terça-feira, 31 de agosto de 2010

Desde cedo

Desde cedo sou portador de necessidades especiais. Atenção, por exemplo. Nunca deixei de desejar. Havia ainda a necessidade especial de ouvir histórias antes do sono. De comer feijão no almoço, cheirar pastas de dentes e ir para chuva, sempre que ela aparecia como um toró ou travestida de garoa. Guloso de coisas, invejoso do menino que tinha uma bicicleta, avarento com os brinquedos, luxurioso ao sentar-me ao Sol depois dos almoços, irado com o cão nervoso que não me deixava passar por aquela rua, melancólico com a necessidade de ir ao dentista, preguiçoso com o horário da escola, vaidoso por jogar futebol de botão melhor que os outros, orgulhoso por pensar que namorava a menina mais bonita, tinha todos pecados enevoados com entusiasmo ardente. Dia desses virei fera. Acusaram-me de politicamente incorreto.

segunda-feira, 30 de agosto de 2010

Havia o vento

Havia o vento fresco, descoberto na manhã seguinte. À primeira vista, só sono. Imenso cansaço de desejo. Chegar até lá, por si, fora uma dissolução de contornos. Vieses de estradas, pedreiras e matas idênticas, propícias à perda. Nevoeiros de anos, sombras improváveis. Depois o êxito. De fato, a compensação. A fome submissa se refestelava com gabirobas na relva. Completude gelada às bocas secas. Brilhos de seivas, cristais aquáticos, tímidos capins, sôfregos gramíneos, amabilidades desconfiadas, ignoradas então. Saltos, saltitantes, pulos de pulgas no verde idealizado. Riscos idiotas de apaixonados. A natureza, enfim, perpetuamente em festa. Seio de mãe, a transbordar carinhos. Bilac? Credo! Vida de hippie é uma merda de desconforto!

domingo, 29 de agosto de 2010

Da primeira

Da primeira mecha à pecha de velho foi por um fio. E havia as olheiras e os cabelos nas orelhas. Desatinos, nem tantos. A repartição era unida. Havia parabéns nos anos, gentilezas nos infortúnios, vaquinhas para churrascos. Nenhuma surpresa que contivesse estresse. Pouco avanço, mas nenhum atraso no salário público. Desmedido ócio regular e protegido. Esperança insensata de acertar a quina: bolões cheios de “quases”. Então a observação do vidro. Janelas de casa, aposentadoria ocre. Cenário de província da vida havia, quando Irineu deu para cantar boleros. “Aquellos ojos verdes de mirada serena”. Na largura dos decotes de dona Hilda, a secreta paixão sem função no funcionalismo, abriu o peito, suou garbos e até chegou à módica fama... no Clube dos Funcionários Públicos.

sábado, 28 de agosto de 2010

Ante o exposto

Ante o exposto, fica assim determinado: ninguém poderá utilizar mais o salão de festas, sem a minha assinatura. Tenho dito, Juarez Tacantanho, o Síndico.
Não que ele fosse sempre pertinente, mas dessa vez até dona Zélia, a liberal moradora do 21, concordou com Juarez. Não porque a festa de Homerinho, o playboy do 42, não tivesse deixado ninguém dormir durante toda a noite. Não pela imoralidade das moças que desceram nuas pelo elevador social. Não pelo bullying que fizeram com Seo Tiãozinho, porteiro há vinte anos, que jamais havia tomado um porre em serviço. Não porque no 101 o resgate pegava Seo Thomé, que acabara de falecer. Não pelos nervos da viúva Jandira, que naquele dia a puseram aos gritos. Mas, sim, porque o condomínio é sempre muito calmo, e isso não se faz.

sexta-feira, 27 de agosto de 2010

Pois é

Pois é, Toninho, tua penúria teve fim. Te falei, não vá atrás do passado. Até coloquei outra música pra tocar, lembra? Você, lá, toca e volta, toca e volta. Vodca sempre te fez mal, Toninho. Teve até aquele porre na escola, bem antes de você conhecer Helena. Noooooossa, Toninho, você ficou passado. Achei que daquela não sairia nunca mais... Saiu pra pior, Toninho. Helena misturou vermute à sua pouca resistência ao torpor. Foi uma bomba essa dobradinha pra você. O Carlos, o Dêba, a Lia, o Guto, todos te avisamos, Toninho: Helena tinha precedente. Foi cachaça pro Orlando. Uísque falso pro Renato. Absinto pro Tavares, coitado dele. Mas você, Toninho, estava embriagado. Essa cirrose que te leva tem nome, Toninho. Esse semblante daí de dentro, nem tem o risinho enigmático dos outros defuntos. É, Toninho, nem o último risinho ela te deu...

quinta-feira, 26 de agosto de 2010

Por demais

Por demais sem modos, só poderia moldar nos outros rodopios entre a bondade e a malvadez. Petrônio era assim, não sei se pelo nome ou uma inata tendência a desfazer os feitos da casa ordeira dos tios, onde morava. Xixi nas reservas de água potável da casa, chicletes sob o encosto do sofá, milícias para o ataque às casas vizinhas com frutas verdes da goiabeira, lançadas aos telhados, eram ações menores. Menores, aliás, os primos Naldinha e Cleonaldo, seguiam-lhe as instruções esdrúxulas: como molhar o beiço no leite com chocolate e beijar a porta de vidro da entrada. Foram todas as travessuras, em tantas circunstâncias, que ninguém nem deu muita atenção quando ele, sorrateiramente, colocou o travesseiro pesado sobre o rosto da avó inválida, que dormia em decúbito dorsal...

quarta-feira, 25 de agosto de 2010

Naquele tempo

Naquele tempo, disse Antenor aos seus cachorros: - Ração, never more! Perdi o emprego, e vocês vão comer arroz de terceira com asas de frango trituradas. Os bichos, num muito de seis, abanaram meia dúzia de rabos, diferentes. O lado bom da incomunicabilidade é o entendimento passivo. Bob, o paqueiro, ainda latiu, agradecido pelo diálogo.
No primeiro mês, a novidade engordou os cães. E, o melhor, Antenor conseguiu novo emprego. Trabalhou com afinco até conseguir retornar ao pet-shop, e reincluir a ração na dieta dos bichos. Machos e fêmeas o odiaram. Só não o desprezaram por completo porque ele já não parava em casa. Um e outro rabo sempre abanava, assim que ele aparecia.

terça-feira, 24 de agosto de 2010

Patrioteiro extemporâneo

Patrioteiro extemporâneo, só tinha olhos de ressaca para as margens plácidas. Hasteava vontades na datas cívicas, comia verde e amarelo: pequi com brócolis, abacaxi com hortelã, milho e salsinha. Um quê monárquico coroou-lhe a opção nos nomes dos filhos: Pedro e Isabel. Sem fugir à luta, entendia que as fronteiras nacionais deveriam ser inflexíveis: nada de fora a nos transformar por dentro.
De tanto tentar legalizar o fumo pernambucano, tombar a malícia baiana, apadrinhar a paciência mineira ou institucionalizar o estresse paulista, foi preso por insubordinação. Na cela, não perdeu o ufanismo: entre grilhões que o forjavam à forra, declarou-se mártir. Um novo Policarpo Quaresma.

segunda-feira, 23 de agosto de 2010

A decepção

A decepção surgiu naquele breve momento que aparece quando uma tensão acaba. Sem a alegria do náufrago pisando em terra firme, Guilherme queria afogar outras mágoas naquela garganta de Gisele, agora morta. Roçavam-lhe aparições de um tempo de fôlego. Silhuetas em movimento. Turras e risos. Destroçados pelo presente inerte de Gisele e suas pálpebras em roxo cintilante. O eco abafado da última boca em êxtase alongava uma tênue caverna que, bem lá no fundo, talvez guardasse o coração que um dia pulsou apaixonado, enamorado, festivo. Haveria de deixá-la para sempre ali, ainda que rumasse torto numa fuga compulsiva. Talvez se entregasse à polícia, não sabia. Como desconhecia ao certo se aquela execução incrédula tinha mesmo sido realizada, nos moldes da intransigência e gim, dos quais agora ressentia.

domingo, 22 de agosto de 2010

Devoto à lógica

Devoto à lógica indignou-se com a opção de Célia. No fundo, sentiu uma inveja inevitável ao ver a moça no vaivém da água, despenteando tédios e maquiagens. Magnânimo, ordenou aos seguranças que a retirassem da festa. Onde já se viu? Aquele calor que não se dissolvia dava justificativa ao gesto da mulher de saltar à piscina, mas e os convidados? Que diriam as senhoras presentes? No outro fundo, previu que aquele romance com a secretária acabaria mesmo, na água ou na terra. Eram por demais retóricas as juras que fazia às tontas, nos vieses da moral falida. A fábrica, não, essa ia bem das pernas, mormente depois do capital aberto aos novos investidores. Não fosse a piscina, novos sócios também desejariam Célia. Melhor uma decisão tomada assim, nas aparências, por justa causa.

sábado, 21 de agosto de 2010

Minotauro tenso

Minotauro tenso na labiríntica favela, meio Creta, meio ramblas, ruivava aos manos ódios de touro com o corpo de gente aos braços. O filho, bala perdidamente desfalecido, ainda com os olhinhos atormentados pelos gritos do pai à altura dos seus. Mato quem foi. Tu és cova, mano. Tu és tumba. Traz cá esse teu esqueleto-esquife pra receber o que merece. E nada ou ninguém. Nem luz sobre a rubra criança, nem tardios estampidos de uma ou outra arma de fogo. Tácitos silêncios ante a fúria do chefe, o boss, o dono, o minotauro enfim domesticado, manso de dor, touro abatido pela morte do bezerro. Justo ele, no declive atemorizante da eternidade. Ele, que sempre se imaginou imortal.


sexta-feira, 20 de agosto de 2010

Dá dó de ver

Dá dó de ver o Fábio. Passa empombado, gavião, peru. Deixa nacos de riqueza ao povo. Gorjetas de desprezo, sobras de caridade, esmolas em gotas. Até amores deu pra ter. Imagine? O Fábio? São "coisas", aquelas. Paixões por holofotes ou amor em dólares. Acha? Pior é a arrogância líquida que ele derrama nos barzinhos e boates. Lambuza. Justo o Fábio, humildezinho de antanho. O que é que não faz uma loteria? Duvido, mas duvido mesmo, do fundo de toda a intimidade que dediquei àquele ingrato, que ele definitivamente não sente mais nada por mim: só essa indiferença atávica! Sorte que eu nem ligo. Levo minha vidinha como sempre fui.

quinta-feira, 19 de agosto de 2010

Ameaçou contar

Ameaçou contar. Cumplicidade no câncer não é vantagem nenhuma. Antes, se calasse. É demasiado óbvio ouvir revelações naquele estado. Pedi silêncio. Nem que fosse por esquisita solidariedade. Ele invejava minha discrição mórbida. Falou: “Narinha fez...”. Cortei: “não!”. Na minha dor não cabem mais os anacrônicos amores de Narinha, devo deixar espaço à morfina. Secar me é suficiente e sensato. Que se enxergasse o vizinho de cama! Pele e osso era o que era, nenhuma voz ou blasfêmia a mais. Recitasse Verlaine se quisesse. Sugeri canção de outono: “vou à-toa no ar mau que voa. Que importa? Vou pela vida, folha caída e morta”. Não quis! Queria afligir. Refletir sombras como se fossem luzes. Exibir ódios, talvez. Aqui, não. Por demais ausente eu não queria exaustões presentes. Tapei inclemente os ouvidos quando ele recomeçou: “Narin...”.

quarta-feira, 18 de agosto de 2010

Ô encrenca

Ô encrenca! O olá dela é um ríspido xô. Dureza de barro queimado, louça da grossa, cerâmica velha. Quebra, mas funciona na ausência de pedras ou coisas mais rijas. Parece talhada a picão com aquelas feições retas e distantes. Dois maridos já foram, e não há terceiro que se apresente. Também, estremece arbustos, a coisa, quando passa. Eu, aqui, nessa solidão do ermo, até que me engraço com a Isabelona. Ainda mais quando o abandono se deita na botija da cachaça. Cheguei a mandar um mimo pra ela: o facão de ferro que foi do meu bisavô. Ela aumentou e muito a sua produção diária no corte da cana queimada. Quase dobrou. Mas isso foi o que Zelão me contou, assim, meio escondido, ao pé do ouvido. E eu vou chegar perto pra perguntar pra ela?

terça-feira, 17 de agosto de 2010

Do jeito

Do jeito que Balzac gostava, Eleonor levou sua lolita às compras. Segredinhos aos centímetros, truques falantes para perguntas que porventura não quisessem se calar, gazelas ipodiadas com Amy Winehouse dos pés às orelhas. Onde há amor tem que haver ridículos, filhinha. Dava dicas à little mocra sobre possíveis golpes no papai e mensalinhos religiosos dos titios. Pisando Paris imaginária deu-lhe cheiros e brilhos, para terraços e viagens. Nada de hotelzinho barato em Visconde de Mauá, não, meu amorzinho. Deixa o velho achando que amanhã vai ser outro dia apesar de você e dê ao DJ. Sem vínculos, minha pitchula. Então suba na arrogância desnecessária, ofenda-se pelas insignificâncias e pronto! Virou rainha! Agora me dê licença que a mamy aqui vai ao banheiro. Quem sabe não rola um desprezo por alguma pobre lavando a mão na pia?

segunda-feira, 16 de agosto de 2010

Ajoelhava e vibrava

Ajoelhava e vibrava. Era dado às crenças cuja necessidade de gestos e posturas deveriam sobrepor à própria fé. Daí não gostasse de orações introspectivas. Açoitou-se às costas, bateu cabeça, recebeu santo, aplaudiu o céu. Talvez imaginasse que Deus fosse surdo ou distraído, que as portas da salvação devessem ser derrubadas às pernadas ou que a vida após a morte haveria de ser um trio elétrico, cujo lugar no cordão só se conquistasse com empurrões e cotovelos. Ajoelhado e vibrante foi acometido por uma enorme diarréia, suores e calafrios incorporaram-se aos movimentos. Sôfregas palavras passaram a palpitar-lhe o cérebro convicto que, naquela hora, o ritual não poderia ser interrompido por absolutamente nenhuma distração exterior. Só não contava com a íntima revelação interior. Virou merda.

domingo, 15 de agosto de 2010

Fácil sempre

Fácil sempre soube que não seria. Atarraxar armário desse tamanho em coluna de concreto é tarefa pra sujeito bruto, nem digo habilidoso, porque o concreto não é pedra-sabão, que se molda apenas com as sutilezas das espátulas. O amor de Vera, aliás, parece que nem aceita bucha de pressão, pra firmar. Inútil querer instalar ali qualquer coisa durável, e ainda por cima que dê para guardar recordações e mimos. Mesmo com as melhores ferramentas, com a disposição em alta, com o propósito apurado, não dá! Vai ver Vera já cansou de levar furos. Vai ver guardou dentro armações de ferro (acho até que são armaduras). Não sei. Certo é que dou sempre errado nessa coisa de decorar a vida com utilidades.

sábado, 14 de agosto de 2010

Não procede

Não procede! Matei com tiro. Os dois buracos de bala nos olhos, lá, sim, foram meus. Deixei a peste mortinha. Agora, essas facadas todas que os senhores estão falando não têm nada a ver comigo. Essa cachorra bem que merecia, mas deixei o corpo como a encontrei um dia na vida: risonha, pernas fáceis, sempre abertas, toda orifícios. Agora posso imaginar, doutor, a traidora tinha marcado com o Gustavo para se encontrarem naquele apartamento emprestado do Ricardo. Dizia pro bobo que iria estudar com as amigas. Pelo que o senhor está me acusando, vai ver Gustavo chegou depois de mim, já sabendo da história armada e, de raiva, furou a morta com aquelas duas facadas no peito. Ela ainda gritou comigo, antes dos tiros, dizendo que Gustavo gostava dos seus seios. Agora dos outros furos, não sei, não senhor, só se foi o Ricardo, que chegou depois. Desse, confesso pro senhor, ela nunca me disse de qual parte gostava mais.

sexta-feira, 13 de agosto de 2010

Passou do ponto

Passou do ponto, mas não se fez de rogado. Puxou a campainha para a próxima parada. Levantou-se sem pressa. Camisa pra dentro, olhar em roda. Ainda espanou com os dedos um cisco fictício no ombro esquerdo. Puro charme, sabe Deus pra quem. Fixou a visão no corredor que acabava lá na frente junto ao motorista. Então caminhou lenta e compassadamente, passos militares, como se estivesse passando a tropa em revista. Instalou-se nas proximidades da escada da porta da frente e aguardou...cinco, dez, quinze, vinte segundos. Desceu firme, convicto. Ninguém jamais imaginou que naquele ponto o homem praticava um erro.

quinta-feira, 12 de agosto de 2010

Quis quixotar

Quis quixotar sem ser besta ou visionário. Quebrou a cara. A farinha do moinho santista era por demais grudenta quando misturada à água. Idalina, que usou como Dulcinéia, não viu doçura no gesto estabanado de receber o bolo, “que ele próprio faria”. Foi meleca de chiclete aquele encontro, que tinha tudo para ser grudento e lento, com sabor de hortelã ao invés do hálito baforento de Anacleto. Pior que a massa mal sovada foi a conta que a moça fez sobre a língua do desastrado: nem de libido, de fala mesmo. Língua afiada e fofoqueira, que levaria à fogueira aquela santa pela sua espavorida inquisição. Do alto de seus castelos, Idalina viu frustrarem-se os sonhos, e decidiu de vez procurar outro padeiro. Preferencialmente com prática em forno.

quarta-feira, 11 de agosto de 2010

Cacarejou reclamações

Cacarejou reclamações pra mocinha do caixa, que na solicitude do emprego ouviu e engoliu, cheia de mal estar. A sovinaria do homem era de cão faminto, mesmo que lhe sobrassem rações e ossos. Não que ela precisasse lisonja, bajulação ou mesurice, mas dinheiro, isso sim, objetivava sua melancólica paciência. Tanto fez o tal sovina, que Elizabete chamou a gerente, fonte extra do endosso à negação do desconto, pretendida pelo o avaro. Foram vagabundos minutos de palavras inúteis, até que o homem resolvesse, enfim, ir embora sem levar nada, apenas o saco de leite, sem o qual não poderia tomar seus remédios de velho rabugento. Elizabete embrulhou o saco num papel de seda, usado sempre para presentes. Mas, ao entregar-lhe, deixou que o anel penetrasse numa das pontinhas ocultas do embrulho. “Até ele chegar em casa sua tacanhice acaba”, riu à gerente.

terça-feira, 10 de agosto de 2010

Cisma sempre

Cisma sempre teve lá as suas. Ainda dizia que o homem que não é cismado tem sempre umas doenças da cabeça, por ocupá-la só com gulas, por comidas e mulheres. Naquela idade, todo mundo ouvia o Irineu e sentia seu cheiro de pouco banho, sentado à fresca sob as árvores perfumadas de jambo amarelo. Ainda antes do dia, acendia o palheiro com fumo goiano, distribuía pão amanhecido com leite aos cães vagabundos e se acomodava no banquinho de madeira, como uma galinha choca, abanando as nádegas murchas de penas pra lá e pra cá, até se ajeitar. Ali ficava, tabacando filosofias, prosas fumegantes e recolhendo as conversas que outros jogavam fora. Irineu perdeu a pressa depois que os filhos cresceram. Encontrou a sensação de provisório no mundo e se afeiçoou a ela, só não gostava de falar da morte. Pura cisma.

segunda-feira, 9 de agosto de 2010

Brecha e meia

Brecha e meia rememorava siamesas coisas e causos, que passaram a si, sem que outros tivessem idêntica referência. “Haja hoje para tanto ontem”, cuspiu João Carlos com enfado explícito, meio que displicente, meio leminski. Então não tardou a desandar os passos da prosa, partilhando águas presentes. Olha aqui, cidadão de antanho, enfie seus remotos no auto-tédio, seu saudosismo no saco de fastio, seu fossilismo no enfaro em que vive, depois dê descarga e confira com os olhos, para ver se não ficou marcas nas bordas da privada. Foi pesado da parte de João Carlos, que ajeitou seus óculos moles com os dedos enrugados, ainda cuspiu no chão, para esconjurar desentendimentos. O homem silenciou-se domesticado. Curvou o braço e levou à boca, de virada, todo o meio copo da cachaça restante. Olhou João Carlos nos olhos, fez que sim, e saindo, ainda virou-se desafiador: “mas que era melhor antigamente, isso era...”.

domingo, 8 de agosto de 2010

Deu a deixa

Deu a deixa e se esquivou. Sugeriu a Karla que a fuga, caso houvesse aceitação do plano, seria pela velha estrada de acesso à autopista, a pé e sem pressa. Lá, sim, deveriam deixar um carro, veloz e discreto. A ganância superou a fé, e Karla concordou. A imagem era de Nossa Senhora das Dores, que reluzia há século, com saúde de ouro, na velha capela do lugarejo. Ex-filha-de-maria, Karla hesitou apenas quanto à data. Na sua devoção o domingo era dia santo, mesmo à noite. O estrategista Horácio explicou-lhe o motivo. O furto coincidiria com o término da última missa. Coisa de domingo. Outra, só no próximo. Teriam uma semana para vender a santa, sem que houve qualquer denúncia de seu desaparecimento. Quer dizer, Karla teria esse tempo, ele, não. Era devoto demais para se meter com as coisas da fé...

sábado, 7 de agosto de 2010

Pastoso ainda

Pastoso ainda vá lá, trágico é que Francisco era gago. Insistia em manifestar tristes sílabas de alegria quando, delicadamente, com gestos de relojoeira, Amábile o emboscou ao tocar-lhe a boca. Psssiiiuu! Sibilou indulgente. Ele, só feição. Quem sabe ria, na fragilidade errada do viés que se sabia um chato. Piscou fosco e esperou que o dedo da amada lhe saísse dos lábios, impreciso, avermelhado, quase cúmplice. Então ela lhe falou “não fale”. Convém, ele pensou. Obrigado a tropeçar palavras agradeceu-a sem silêncio. Gesto de cabeça, curto. Amábile trocou o dedo pela boca, e beijou-lhe absorta na meditação do afeto. Francisco fez cara de cachorro benigno, cheio de frases improváveis saracoteando-lhe o cérebro. Diria então que a amava profundamente, mas ouviu outro “psssiiiuu!”.

sexta-feira, 6 de agosto de 2010

Depois afastei

Depois afastei o retrato, distanciei as feições, comensal solitário. Depois desisti do definitivo, ri repentino, debrucei no sono. Depois foram leituras frágeis, caminhadas desprotegidas, ouvidos apurados acima da barba por fazer. Depois veio a paz intemporal, estradas improvisadas e o acréscimo do aquário na sala. Depois, peixe e eu, em ressonâncias mudas. Arremedei a boca dele, colada e solta, colada e solta. Depois a rouquidão de versos, estalos e silvos, brindes aos novos dias. Depois o regresso às visitas, convívios domesticados, contornos de “tudo bem”. Depois os endoidecimentos, os remédios inúteis, a artéria pronta para a laqueadura. Muito, muito depois não havia arestas.

quinta-feira, 5 de agosto de 2010

Gancho de prata

Gancho de prata sem movimentos ou gestos, Abundâncio o tinha à ponta do braço esquerdo, só de farra. Dizia-se “maneta”, contrariando Edite e as legislações que impediam tal tratamento a alguém que porta deficiência física. Da troça à pecha havia evidentemente a farsa, que foi tratada por amigos igualmente incorretos com a denominação “capitão”, precedendo o nome de Abundâncio ou apenas “gancho”.
Como na cidade não houvesse peters-pans, capazes de desdenhar o embuste, Edite ergueu a guarda, em sentida síndrome de fada Sininho. Com cólicas de desejo, larguras nos decotes e lençóis frescos sentenciou concisa ao marido farsante: “de hoje em diante você tira o gancho ou vá viver com seus piratas”.

quarta-feira, 4 de agosto de 2010

Alimento farto

Alimento farto virou álcool. Daquelas terras mal sobravam parcos espaços, feito vielas áridas de chão batido, serpenteando às vezes sem nexo ou fluxo certo o meio do canavial inevitável. Paulo que viveu ali desde os dias das roças era agora uma sombra impertinente desviando da cana alta. Um aquário no mar. Uma roseira pálida no caniçal impiedoso de usinas que lhe superavam o perfume. Não havia vista nem chance. Tomado de cegueira pelas barreiras das plantas; de indignação, pelo insucesso dos pais e parentes, antigos produtores de arroz, feijão, café e laranja. Na realidade labiríntica daquelas glebas verdes, virou personagem de um videogame sórdido, que em breve entraria numa nova fase: a das queimadas. Todo o tédio ainda que verde ficaria preto e espalharia fuligens, independentemente da habilidade do jogador. Era preciso sair dali, sob pena de um “game over”.

terça-feira, 3 de agosto de 2010

Céu sereno

Céu sereno, povoado agitado. Manifestação inquietante ante a tal cobra que por lá andava às tontas. Bezerro comido aqui, rastro ali, histórias acolá. Olhares acusadores para Demétrio. Seu tambor era o que chamava a víbora. Demétrio nem tchum. Negro recluso de nariz argolado. Mal pronunciava pedidos de esmolas, articulados às pândegas. O tambor era uma velha lata, que um dia transportou tinta amarela para a igrejinha pintada. “Bum, bum, má dá café! Bum, bão, má dá pão!”. E só. Nem uma sílaba solta a mais. Irascível incompreensão humana, sabe-se lá por qual peçonha, deu para acusá-lo do mal comum. E o ponto de linchamento do coitado já se aproximava, quando o ceguinho da matriz abriu os olhos da plebe: “se a cobra entende até o Demétrio, imagino que ela irá embora, se vocês explicarem que deve partir”. Cada qual em sua casa fez sua parte. Parte com a própria voz, parte com São Bento, e a cobra nunca mais apareceu.

segunda-feira, 2 de agosto de 2010

Da margem

Da margem, olhava o mar. Damasceno era mergulhador com medo de água. A aprovação no concurso público viera em boa hora. Fora merecida, admitamos. Bom na observação das coisas, seus escritos sobre as profundezas do oceano nos levavam ao encontro com uma arraia gigante ou cardumes de colorido alaranjado. O mar era para Damasceno uma tarefa, não uma paixão ou um prazer. Logo ali, à espreita, tinha consciência plena de que jamais haveria de entrar na água, mesmo que para isso tivesse que apelar a uma licença-saúde, um mal subido ou abono legal. Anos. Água, jamais. Na sua despedida, pelo direito à aposentadoria, pediram que contasse histórias do ofício, Damasceno nunca mergulhara tão fundo nas aparências das almas como naquele adeus.


domingo, 1 de agosto de 2010

Traste e bufão

Traste e bufão eram tratamentos corriqueiros usados por Clara contra Cláudio. Louca e culta, a Clara, Cláudio, não. Conheceram-se conduzindo cachorros no parque. Clara, o Pepe. Cláudio, a Margá, mas Margarida era o nome da cadela cocker: amarela e lépida. Guias se cruzaram, coleiras tocaram-se, olhares sem rosnares e pronto: estava ajustado o romance frouxo, com breves paradas nos postes para o alívio de Pepe. Depois foram idas aos pet-shops, tosas e banhos, camas e bebedouros, receitas de rações. Todos vacinados: os cães nas datas fixadas; Clara e Cláudio por amores passados. Não foi suficiente para conter a raiva. Clara nunca perdoou Cláudio por cheirar o prato, sempre que lhe servia o jantar.