segunda-feira, 30 de novembro de 2009

Verve musical

Verve musical... verve musical... se assobiasse o “Parabéns” ela era capaz de desafinar! Mas insistia em se apresentar como flautista. Já ouviu? Coitados do Altamiro Carrilho, do Paul Horn, Jean-Pierre Rampal, James Galway, Alain Mariondo, Mauro Senise, Pixinguinha, Celso Woltzenlogel, Danilo Caymmi... Se ouvissem aquilo mudariam de instrumento, para a gaita de fole. Talvez Hamelin, que é inventado, pudesse se equiparar a ela, como a própria se inventou.
Convidou a turma para ir a casa dela assistir seu concerto. Carecia conserto. Não que se rejeite um convite, mas ouvido também tem limite. Isso não se faz, Arnesto. Pois não é que a bruxa lascou “Brasileirinho”? Foi a própria representação do povo no diminutivo: pobre, capenga e tropeçado. No fundo o que deu foi uma raiva pândega. Só rindo da ousadia! À boca pequena, quase soprado, um olhava para o outro e pensava num lugar apropriado para ela enfiar a flauta, e bem que poderia ser na transversal, pra coisa saber que com música não se brinca!

domingo, 29 de novembro de 2009

Conto vagões

Conto vagões de trem desde criança. Cada comboio que passa é uma aritmética doente, feito uma felicidade com limite. Também, acho que não existe felicidade sem limite. Vou seguindo os forçosos caminhos lógicos: um, dois, três, até o último. Os trens cresceram com as cargas. De gente, eram menores. Agora, além de enormes, parecem estátuas carentes de arte, passando em série. Nenhum aceno do vagão cinco ou um gracejo do vagão vinte e dois. Só aquele brilho outonal, empoeirado pela indiferença e sem conceito sobre si mesmo. Diabo de um rio sem peixe, serpente desprovida de veneno. Mas até que não vem o fim não saio dessa cadeira. Não paro os números pela metade...
Nesse meu aniversário de oitenta anos deram-me uma locomotiva de brinquedo. Vai ver imaginam que eu goste de trem. Odeio! Conto todos porque sempre pensei em explodir um deles pela metade, mas nunca cheguei a um número absoluto que fosse a metade. Daquele, bem no meio. Eles mudam de quantidade. Deve ser para atormentar minhas contas. Safados. Na dúvida, mantenho essas dinamites no guarda-roupa há quarenta anos. Se não errei até agora, espero mais um pouco. Quem sabe padronizam, para o meu prazer.

sábado, 28 de novembro de 2009

Quando perguntavam

Quando perguntavam a Alexandre “o que é que você tem feito?” ele era enfático: nada! A autenticidade às vezes indignava o interlocutor, mas este deveria se dar por satisfeito, porque na maioria das vezes em que lhe faziam tais perguntas, Alexandre simplesmente continuava a olhar o céu ou a contar acerolas de uma árvore carregada da fruta que plantaram no fundo da casa onde morava, e não dizia coisa alguma.
Seguia a orientação para luz que têm as plantas. Falava em “perda de tempo” para quem insistia em “ganhar o tempo” com a mesma desfaçatez com que os cachorros fazem sexo, quando encontram uma cadela no cio. Respirava anônimo. Soletrava pensamentos. Murmurava pausas. A letargia da existência era para ele a própria essência de existir. Mas percebeu a ironia de Orlando, quando este o apelidou de “Nobody”! Foi com um gemido de pesar que olhou para o ex-amigo. Um descontentamento incidental conseguiu, enfim, roubar-lhe a atenção, e com a vagueza da distância entre um pingo e outro de uma garoa, levantou os dois ombros simultaneamente, como se concluísse: “e daí?”.

sexta-feira, 27 de novembro de 2009

Hora do lanche

Hora do lanche. Gorete deixou a escrivaninha sem a pressa dos astros. Contemplou, de pé, o último arquivo do computador e o salvou. Olhou para os papéis esparramados sobre a mesa e endireitou-lhes as pontas insubmissas. Da memória, buscou as cartas, traduções, ofícios e recados que realizou com a competência cega de secretária executiva bilíngüe. Ajeitou a blusa em busca da decência, a saia, no perfil da forma, o relógio de pulso e as discretas pulseiras, nos padrões da estética profissional que cumpria à risca.
Ao sair da sala olhou para trás. Vaso com flores frescas sobre o aparador, tapete em linha exata à escrivaninha, as pequenas almofadas arrumadas à esquerda do sofá comercial, portas internas fechadas. Tudo na mais perfeita ordem, pautada pelo rigor da empresa. Apertou o botão do elevador e olhou para o botão de chamada, como se visse o infinito. Desceu estática com dois outros homens que já se encontravam no elevador. Foi ao estacionamento e entrou em seu carro. Tirou do porta-luvas o frasco amarelo, e com a água da garrafinha que estava no console tomou dois, quatro, seis, oito, doze comprimidos. Ajeitou-se no banco e esperou pelo resultado. Enfim, sairia da rotina.

quinta-feira, 26 de novembro de 2009

Profética

Profética, a morfética! É abrir a boca e lá vem problema. Quando diz que vai chover, pode esperar um temporal. Se reclamar do trânsito, pare, porque a iminência de uma batida é segura. Mas o pior dos vaticínios ela cometeu ainda sob a névoa da manhã, daquele inverno de julho. Quando os primeiros raios solares se preparavam para refletir na vidraça do edifício Nero, ela sentenciou incauta: “nossa, parece que o prédio está pegando fogo!”.
Oito horas depois, durante o resgate do centésimo primeiro corpo daquele incêndio terrível, um bombeiro menos graduado jurou ter ouvido de uma das vítimas, já moribunda, juras de verdades obscuras: “foi uma mulher, foi uma mulher. Ela parecia soltar fogo pelos olhos”. Mas relato perdeu-se na história da tragédia. Ninguém liga para alucinações, palavras mortas ou profecias.

quarta-feira, 25 de novembro de 2009

Impliquei com

Impliquei com a Ágata por causa da sobremesa. Onde já se viu, depois de uma macarrão à bolonhesa servir bolo de chocolate? Ela é assim, voluntariosa. Dia desses cismou que a dobra de minha calça era pra dentro. Passou a roupa assim. Onde já se viu? Acha que eu vou andar de lado? Pior foi no mês passado. Disse que não faria faxina no forro porque não matava lagartixa, bicho bom, que comia aranhas e formigas, sei lá... Queria ver se uma lagartixa pegajosa caísse na cacunda dela. Mandei pulverizar veneno em tudo, só então avisei a Ágata, que chorou de raiva ou dó, não sei também. Manienta, manienta é o que ela é. Quando mando ela ir buscar meu sapato preto traz sempre o par errado. “O senhor tem tantos!”, diz, a doida. E as flores que ela colhe no jardim para decorar a casa? Teimosa. Já falei que não suporto flor em casa. Lembra velório. Depois, fica com aquele cheiro de cemitério amanhecido. Sorte da Ágata que pra mim tudo tá bom. Sou um sujeito sem muita birra ou quizila com a vida, senão ela estava ferrada...

terça-feira, 24 de novembro de 2009

Não era mau

Não era mau, mas tornava difícil para si mesmo ser bom. Com o caráter provisoriamente definitivo, distribuía conselhos a quem não os pedia, dava veredictos a torto e a direito, sentenciava finais de histórias e falava como se toda a sabedoria do mundo lhe tivesse sido conferida, e a mais ninguém. Era, enfim, um chato ortodoxo, desses que não admitem brincadeiras a sua petulância.
Essa espécie de loucura, similar a das virgens que se julgam grávidas, fez de Percival um malquisto notório. Um antipatizado até pelos cachorros do bairro, que ele teimava em colocar para dentro de suas respectivas casas. A ruga de reflexão que carregava entre as suas sobrancelhas, porém, foi desfeita com a visão de Iolanda, a morena-jambo sagaz e sestrosa, que se mudara para lá havia pouco menos de uma semana. Com a leveza de um lutador de sumô, arriscou uns galanteios à moça, que lia sentada num banco da praça: “você deveria passar um protetor solar 30, para sua pele não sair nunca desse tom lindo que tem”. Indignada, a jovem o olhou da testa à ponta do sapato, diagnosticou a figura, e simulou uma conversa com uma amiga íntima: “na página 23 desse livro, a mocinha manda o cara ir à merda”...

segunda-feira, 23 de novembro de 2009

Duplicou a aposta

Duplicou a aposta. Tinha a seriedade de uma criança pidona, que quer ouvir a mesma história pela trigésima vez. Olhou as cartas de esguelha, acendeu um cigarro, baforou. A timidez do adversário lhe parecia falsa, então também tramou um temor negaceado. Triplicou a aposta, insolente feito o gato que, do alto do muro, observa o cachorro latindo e pulando para tentar alcançá-lo. Coçou o queixo, baixou os olhos, disse que não queria outra carta. Ensaiou o pedido de outra dose de uísque, voltou atrás. Um copo com água, pediu seco. Abriu o jogo. Full house: uma trinca de dez e um par de damas. O adversário sorveu os lábios, irônico. Abriu o quatro de paus, o cinco de paus, o seis de paus, o sete de paus, o oito de paus: straight flush. Esticava a mão às fichas quando recebeu sobre o mindinho o peso de um soco firme, de mão fechada. Enfureceu-se, e já partia para briga, quando o agressor sorriu, com a displicência de uma vingança: “sortudo!”.

domingo, 22 de novembro de 2009

Já tá pensando

- Já tá pensando em besteira! Falou em flor Graciete, ao namoradinho inseguro. Ele coçou a virilha, desajeitado, e respondeu vermelho, evasivo: “Não!”. Ela se riu, com preciosa malícia. Trocaram os desejos pelas mãos, dadas corretinhas, entrelaçadas. Na solitária casa da tia só Michael, o labrador xereta, conferia aquele amor adolescente, abanando rabo e emitindo um monossilábico “au”, a cada selinho do casal.
A urgência impregnava a cobiça. O anseio se fundia aos sussurros. Apetite e aspiração provocavam os hormônios sintonizados. Graciete fez o que pode para poder fazer. O namorado repetiu ensaios de proibições passadas.
Michael ergueu curioso o par de orelhas amarelas. Como se farejasse e festejasse a chegada da dona distante, pôs-se a babar sonoro: au, au, au, au, au, au, au, au, au...

sábado, 21 de novembro de 2009

Os cabelos

Os cabelos da gringa estavam colados no seu antebraço. Leves e claros, feito os dias sem vento. A ignorância de Tobias para aquelas palavras que ela dizia era extremamente divertida e variada. Bem sabia que elas deveriam conter muito veneno para pouco prazer, mas garantiam-lhe um certo quê de importante junto aos seus, pobres guias turísticos daquelas cachoeiras distantes de tudo. Se Deus premedita tudo, e até sabe como alguém irá pecar, não havia motivo para ele pensar em culpa. Percebeu, sim, que a loira era casada com o loiro forte, mas se o marido só pensava em fazer trilhas, porque ele, Tobias, não haveria de trilhar os caminhos da moça? Só não contava com a chegada repentina do gringo, bem no momento em que a gringa estourava uma jabuticaba em sua boca, utilizando a própria boca. Bem que tentou dissimular a maldade que o homem enxergou, mas o braço forte do alemão foi mais ligeiro do que uma possível explicação. Com gosto de sangue e fruta, cuspiu o dente nas pernas da gringa. Voltou ressabiado para o barraco e pediu para Clarinha um pano limpo e uma sopa de aipim com queijo. “Esse trabalho me machuca”, ainda esbravejou, mascando absolutamente nada.

sexta-feira, 20 de novembro de 2009

Então fariam

Então fariam parte da repetição diária dos conselhos. Ventríloquos da seita que pregava a abundância sobre um roto tapete persa. A contribuição dos consulentes seria módica, quase insignificante, mas semanal: às sextas-feiras, das oito da manhã às seis da tarde, com intervalo de hora e meia para o almoço. O ritual era esse. Cada fiel que entrasse ouviria um breve mantra: dois minutos. Abaixaria os ombros e receberia três micro-croques no cocuruto: 9 segundos. Mentalizaria o desejo imediato: 30 segundos. As luzes se apagariam, para o mínimo de visibilidade mútua, e viria o aviso: troque o duvidoso pelo certo: 15 segundos, incluídas as vinhetas de abertura e encerramento. E a libertação: volte para o seu trabalho e produza.
Começaram bem. A fidelização dos fiéis chegava a 87%, o que lhes garantiria uma retirada de 3% sobre a receita dos donativos. Que passaria a 4%, caso atingissem a marca dos 90% de retorno. Mas, tanta metamorfose, os deixaram irreconhecíveis. Quando alardearam que eram, já, o próprio Deus, o pastor-gerente os demitiu, por justa causa.

quinta-feira, 19 de novembro de 2009

Prosaico e separado

Prosaico e separado de seu trajeto no dia, Abílio abriu o porta-malas do velho monza e meteu lá duas cestas de piquenique, feitas de palha trançada e cobertas por pano xadrez. Bateu a tampa desconectado da modorra de uma vida de minúcias. Acelerou, e só estacionou sua alegria na casa de Flávia, colega no cartório, que num dia de carência fora guardiã de sua vida íntima, e testemunha auditiva de suas lamúrias contra os carimbos tacanhos, os obsoletos selos e as falidas firmas reconhecidas. Sobre o acolchoado do banco do carro tocaram-se as mãos, dois dedinhos de prosa e olhares cúmplices, que enxergavam a cena daquilo que acontecia com eles mesmos.
Na margem do pequeno rio próximo à cidade, sob a copa da figueira, trocaram juras eternas de ódio à profissão de escriturários. A ânsia tátil, no entanto, não passou das baguetes com patê de atum, retiradas delicadamente das cestas, debaixo do pano xadrez.

quarta-feira, 18 de novembro de 2009

Dançar flamenco

Dançar flamenco era o forte de Carmen. Claro, com um nome desses. O detalhe é que ela era japonesa. A mãe veio grávida, de Kanagawa para o Brasil, e foi no cartório de São José do Rio Preto que o pai, mal e porcamente, soletrou o nome da criança recém-nascida: Khar Mi Yamagushi. Saiu feliz com a certidão de nascimento de sua guria e um papel que também não entendia, mas onde se podia ler: Carmen Irmã Dulce.
Foi no colégio do bairro que a menina conheceu a imigrante espanhola Dona Guilhermina, teimosa professora, que insistia em manter as “raízes hibéricas” dos alunos. A japonesinha logo começou a ensinar seus pais a falarem a suposta língua nativa do Brasil: “holla”, “muy bien”, “a mi me gusta” e outras expressões corriqueiras. Mas gostava mesmo era de dançar, e não tardou em aprender sapateado ao som das castanholas. Destaque na pequena escola rural. Destaque na média escola municipal. Destaque na grande escola estadual, Carmen foi convidada a dançar para o presidente do país. Num gesto magnânimo, o poderoso político foi cumprimentar os pais da bailarina, após o espetáculo. O Senhor Yamagushi, depois de três genuflexões e de sorrir sem parar, respondeu-lhe aos cumprimentos, sem pensar muito: “muchas gracias!”.

terça-feira, 17 de novembro de 2009

Os lábios erguiam

Os lábios erguiam e baixavam, como dois agressores da barba. Era dado às coisas do esoterismo doméstico. Lia a vida na borra do café; previa mudanças pelo caminho das formigas; garfo caído era visita de homem, se garfinho de sobremesa, de menino. Até que a faca de carne foi ao chão, num descuido imperdoável. Procurados com atenção, os olhos dele podiam ser vistos como duas luas flutuando numa atmosfera insegura. E agora? Fez o riscado em cruz com a própria faca, sobre o chão onde a apanhou. Via-se claro o seu desconforto, como a visão que temos de um relógio parado. Disse qualquer coisa de si para si mesmo. Um esconjuro, um pedido de calma ou uma reza, sabe-se lá. Começou a mover-se lentamente, com a faca ainda em punho, rumo a pia da cozinha. Sua expressão era de a humanidade toda era um enorme saco de demônios, cuja boca deveria estar sempre bem amarrada, para se evitar que ela o atacasse. Lavou o metal, enxugou-o com um pano branco e o guardou na gaveta. Depois virou-se, e sorriu, profetizando a salvação: “calma, gente, o equilíbrio foi retomado!”. Caminhou sereno rumo ao quintal, e teria, quem sabe, até assobiado de felicidade se, no caminho, não tivesse pisado no rabo de uma lagartixa esbranquiçada... Novos presságios!

segunda-feira, 16 de novembro de 2009

Vida cantora

Vida cantora. A introdução no dia de hoje é em si, a última nota da escala musical. Vou confidenciar o motivo: é que hoje é o dia do meu suicídio. Quer vir me cumprimentar, aproveite. Parto ali pelas oito da noite, mas até lá levarei um dia normal. Vida cantora, legítima, com seus sambas, serestas, tangos e chorinhos. Você tem dó? Então vamos lá. Dê um dó pra começar a escala. “Quando eu nasci veio um anjo safado, um chato de um querubim, que decretou que eu estava predestinado a ser errado assim”. Viu? Sou capaz de cantar no dia agendado para a minha morte. Quer passar a ré? “Cheio dos risos falsos, da alegria, eu andei cantando a minha fantasia, entre as palmas febris e os corações”. Sim, cometi pecados aos acasos, tendo a felicidade como justificativa. Agora falta pouco e vai ser rápido. Amanhã você comenta com todos: o cara cantou, cantou e morreu. Pode até dizer que eu era meio doente, afinal estarei morto e tudo se encaixará. Boa música não extrapola na intensidade ou timbre, no ritmo, melodia ou harmonia. Vida cantora, não desafina. Termina, quando o som da vez é o do silêncio.

domingo, 15 de novembro de 2009

O silêncio vincava

O silêncio vincava na vila dormida. De repente, o ar vociferou um uivo de bicho grande. Lobo, lince, onça ou... “Lobisomem”, gritou um, do quarto de fundos da casa dos Silveira. Pra quê! “Vam’lá pegá o bicho”, veio no vento uma convocação nervosa, sabe-se lá, então, se dos Silva ou dos Nogueira? Uma veneziana acordava com uma cabeça perturbada. Outra janela espreguiçava desentendida, com duas mãos coçando os olhos. Ploc-plocs de passos inquietos das gentes valentes começaram a descompassar silvos e roncos. A vila virou um luzeiro, num pega pra capar desajustado. “Foi por ali?”, “cerca a esquina”, “vou por aqui, mais o Tonho”. No escuro de cada um, uma vontade louca de não topar com o bicho. Da boca pra fora uma aparente coragem que vinha de dentro. “Tenho família, né Carlão? Diz-que esses monstros matam assim, ó!”, disse Lézo. Carlos Gotardo não disse nada. “Tá no telhado!”, apontou Luquinha. “No telhado é chaminé, seu leso”, alguém respondeu.
Tico-Louco ficava se rindo, com os olhos até vermelhos, da arte prazerosa. Amanhã à noite, na mesma horinha das duas e meia, arremedaria um estouro de boiada, um incêndio, essas coisas de medo. Depois pensaria nisso.

sábado, 14 de novembro de 2009

Conforto? Gosto

Conforto? Gosto. Não sou lá dos que o tem, mas tento. Carro que anda, casa onde não chove dentro, comida quase sempre quente. Vício? Não. Fumo quando bebo umas cachaças, só aos sábados. Não todos. Luxo? Não. Roupa dura bastante, até acabar. Acho que foi isso. Isabela era luxuosa. Lia Capricho e livros do Paulo Coelho. Adorava colecionar sapatos. Tinha um monte de pares, a quadrúpede. Enjoou do arroz, riu do fusca e disse que preferia o cheiro de uísque, a oposta. Nada meu era bom. Avisei uma, duas, três, sei lá quantas vezes. Primeiro bati nos olhos, com as pontinhas dos saltos finos daquele tamanco dourado, indecente. Com aquela bota de couro vermelho, dei firma nos dentes.
Cega e banguela ela perdeu o luxo. Tá ali, no sofá da sala, quietinha, a besta.

sexta-feira, 13 de novembro de 2009

Disfarçando a encabulação

Disfarçando a encabulação e os tiques nervosos, Leonardo demonstrava-se, sempre, senhor da situação. No bar, entre amigos, contava a história de Janaína, sua ex-namorada, cobiçada por todos os presentes pelas curvas e simpatia avantajadas. Vaidoso, era daqueles que apreciam martirizar o ouvinte, com pausas de suspense. Como na parte da prosa em que revelava a primeira vez que a tinha beijado. “Estávamos na Ilha do Mel, no Paraná, navegando em uma escuna vermelha. Então ela se aproximou, de biquíni minúsculo e sorriso fácil. Eu fingi que não era comigo. Vocês sabem... aquele pedaço. No vaivém das ondas ela sentiu um certo enjôo. Fui consolá-la...”. E eis a pausa estratégica. Tomou um gole de cerveja, pegou um bolinho de aipim, mordeu, limpou calmamente a boca com um guardanapo, apanhou o copo de cerveja novamente e, quando foi entornar outro gole, Basílio que, como os demais, sempre o considerou um desagradável, soltou forte um berro bêbado: - Desembucha logo, ô Leo! Eu bem desconfiava que o que houve entre você e ela foi um vomitado à primeira vista...

quinta-feira, 12 de novembro de 2009

Otávia, onde você

Otávia, onde você estava? Eu tava no sonho, uai. E você pensa que eu sou poeta onírico? Oní... o que? Deixa pra lá, e diga o que você fazia sozinha no sonho? Quem disse que eu estava sozinha? Você disse que estava... No sonho, eu disse. Estava com quem? Com o Ari da Padaria, comendo sonhos. Então o que você comia era o sonho? Os sonhos, porque tinha os de goiabada e os de creme. E o que o Ari te dizia? Comia, uai. Como? Ele comia, não dizia, já viu o Ari falar de boca cheia? Por que, então, você sonhou com o Ari? Porque ele vende sonhos, justamente os sonhos que eu comia. É... mas poderia ter sido com a Marli, a moça da padaria? Foi com o Ari, fazer o quê? Sei... e que gosto que tinha esse seu sonho? Já disse, creme e goiabada. Nunca vi mulher no sonho comer sonhos! Claro, você não é um poeta oní... o que mesmo?

quarta-feira, 11 de novembro de 2009

Ouviu, do nada

Ouviu, do nada, a voz da amada. Entre todas as palavras que escutou, de uma ele se lembrava: “porta”. Mas não sabia ler repentes, improvisar gestos ou arquitetar mistérios. Não havia sequer amada em casa. Mas havia, sim, uma porta, para onde seguiu indeciso. Enfeitiçado por uma obviedade obscura. Todavia, não havia a amada na porta.
No trecho perplexo, para o lado o oposto ao da porta, chegou à cozinha, vencido. Fugia-lhe a humilde compreensão do nada. No ócio do caminho solitário declinou pensamentos mórbidos, enigma de sinais ou presságios inexatos. Tomou um labiríntico copo d’água gelada, sem ignorar detalhes, quem sabe, reveladores. Irrelevante atitude. Os mágicos rigores cotidianos demonstravam-se incapazes de desvendar delírios.
Linda, a amada chegou horas de depois, e sorria. Ouviu da amada a sua voz. E louvou-a, numa alegria infinita.

terça-feira, 10 de novembro de 2009

Brincando de ser

Brincando de ser Adão, porque era o primeiro homem da família Paraíso e Silva, Zuenir convocou Edilvânia para ser Eva. A febre da fábula fez com que pedisse à menina que tirasse a roupa, para que juntos nadassem nus no riacho ao fundo da fazenda. Levaram doces e suco de limão para o piquenique. No jardim de maravilhas, depois de muito se cansarem, entre correrias e brincadeiras na água, vestiram as roupinhas e voltaram para casa: apaixonados e maravilhados.Foram os anos de Éden, harmônicos e ingênuos, até a pré-adolescência, quando decidiram incluir a maçã no cardápio. O sabor adocicado do prazer ampliou-lhes a dimensão do espaço, mas criava-lhes uma certa ansiedade e, pior, despertava-lhes o ciúme, até então inimaginável naquele Jardim das Delícias. Tinham quase dezessete anos, quando Edilvânia convidou o primo Abel para brincar também. Foi com o canivete, o mesmo instrumento utilizado há anos, para cortar os doces e a maçã, que Zuenir cravou o peito nu de Abel. A água do riacho serpenteou réptil entre as pedras.

segunda-feira, 9 de novembro de 2009

A labareda

A labareda de Lorena externava-se nos olhos. Felino, tigroso. Parecia que acordava de um sonho malcriado. Estaria escutando ainda? E vendo? O quê? Não se mexia, a louca. Ardia em chamas como se mergulhasse numa piscina de água límpida. Portava prazer no sorriso, aspiração no gesto, cócegas no cérebro.
Afogava seus possíveis anseios de perfeição naquela decisão obscura. Cabeça desgarrada do peito, braços em linha, feito o ardor de uma vela sem vento. Celebridade do tempo, com previsão de cinzas e traumas alheios. Mumificação viva do esqueleto agudo. Fim de um calculado ritual de traumas.
Contam que Lorena decidiu se queimar em praça pública pela falta de Laurindo. Uma ternura imensa lograda ao desprezo. Contam também que chorou, tarde demais, naquela noite.

domingo, 8 de novembro de 2009

Atropelos e zelos

Atropelos e zelos, tenho-os às dúzias. Claro, cada qual em sua hora. Passei a foice no mato do terreno do lado sem olhar pra baixo. Não havia planta com nome, uai, que se dane. Fosse uma primavera, assim, uma roseira ou um diabo de um cacto espinhudo, até teria zelo. Foi igual na festa do compadre Tiãozinho, maldiçoada do diabo. Aquelas primas assanhadas feito cadelas pincher. Estridentes, você sabe. Vieram brincar com a perna comprida de homem, tomaram rabo de arraia. Esparramei umas quatro. Fossem moças ordeiras, positivas, até era capaz de propor casamento. Que é aquele, você sabe, meu lado zeloso.
Não posso negar que às vezes erro. Diz que é humano, né?, Apesar dos colegas da venda terem me chamado de animal. Já estava de língua pronta esperando o gole daquela do engenho, quando o finado Beto gritou pra eu não tomar não. Virei a pinga pra dentro e dei sem dó no barrigudinho safado. Coitado. Coitado mais ou menos. Tinha posto gasolina no copinho e deixou na mesa, para acender o fogo na lenha. Tomei aquilo mas, zeloso, não fui eu quem o matou, não. Morreu de enfarto. O doutor disse, depois do velório, que ele passou muita raiva. Eu? Até levei flor, zeloso.

sábado, 7 de novembro de 2009

De quatro

De quatro, com o fiofó empinado à Lua, Amélia procurava no carpete felpudo o número 69 do jogo de tômbola. Não tinha a menor vaidade. Viciara-se no bingo assim que perdeu Humberto, numa carreira. Foram menos de seis meses de convívio tumultuado. Choviam-lhe tapas por motivos fúteis, em todas as partes, caíssem onde caíssem. Olho, pescoço ou ouvidos. Nas costas, na nuca ou na boca. E conformava-se. Descansava a bochecha na mão, toda pesarosa, com a cabeça torcida alternadamente para a direita e a esquerda. Briga e descompostura o tempo todo. Casara-se já idosa, nutrindo um amor cego aos interesses escusos e etílicos do rapagão.
Foi com uma risada lateral, de boca ensangüentada, que decidiu dar um basta àquela vida submissa, depois de cuspir, naquele mesmo carpete, o pedaço gordo do pênis de Humberto. “Foi sem querer, doutor”, explicou ao delegado xereta, mostrando o galo do soco que levara na cabeça, “justamente naquela hora”.

sexta-feira, 6 de novembro de 2009

Famoso na vila

Famoso na vila, Olegário Mariano era conhecido como Dr. Sorriso, graças a sua profissão de protético. Naquele pequeno lugar, no qual não havia um único dentista, era ele quem se responsabilizava pelos 32 dentes postiços de cada um dos moradores. Eram raros, entre os mais velhos, aqueles que dispensavam as próteses, de várias tonalidades e tamanhos, todas com a marca indubitável do doutor. É que nos caninos inferiores esquerdos, portanto, à direita de quem observava o usuário, Olegário gravava um quase imperceptível “S”, de Sorriso, como se assinasse no canto de uma tela de sua obra de arte.
Para o desespero dos homens, surgiu na vila um senhor da cidade grande. Boa presença, conversa fácil e trajes sempre elegantes. As velhinhas logo passaram a disputá-lo, nos bailes domingueiros, para a desilusão dos antigos moradores, desprezados pelas parceiras. Eles foram salvos, no entanto, no último domingo, quando Olegário assumiu o microfone da festa, e chamou o tal homem ao palco, sob os aplausos das senhoras e ranhetice dos senhores. Na entrevista, pediu ao homem que risse. Sem graça, ele riu. E, apalpando seu lábio inferior, Olegário rapidamente sentenciou, ao olhar-lhe os dentes: “não é um autêntico Sorriso!”.

quinta-feira, 5 de novembro de 2009

Pé de jacarandá

Pé de jacarandá não dava conta da serra elétrica de Chapinha. Para a verdade, planta nenhuma dava. Seu frisson destruidor consumiria florestas, embora morasse num condomínio fechado, rodeado de ipês amarelos. Começou nas honradas roseiras de Hortência, vizinha virgem, lá, de seus trinta anos e uma dúzia de plantas. Não sobrou pétala sobre pétala. Denúncia e reuniões de condôminos não silenciaram o motor de Chapinha. Tinha um quê de inocência, mesmo quando ensurdecia o mundo com o barulho de sua estupidez. O toque biográfico de seu pai, muito atencioso com os fregueses do açougue, o impulsionavam a pedir licença, antes de passar a serra. Foi o que fez com os antúrios de Claudomiro: coleção premiada na primeira Feianta – Feira de Antúrios de Altamira. Avisou que começaria pelos vermelhos, e os executou. Passaria aos amarelos, e záz. Não perdoaria os brancos, e vruuuum. Excitado, ainda beijava sensual o motor da máquina, quando a vizinhança ouviu o estampido. Claudomiro acabava se suicidar, com um tiro certeiro no tórax. Chapinha capengou até a portaria, mas foi preso, com a serra em punho, pingando gotas verdes. Crime culposo, sentenciou às cegas o escrivão palpiteiro.

quarta-feira, 4 de novembro de 2009

Simpático por conta

Simpático por conta da culpa alheia era o que era. Pércio praticava a política sórdida de ser bem-quisto, à custa de promover nos outros um estranho sentimento de exclusão a sua pessoa. Era assim, ó. Quando Tales e Elmo conversavam sobre futebol, o primeiro dizia ao segundo que se o seu time empatasse com o time tal, e marcasse apenas um gol no jogo seguinte, estaria classificado. Elmo dizia que não. Era preciso duas vitórias, pela contagem mínima de um gol de diferença. Pércio entrava na conversa e murmurava: “não estou entendendo nada do que vocês estão falando!”. Pronto, ambos os interlocutores sentiam pena dele, por tê-lo deixado à margem da conversa. E ele se tornava simpático aos dois.
Promoveu tal expediente a vida toda, nas situações e assuntos todos, até intencionar-se em namorar Belinha. Ficou falante e participativo. Opinativo e eloqüente. Fecundo e expressivo. Todos, então, o olharam fixo nos olhos, e nenhum dos presentes perdeu a oportunidade de dizer-lhe com segurança: - Mas você é um puta de um chato, eim Pércio!

terça-feira, 3 de novembro de 2009

Um céu

“Um céu de sargento”, gritou o brigadeiro, que se recusava a voar. Dentro da névoa, os pingos esparsos pareciam ter personalidade. Marcavam os óculos do brigadeiro, como se quisessem impedi-lo de olhar para os lados. As árvores tortas entre a densa nuvem branca riscavam a claridade, quando surgiu a luz, lá de longe. Primeira um pequeno ponto, depois um enorme facho, que se aproximava, colorindo o chão. “O Sol”, gritou o brigadeiro, pensando em voar.
Tempo de janeiro, naquela manhã amarela. Um frio extemporâneo, daquele lado de cima da serra. Um pardal pousou na asa do pequeno avião, ambos silenciosos, anunciando nadas à vista. Terra marrom, avião azul e branco, hélice metálica. Já se via a cor das coisas, varridas as nuvens pelo vento leste. O ajudante acendeu o charuto do brigadeiro. Acionou o motor da aeronave, com a força de se ir à Lua. Da montanha paciente, escapava o som do taxear. De repente, o objeto brilhante sobe às alturas. O brigadeiro voou, num céu todinho seu.

segunda-feira, 2 de novembro de 2009

Outrora o trem

Outrora o trem atravessava essas pastagens. Vinha de lá e passava bem aqui. Era por essa janela que o dia entrava, branco e exortado, depois de uma escuridão de luas pelas frestas. Lembro do beiço do Brioso, um pangaré sabido que também se achegava por aqui, e metia o focinhão no batente. Queria balas de caramelo. De dó eu dava. Você nem tinha nascido.
Estirado aí, entregando a vida, você agora, de novo, não vê nada disso. Que coisa é você, sobrinho, tão cadaverzinho! Nem viu o antigamente, nem saberá do que vem. Falei pra não rodear o pé de ora-pro-nobis, o espinho poderia infeccionar. E infeccionou bem em você. Parecia um aviso. Sempre mirrado, sempre errado. Você parecia mesmo que não iria vingar. Seu jeito de sem vontade, talvez. Ali na frente, onde você caiu, vou mandar arrancar aquela moita da planta. Fazer um jardim de rosas. Rosa tem espinho menor, e eu nunca ouvi falar de alguém que tenha morrido espetado por roseira. Dói, também. Dói muito. Mas acho que a gente se acostuma com a dor. Não sei. Você aí também nunca vai saber. Mas que dói, dói.



domingo, 1 de novembro de 2009

Amava a infelicidade

Amava a infelicidade que sofria, como um poeta romântico amava aquela que imaginava. Orlando era um Álvares de Azevedo sem versos ou tumbas, mas acima de tudo um sujeito que cultivava uma falsa vontade apostólica, crédula ou sabe-se lá, se supersticiosa, de viver da moral. Um moralista que apontava os males da sociedade ou individuais, na intenção pretensiosa de consertar alguma coisa. Como fazia sua própria moral, só aceitava sua própria verdade. E tinha conselhos ou determinações para tudo.
Jositéia era a bagaça. Vida torta e amor arfante. Viu em Orlando um eixo, no qual tratou de parafusar suas rodas. Modulou a fala aos gritos, estendeu a saia, apagou o rímel e pintou de rosa-claro as unhas vermelhas. Ouvia e acatava as advertências do parceiro insólito. Não isso, não aquilo. Mas na festa do casamento de Jerônimo, sobrinho dele, não resistiu à recomendada moderação no vinho. Às tantas, trocou a valsa pelo funk e ofereceu a Orlando, sacudindo as cadeiras, o que ele mais gostava... a infelicidade.