da maneira mais rápida possível. Nada. Ela não estava para atendê-lo. Por e-mail, explicou os seus motivos mais íntimos, sem se esquecer dos detalhes da noite em que a viu apostando com as amigas. Seria ele o troféu da aposta? Ainda teve a humildade de perguntar. De novo, coisa alguma. Não teria aberto a caixa de mensagens? Pouco provável. Ela não quis, mesmo, foi se manifestar.
Partiu decidido a dar um fim naquilo de modo exemplar: pessoalmente, com o dedo em riste àquela cara de sonsa, com seus dois olhões verdes. Bater a porta, assim, na cara do coitado, por pura maldade e arrogância, é que ela não deveria ter batido. Vitão, o amigo dele, foi camarada: “emprestar, eu empresto”, disse, passando-lhe o revólver 38 novinho, brilhante. “Mas veja lá o que você fazer com ele”, aconselhou. O resto da história você já conhece...

terça-feira, 1 de setembro de 2009

O lado mais insinuante

O lado mais insinuante de Carmen era o de trás. Horrenda na feição e gestos, dava as costas às observações deselegantes dos moços da vila, e pronto! Lá estava aquilo que calava o mais efusivo gozador: a trança, no formato de um rabo de cavalo, que balançava na ponta uma micro-estátua de Santo Antônio. Sim, ela sonhava se casar, e torturava o santo no pra-lá-pra-cá da trança.
O cego Honorinho não era de todo feio. Bem situado, morava em casa própria, obtida com o dinheiro das esmolas, que ainda lhe sobrava, para viver com fartura e certos prazeres. Não via o feio das coisas, mas enxergava os corações. Acabou por se enroscar na traça de Carmen, e dar cacife ao santo, enfim depositado no altar da paróquia, para a sua glória eterna. Dizem que foi paixão à primeira vista.