domingo, 31 de janeiro de 2010

Com clara dificuldade

Com clara dificuldade, instalou-se entre as ruínas obscuras de sua infância. Extirpou os males, menos aquele puxão de orelha que recebeu da mãe, na ocasião em que cobrou do tio moribundo as famigeradas paçocas de amendoim que ele lhe havia prometido, quando saudável. Sentia o comichão que se sente no rastro antigo das passagens ótico-acústicas da vida. Canções e paisagens ou, às vezes, frases e cenas marcantes.
Passou a ganhar todas as batalhas perdidas, a conquistar amores unilaterais, a destronizar poderosos, a ter fama, muito dinheiro e uma completude física inabalável.
Pediu então ao enfermeiro que lhe aplicasse outra dose de morfina, porque pretendia partir sem dor.

sábado, 30 de janeiro de 2010

No fundo não

No fundo não disse nada, apenas sussurrou uma expressão lisonjeira. Seus lábios erguiam e baixavam como dois agressores da recente cirurgia plástica. Exercitava sua excitação de colocar deuses a serviço do mal, quando confidenciou a Mandinho que fora violada pelo patrão, o velho Dilermando, pai do rapaz.
Com a satisfação de ter capturado um gigante numa ratoeira, choramingou penúrias nasaladas. Snifs e óhs. Tão desonesta quanto a fantasia de que se pode colocar o amor profundo numa fórmula matemática, disse que pelo motivo exposto não tinha mais clima para prosseguir o noivado, entre chuva de lágrimas e um tornado de balançares de cabelos.
Compadecido, Mandinho sentiu-se um punhado de sal na ambrosia da vida. Jurou casar-se com ela, dar-lhe tudo disfarçadamente, e só depois mandar matar o pai milionário e estuprador. Ela fingiu não encontrar palavras de felicidade, então não disse nada. Fez que sim, limpando as lágrimas.

sexta-feira, 29 de janeiro de 2010

Era uma poça

Era uma poça de palavrões, cuja saliva transbordava em cada frase. Aos trancos e afetos tratava dos outros e de seus cachorros, respectivamente. Morador isolado de prédio quase vazio, onde até a sombra era sólida, pouca conta Hermilitão dava aos insetos rápidos, às baratas breves ou sugestivos peçonhentos, seu mal era a gente.
Com ossos e acerolas grudados aos bolsos da calça, tratava os totós a pão-de-ló, que dele se encantavam pelos gestos toscos, carinhos nos pelos e banalidades no tom dos assobios.
Quando adoeceu cheio de dedos destilou alegria ao ver os cães aflitos. Ao ouvir os latidos chamativos na porta do hospital e a inquietação dos médicos e enfermeiras com aquela trupe canina que tomou conta da área. Acidente benigno, riu, pensando no transtorno que seus amigos causavam aos inimigos. Morreria em Marte ou no Éden, mas não haveria filho da puta nenhum capaz de silenciar a fidelidade canina.

quinta-feira, 28 de janeiro de 2010

Fluir finito

Fluir finito. É pena a contra-cena petrificada na memória não durar pra sempre. Duília se sentiria melhor se o rosto de Augusto não desgrudasse mais. Nostálgica, a Duília. Deu um gritinho, por descuido. Assim, gay nível 7. Então pensou no destino que Augusto teria tomado para transforma-lhe em ainda mais distante.
Passou! Despejou cuidadosamente os quatro vidrinhos do mata-insetos nos três últimos receptáculos da forma de gelo, deu duas mexidinhas e a situou única no congelador. Pulou o prelúdio, e ouviu Dell’ invicto trascorsa è già l’ora?, primeiro ato de La Traviata. Tocava Ah Violetta!, no último ato, mas antes que a personagem se expirasse da vida, apanhou os três cubos endurecidos. Pousou-os sobre os dois dedos de Campari no copo branco, e rodou-os com o indicador.
Levava já o tal copo à boca quando o alarme disparou. Parou o copo no ar sem provar do destino. Baixou-o à mesa e levantou-se. Percorria a janela do quarto quando avistou um rato roendo os sensores. O causador do alerta. O determinante. Sujo, safado, tosco, o oposto ao rosto de Augusto.

quarta-feira, 27 de janeiro de 2010

Petulantemente fino

Petulantemente fino, Odécio achou que tinha algum tipo de doença. Fez todos os exames com sufixo “grama”, consultou Mãe Tianinha, todos os esoterismos terminados em “logia”, runas, anjos e búzios. Nada! O diabo do perturbado era a saúde em pessoa. Só padecia, mesmo de tédio, disse-lhe o psiquiatra, último profissional consultado na sua escala doentia.
Diagnosticado, enfim, procurou dar sentido à vida de proprietário. Sim, essa era sua profissão. Herdara mais de cinqüenta imóveis do finado pai, ex-deputado, e a cada seis ou doze meses sofria a obrigação de ter que assinar um contrato de locação, que lhe era encaminhado diretamente pelo dono da imobiliária, responsável pela captação e depósito em conta de toda a sua renda. Estacionou o carrão no restaurante francês onde frequentemente jantava, e comunicou ao maître que passaria a ser garçom. Imediatamente atendido, vestiu a camisa linho branco, gravata borboleta e calça de cetim preto. Foi perfeito, até a terceira mesa. Anotar um pedido entediara-lhe ainda mais profundamente. Sentou-se com o freguês surpreso, puxou assunto banal, mas logo deixou claro: - faço questão de pagar a conta!

terça-feira, 26 de janeiro de 2010

Naquela manhã

Naquela manhã, Amanda pediu às crianças que recortassem somente o papel marchê vermelho. Com rigor atento, estipulou obstinações para os encaixes, recortes a recortes, medidos à agudeza dos milímetros. Flores seriam feitas.
Naquela madrugada antecedente, Odilon chegara outra vez cheirando a álcool. Heróico cantor de seus próprios feitos. E havia marcas de batom e sexo, e bradava insidiosos palavrões desconexos, e bateu com força na alma de Amanda que, com destreza artesã, deu-lhe um basta com a tesoura no pescoço. Sangue e silêncio.
Naquele final de manhã, a pequena sala de aula transformara-se num imenso jardim de gardênias vermelhas. Cada criança, orgulhosa, mostrava sua criação ingênua e viva. Dona Adelaide, a diretora, estranhou um pouco aquela primavera rubra, mas achou tudo muito lindo, e cumprimentou Amanda, a dedicada professora de artes.

segunda-feira, 25 de janeiro de 2010

Envolveu cinco

Envolveu cinco fatias de mortadela com as duas partes do pão francês e mordeu manso, almoço, mas seria também jantar, embora ele não soubesse. Daquele bar em diante não haveria mais paragem até a margem do rio, aonde só chegaria ao amanhecer do outro dia, no ritmo lento dos passos cansados. Era promessa visitar a Virgem. Orar a ela em agradecimento às próprias pernas, que ainda andavam depois do acidente. Na data, prometera até ira à Lua, se permanecesse na Terra.
A capela era capenga, mas nitidamente santa. Sem portas há muito, talvez séculos, convidava à entrada. Ele se esqueceu da fome presente e da família ausente para sempre. Depois, daquele acidente nem se lembrou, encantado com a imagem barroca da Virgem. Fosse são e não a veria. Haveria ali algum mistério, além da luz que habitava o banco tosco, vinda do alto, pela falha das telhas. Ele se sentou e foi como se ouvisse: “te esperei há tempos!”.

domingo, 24 de janeiro de 2010

Quem dormia

Quem dormia ao lado não era apenas uma mulher estranha, mas um hábito, tantas eram as estranhas. Honorinho acordou com um zumbido que saía sabe-se lá de qual orifício. E de quem? Tinha similaridade ao sopro, que quase sempre cometia no esgar do gozo. Expectante, correu os olhos sobre o corpo daquela. Aquela quem? Não lhe ocorrera o nome. Mas não era. O zumbido vinha de si próprio. Imaginação do ouvido? Quem sabe? Deduziu sem saber nada da coisa que não passava. Tanto se mexeu que agitou a moça, nua de preguiça. Enormes olhos castanhos se abriram inchados: - Que foi, benzinho? Tá sonhando comigo? Honorinho se desconcertou com aquela fala em duo ao zumbido. Coçou a cabeça para articular uma resposta sonolenta, que não passou de um quer uma maçã? A dona disse não, dorme. Mas como dormir com aquilo? Ele concluiu, e levantou-se trôpego. Vazavam asas de seus pensamentos, quando optou pela ducha. Água despertadora, aquele frio abusivo, aquele novo estado gratuidade úmida lhe tiraram de estalo da inércia. Era um hábito, nem tão anormal, como de colecionar mulheres, mas o zumbido só cessou na noite seguinte, quando apresentou o quarto à Beatriz, sim, essa se chamava Beatriz: muito prazer!

sábado, 23 de janeiro de 2010

Prognóstico: lucro

Prognóstico: lucro fácil. Risco: mediano. Duração: quatro anos. E Arlindo, metódico como formiga em fila indiana, decidiu pelo sim. Seria ele o único candidato do bairro à câmara municipal de Monte das Dores. Havia pertinência no salto da marginalidade à autoridade. Pego aos dez anos por furto de galinhas, fora repreendido. Aos 14, por automóveis, chegou a ficar recluso na maior instituição para menores da cidade. Aos 18, matou Zenilson. Absolvido por falta de provas. Gostou. Matou Tadeu, aos 20. Legítima defesa, sentenciou o juiz, seu primo-irmão, depois de uma apuração mal feita pelo delegado Rosa, compadre de seu pai.
Metódico, o Arlindo, sempre observou com precisão o espaço de dois anos entre um crime e outro. Doze anos e seis mortes depois foi que aceitou tomar juízo, a pedido dos parentes, e entrar para a vida pública. Agora, sim, assumirá sua cadeira na câmara, depois de dois anos como primeiro suplente. Afinal, ninguém nunca mais soube por onde andará o titular eleito, que faltou com espírito público. Sumiu, o folgado!

sexta-feira, 22 de janeiro de 2010

Escondida pela

Escondida pelas plásticas e cosméticos, faltava-lhe uniformidade. Era enorme, tia Merci. Sua altura não terminava no alto da testa. Havia o cabelo sempre a postos, como orelhas de cão em estado de alerta. Dada aos cantos, não necessariamente àqueles que se formam nas beiradas, dos quais também gostava – e contam que foi por isso que nunca se casou, mas ao bel-canto, tinha a voz em falsete, que às vezes recaía num vibrato áspero, como o das negras cantoras de blues. Apesar da exuberância na forma, era tímida no conteúdo. Custava a socializar-se nos ambientes, a fazer às vezes de cantora ou uma amizade.
Tão sozinha, maquiava sua reclusa. Avaliava-se tão intensamente, que uma pinta, uma tênue papada ou uma magra gordurinha eram motivos para nova cirurgia plástica. Morar na cidade distante foi seu mal inicial. Quando, enfim, voltou balzaquiana à pequena Santa Rosa do Monte Alto, de surpresa e vestido florido, foi galanteada pelo também arredio Coronel Mário, solteirão de cem alqueires. O homem só sossegou com a revelação triste que tia Merci teve que fazer-lhe: - “Mário, sou eu, Merci, sua irmã!”.

quinta-feira, 21 de janeiro de 2010

Invadiu a ONG

Invadiu a ONG, com o presidente nas pupilas. Aquele sujeito não tinha o direito de politicar contra o uso do leite. Com os mesmos cinco dedos que utilizava para as ordenhas, deu-lhe na cara um tapa estalado: - “Do meu leite você não tira leite não, seu safado!”. O ativista falou em azia, má digestão e alergia, os males do leite são. E tomou outro safanão. Falou em otites, rinofaringites e amidalites, antes de receber um dedo em riste, com a descarga cultural do doce de leite, do arroz-doce e da pamonha: - “Você come, lá, seu capim, na paz macrobiótica radical, mas não venha jogar areia no meu galão quentinho”.
Contam que Tiãozinho voltou pra roça uma fera. Atravessou atrevido as moitas de carrapicho e já puxou Iracema, a vaca holandesa “quase campeã”, para cima de si. Deitou no chão do curral, no rumo das tetas, e ordenhou um leitinho quente direto para sua boca: - “Deixe comigo, Iracema, essa ONG Leite Never não há de talhar a gostosura do seu leitinho”.

quarta-feira, 20 de janeiro de 2010

Logo tiraram

Logo tiraram cuidadosamente o espinho de ora pro nobis do mindinho de Zécarlito. Não era tão expressivo quanto as caretas do menino endiabrado, que nem vestia sapato pra não ter que engraxá-lo. As travessuras justas cabiam todas nos seus gestos. Pedras nos gatos, arapuca pra curiós, arremedo do padre, estilingada no pardal e zombaria da dona Rosa, benzedeira. Um moleque, enfim, do suco gástrico à cabeleira desleixada.
Mas aquela extração do superficial da pele aprofundara-lhe, como se mágica, o enlevo do espírito. Zécarlito virou outro. Tomou susto e juízo. Deu pra rezar se visse santo, poupar passarinhos da mira, ajoelhar pra dona Rosa e até benção de padre passou a agarrar. Tias, pais e lesados pelas suas artes passaram a falar em conversão, redenção ou milagre mesmo. Coisas da ora pro nobis, que estariam por trás da simples função de temperar o frango caipira. Cercaram a touça da planta e deram pra rezar perto das folhas, mas sem tocar nos espinhos. Nem mais bola deram pra Zécarlinhos, que com outros nove dedos ilesos de espinhos, além do mindinho sarado, voltou à molecagem. Só contaram depois que, se dona Rosa não lhe tivesse furado com espinhos de ora pro nobis todos os dez dedinhos, jamais teria ido para o seminário, estudar pra virar padre!

terça-feira, 19 de janeiro de 2010

Gorjeou o azulão

Gorjeou o azulão, acendeu o Sol, pingou o orvalho lá no último galho do pinheiro do brejo. Era sem dúvida o dia, que começava na história. Com pressa e moreno, arreio e voz alta, sem antever ou pouco se lixando para sua participação, o personagem montou no cavalo baio, amulatado. Houve laço, queda e sangue pisado no chão poeirento daquela data, gravada no enredo por uma morte acidental, sobre a qual pairavam dúvidas quanto à acidentalidade. Seria o clímax, se não houvesse desfecho. E ele veio... costurando palavras que lhe pudessem dar significado. Turco, o peão audacioso, o mandão mesmo sem ordens, o másculo essencial, encontrara Arlindo antes do posfácio. Não havia perfil psicológico dos dois, então foi criado. E eles se odiavam... Brigas lá por terra, por poder, pelo amor de Joana, porque não se gostavam e pronto. Só que Arlindo cruzou com Turco em cavalos rentes na estrada estreita. Teria lhe dado um soco, um safanão ou topada de má fé. A narrativa é falha nesse instante de vida ou morte.

segunda-feira, 18 de janeiro de 2010

Devassa a raça

Devassa a raça dessa loirinha. Sibila na desgraça alheia, sempre. Deixa sombras sólidas de pecados inquietos, pelos mal projetados amores. Plurais amores para ela, únicos, aos então parceiros. Galhoufo foi o último (se é que se pode pensar em ordem classificatória para os amadores de Vanessa, a loira). Só de salto alto, colar e sem as roupas, levou Galhoufo ao êxtase. Dançou com seu erotismo imanente, arrebitou-se em poses e humilhou o kama sutra, numa longa sessão de amor. Viúva-negra no modo e veneno, anunciou a Galhoufo o fim, e o coitado enlouqueceu.
Chicleteando molhados passos arrastados, ficou à chuva esperando uma volta. Enfeiou pelos maus tratos e trocou toda a vida pelo vão. Só que Vanessa era o vão, e desse hiato não sairia caroço. A viu chegar e sair da casa. Homens e mulheres. Intrépido cupido às avessas, torcia pelos finais fatais. E tanto êxito obteve em seu intento, que se sentiu um vitorioso, o Galhoufo. Como se não fosse Vanessa, mas ele próprio, o senhor dos amores por ela desfeitos. Vanessa era assim, deixava os homens felizes.

domingo, 17 de janeiro de 2010

Asa de borboleta

Asa de borboleta. O aéreo apelido de Lara parecia extraído de um casulo de maldades, só porque ela escamava a pele manchada de vermelho, com tons verde-bilhar. Um abismo de falsidade separava as falas dos seus. Na sua presença, era Laurinha, Laura bela, lindinha. Longe é que à alavam, com as tais asas... de borboleta.
Voaria vida afora, desatenta pela ignorância do apelido, não fosse Glaucinha, a sobrinha inevitável que vivia rodeando a casa, em busca dos doces que a tia fazia tão bem. Saúva-mirim. Nesse rodeio açucarado, destruía bibelôs e brincos, emporcalhava tapetes e talheres, e falava, como falava! Lara bem que estranhou quando Glaucinha pediu melosa: - Tia Asa me dá outro brigadeiro? Asa? Lara estranhou enrubecida, esverdeada e pensativa. Do quê você me chamou, Glaucinha? Tia Asa, Tia Asa, Asa de borboleta, uai! A retrospectiva mental dos parentes fez Lara voltar à crisálida. Então é isso! Concluiu como não queria. Esticou as antenas lepidópteras, empastou-se com os corriqueiros hidratantes, voou segura e para sempre. Não faria mais a doce corte aos bufões amargos.

sábado, 16 de janeiro de 2010

Outra vez

Outra vez o Maquidonalde vem com essa história de voar. Leu uns livros, lá, de homem-pássaro, aviador-maluco, santo do monte, sei lá. Essas coisas de super-homem. Coitado, eu tenho dó. A avó dele já gastou todo o cofrinho das costuras sob encomenda para comprar tiras daquela madeira leve. Aquela... que os homens adultos com jeito de moleques costumam usar para montar aviõezinhos. O torto do Maquidonalde disse pra ela que com aquilo, sim, era capaz de montar umas asas firmes, o louco. O dinheiro não deu pra cola, ele me disse, mas achou que a linha de pescar seguraria as asas e ele, ambos no ar. Eu fui o soltador de pipa. A pipa, é lógico, era ele. Falei, falei, falei que aquilo não iria dar certo. Mas você conhece o Maquidolade? É indigesto como aqueles sanduíches de pepino em conserva. Amarramos a coisa no pára-choque traseiro do golzão azul do tio Juca, e demos linha: três metros, quatro metros, cinco metros, e não é que o Maquidonalde saiu do chão. Voou bem uns dez metros, com os braços-de-asas abertos, até enroscar no fio da eletricidade. Caiu cheio de coisas e choques. Torrou a carne, mas não morreu... frangão assado!

sexta-feira, 15 de janeiro de 2010

Trombeta aberta

Trombeta aberta. Perdera a inocência infantil em aceitar um presente, mas jamais a vontade de tê-lo. Janete essa hora já mora mais distante, por conta da displicência de Jeniso em negar-lhe a aliança de noivado. Ofereceu-se noiva, caso ele quisesse usufruir-lhe os murmúrios do amor, mas Jeniso a achou careta, agora chora. Coisas da moça criada atemporal, no sertão da tia Orizimba.
Logo o achou curioso o moço da cidade, mas também indiscreto, como se houvesse algum curioso discreto. E estavam nos últimos dias das férias dele quando começou a paixão. Moderada nos gestos, impossível nas ações. Exceto se... Mas você sabe, ele não quis noivar. Cheio de falas. Chamava Janete de sua Uma Thurman, e ela até seria se Uma Thurman tivesse sido educada amassando pão, tratando das galinhas e moendo farinha. Foi o mote. Do nome ela já não gostou: não era umazinha qualquer, era Janete! E o moço até seria bom, se ao invés de viver rindo das coisas sérias e falando esquisitices comprasse uma aliança.

quinta-feira, 14 de janeiro de 2010

Nem minha mãe

Nem minha mãe notou eu chegar. Ainda bem, os policias falaram que ela estava mentindo, mas não. Não tinha nem me visto sair, e disse que eu dormi a noite toda, sem sair do quartinho. Era convicção de mãe, mas a polícia às vezes é insensível. De qualquer maneira a dúvida dos caras pesou a meu favor. Depois, Darlene merecia morrer mesmo. Não precisava ter passado por tudo aquilo, coisa feia e nojenta, mas morrer, isso merecia. Fico pensando naquela cara, toda linda e falsa, dizendo-me as coisas bonitas e excitantes que dizia quando a gente conseguia ficar sozinhos. Eu sentia espanto e tesão ao mesmo tempo, mas era bom. Depois, apareceu aquele cara de demônio que escapou do presídio. Darlene deu pra sair com ele. Dizia que iam fumar um baseado, nada sério. Dizia que tomavam, às vezes, uma ou duas cervejinhas, tudo bem. Mas fui ficando com raiva. Ela nunca me disse, mas eu bem sabia que ela era a minha namorada.Quando a polícia me empurrou da cama, com gritos e pontapés, assustei. Fiquei atemorizado com aquela truculência. Era muita brutalidade em cima de quem, como disse minha mãe, nem tinha saído do quartinho.

quarta-feira, 13 de janeiro de 2010

Cândido, o professor

Cândido, o professor sentava-se labiríntico em meio à mata que entornava o campus. Evitava encontrar-se com pessoas, para buscar as palavras nas folhas em formato de coração, com dois tons de verde: o mais claro, nas pontas. Não era pequenez ou estreiteza contra humanos, era magnitude.
O calor das moças letradas receberia a combustão das idéias, trava-línguas dos desejos no feitio de um poema caprichoso e denso. Cândido, o professor imacularia razões impuras, transfiguraria essências reticentes em compreensões evidentes. Era assim. O seu espesso pensamento revelaria a fineza de um adjetivo carinhoso. A gravidade de seu conhecimento, a ponderação de um aprendizado sólido e simples.
Encerrada a aula do dia, guardaria a realização na pasta de documentos que carregava dependurada à mão esquerda. Logo a abriria às folhas e suas pontas verde-claras, para nova troca de gentilezas com Deus.

terça-feira, 12 de janeiro de 2010

Tenho certeza

Tenho certeza! Você já ouviu meu nome: Carlos Angelino Paulo de Oliveira. E então? Não se lembra? Fiquei famoso em 2002, toda a cidade comentou. Não precisa disfarçar, não. Eu não acho mais nada ruim nessa vida. Pode falar... lembra de mim? Carlos Angelino Paulo de Oliveira. Fui o assunto do ano! Talvez você esteja esquecido porque na televisão só disseram “o marido”, e jornais, todos eles, que poderiam ter escrito o meu nome por extenso, com todas as letras, colocaram só “o mecânico C.A.P.O.”. Sacanagem. Mas se você quer saber, não me envergonho não. Eu não acho mais nada humilhante nessa vida. Não vou dizer que a Raysa estava certa, né? Nenhuma mulher, por mais maltratada que seja, por mais corna, deveria fazer isso. Mesmo que o marido mereça. E você não sabe... é, não deve saber, mas eles lá no hospital conseguiram reimplantar. Não funciona pra nada, mas está comigo. É meu, uai. Mas olha, dói até pra fazer xixi.

segunda-feira, 11 de janeiro de 2010

Coragem e ignorância

Coragem e ignorância andam bem juntinhas. Quando Dario propôs a Ernesto entrarem no cemitério às duas da manhã, para saber quem mereceria o amor Italvina, estava explícita a mórbida insensatez. Munido de um facão velho e um litro de conhaque, Dario entrou primeiro, espantando os temores às talagadas. Deu a volta completa e convocou Ernesto. O mulato arregalou os olhos. Aquelas manchas negras no rosto do rival não poderiam ser coisas desse mundo. O trato era não abrirem a boca durante a disputa, e ele foi. Pisou de mansinho do portão pra dentro e deu sete passos. Voltou correndo, apavorado, pois disse ter visto uma alma penada torcendo para que perdesse Italvina, a duras penas. Dario riu. Deu com mão na nuca do adversário e sapecou-lhe de ironias. Já não tinha as manchas no rosto, para a surpresa do amigo, e quando viu que Ernesto o observava por isso, foi logo explicando que o amor de Italvina não lhe seria tão ardente, se não lhe alimentasse as chamas um pedaço de carvão no bolso.

domingo, 10 de janeiro de 2010

Aflição beethoveniana

Aflição beethoveniana era o que Magalena nutria pelo sorriso. Sempre nervoso, repuxava o lábio inferior para frente, como se a boca tivesse uma sacada. Abafado na garganta, tinha o eco internetês dos kkkkkk, que os interlocutores colocam quando querem que o leitor sorria também. De Magalena acabavam rindo mesmo ou a odiando de vez. Aquilo lá era jeito de se rir?
Confidentemente, contava entre os dentes que rir foi pecado em sua casa de infância, onde a comparavam às hienas, porque Deus era sério no seu vasto semblante. Por conta da repressão, se traumatizara nos troncos e membros, gestos e bocas. Meio assim, meio assaz, Magalena cresceu crente. Dúvida e ceticismo era coisa de bem humorados.
Foi Junião, misto de lobo mau e espelho mágico, quem lhe abriu as portas do paraíso. Ao final de uma piada infame, deu de tapa nas costas da coitada. Como se um aperto histórico lhe tivesse sido lançado do esôfago à boca, a pobre destravou. E gargalhou de fazer pena.

sábado, 9 de janeiro de 2010

Numerologia é uma

Numerologia é uma merda. Às três da madrugada, recolheu os seis pedaços da mãe esquartejada pela amante do pai. Tinha nove anos. Com o choque, emudeceu até os doze. Passou então a gaguejar, o que não impediu de cometer o primeiro dos quinze assassinatos, que totalizaria até aquele dia decisivo em sua vida. Preso com dezoito completos, foi vinte e uma vezes massacrado por insubordinação. Zé da Cela 24, como ficou conhecido, só conseguiu sair da cana nove anos depois, no dia em que completou vinte e sete.
Por orientação da psicóloga da cadeia, procurou o apartamento número 30, da Rua 33, onde vivia há trinta e seis anos a Mãe Betinha III, filha de Iansã e famosa numeróloga na cidade. Franca e objetiva, a mulher extraiu dos búzios o veredicto para a vida do rapaz: “cuidado com os números múltiplos de três”. Faltava trinta segundos para às 15 horas. Mal deu tempo dele dizer que sim, entendera o recado, e veio o infarto...

sexta-feira, 8 de janeiro de 2010

Era um Davi

Era um Davi, meio Golias. Pequenino e troncudo mantinha todas as características da espécie: uma enorme motocicleta, com suas muitas cilindradas, e Priscila, uma mulher com poucos neurônios, quinze centímetros mais alta do que ele. Disfarçava a encabulação dessa pequenez usado sapatos apropriados, com plataformas mais altas, enquanto obrigava a mulher a vestir calçado baixo. Ainda assim, não tirava a diferença. Mas a invocação se deu num dos muitos churrascos que fazia em sua casa, para reunir os amigos, habitualmente mais altos. Notou que Telmo, depois de muito álcool, deu baixa na vergonha, e lançou olhadelas à Priscila. Como provavelmente não alcançasse as tamancas para subir, esperou a oportunidade ao rés do chão. Quando Telmo sentou-se para tocar outra moda melosa no violão que trouxera, olhar voltado à mulher do baixinho, percebeu que uma enorme nuvem de baixezas forma-se atrás de si. Mal dedilhou as cordas em dó menor, sentiu a maior dor na nuca que o houvera acometido em sua média existência. Era uma cabeçada do pequeno homem, em momento de grande ciúme.

quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

Tinha a senha

Tinha a senha das auroras. Se adiava um pouco para chegar em casa era para não atravessar, insolente, o canto dos galos. Cocoricava simbolicamente para a paisagem que se enamorava à luz, apontando os desenhos das notas de uma canção do amanhecer. Poderia, sim, ser o efeito do álcool, tão presente quanto os matizes matinais, mas a sensação era de tão antigamente, e ele, tão nostálgico, que esqueceria as contas ou o dia do mês, mas jamais a letra de uma seresta.
Acusado de vagabundo, alcoólico, viciado, leviano, erradio ou ocioso, ouvia calado. Sabia-se um equilibrista capaz de não cair na sordidez alheia, na gesticulação do mundo ou na mágoa quase sempre infundada dos prudentes. Quando lhe insultavam, esperava anoitecer. Captava uma primeira dose em pleno vôo. Então se punha a cantarolar com os seus, a desvendar Américas, trocadilhar verdades, exorcizar enfados. Logo viria a aurora, lenta e reveladora.

quarta-feira, 6 de janeiro de 2010

Pouco olhava

Pouco olhava a sua volta. Fosse atento e Alceu não se surpreenderia com a arte abstrata ou surrealista, ambas ali. A mãe nenhum dente tinha, mas falava compulsivamente, como se os tivesse engolido todos. O pai, manco da esquerda desde o atropelamento na ferrovia, era dado à cachaça. Dedilhava a viola sempre que a mulher se punha a tagarelar. Quis Alceu ser artista, mas nem precisava disso. Nasceu no cenário propício. Imitava a natureza essencial, bom naïf. Vez por outra tomava cascudos maternos e paternos: “que mania de pintar os outros mais feios do que são”. Então se escondia. Comprava a tela, com a balela das migalhas que recebia como guardador de carros no bingo, e dá-lhe tintas puras. No fundo, coloria a vida, sem se saber cinza.
Foi que o “descobriram” na assistência social. Foi que o levaram às galerias ricas, para mostrar a todos como pobre faz. Foi que se remediou. Foi que foi. Virou artista à vista dos tantos. Seu ego cego só não suportava as exposições coletivas. Ia, via, mas desviava a visão escorregadia. Abstracionismo é mesmo coisa de doido, concluía.

terça-feira, 5 de janeiro de 2010

Apropriado era

Apropriado era. Reunia todas as condições para dar certo. Escute bem: tinha um motor, refeito e com garantias. Nas laterais, sim, havia pequenos amassados, mas por aquele preço! Os pneus, recauchutados em empresa idônea, mal davam sinal de ressecados. Pneulama nova! Contou-me o vendedor que aquele risco no pára-brisa não era um trinco. Era, digamos, um começo de fenda, que somente anos mais tarde haveria de me solicitar uma troca.
Não importei com as pequenas marcas de brasas de cigarro nos bancos. Também fumo, e sei que isso acontece, o que não desqualifica em nada o veículo na sua essência. É pura firula estética. Não, o vidro do carona não abria, mas isso só era ruim no calor, quando dava um pouco de falta de ar no passageiro. É bobagem, eu sei, mas o rádio parou sintonizado numa única emissora... crente. Agora o que eu não sabia mesmo era que o freio era colado. Que falhava de vez em quando. Isso foi sacanagem... da grossa! O senhor vê, se eu conseguisse parar não teria amassado tanto assim o seu carro zerinho, zerinho...

segunda-feira, 4 de janeiro de 2010

Chuva minuciosa

Chuva minuciosa. Ultraje aos óculos vencidos por distorções cinza-alvejadas. Delírio dos cristais confusos. Seria de homem aquele vulto? Álvaro não via se tirasse as lentes. Não via se com elas permanecesse. Chuva insidiosa. Enegrecidas formas se formam a cada pingo. Um grupo de gente em sua direção? Há falas e palavrões. Talvez, sim, pessoas. Seria um assalto molhado? Uma agressão deslavada? Álvaro vê a proximidade de gestos ligeiros. Vê fora os óculos turvos: lama e chão. Já não sabe se o que se passa são rios, mares ou águas paradas. Há muita chuva, já fantasiosa. Dores de dentro caem nas poças. Há socos entre aparente garoa. Chutes de barros pegajosos. Um gosto de calçada embebida...
Não fosse o trovão de fato, Álvaro veria seu fim. Mas estremeceu sonolento pela violência daquele sonho. Chovia manso, trovejava isoladamente.

domingo, 3 de janeiro de 2010

Cachorro instintivo

Cachorro instintivo farejou o beijo que a dona recebeu de Genilson. Nem nada parecia novo. Ela voltava devotada da viagem a trabalho, de brinco em riste e olhos em arco. Deixou o notebook na sala. Mala na entrada. Levou o cheiro à sacada para, quem sabe, enxergar no horizonte o cinza da traição. Flag circulou o rabo, afinou o focinho e a vislumbrou com a compaixão da posse. Uma centrifugação de ideias tomou as laterais das orelhas salientes, erguidas e encabuladas.
A dona afagou Flag com dois dedos displicentes. Fez que sim com a cabeça torta. Sibilou um carinho humanamente inaudível. E se pos rogada, a esperar a lambida. Flag obedeceu, confidente. Com uma cumplicidade medrosa de perder a dona para um Genilson cujo nome ele manteria oculto em sua discrição canina. O cão deitou-se aos pés da mulher, cheirando descuidado uma a uma suas unhas rosas. Haveria um misterioso “não me conte” entre os dois. Um saber possível apenas entre animais de espécies distintas.

sábado, 2 de janeiro de 2010

Depois ela quis

Depois ela quis um suco de fruta verdadeira. Daqueles, caros. Depois cismou com um vestido, lá, que viu na revista. Depois queria ir ao shopping center dos bacanas, comprar sei lá o quê, claro, com o meu 13º salário. Depois disse que estava enojada de andar na minha moto, por causa do vento, que desmanchava os seus cabelos. Depois falou que por ela eu poderia nem aparecer mais. Depois inventou umas dores: na cabeça, no braço, nas partes. Depois disparou rua abaixo, dizendo que, de pobre, bastava o pai dela. Depois veio com umas conversas bestas de um tal tio milionário, que oferecia mundos e fundos pra ela se mudar da cidade. Depois mostrou um colar, todo cheio de bolinhas brancas, que dizia ser de pérolas. Depois confessou, assim, aos gritos, como se eu fosse surdo, que o tio não pedia quase nada pra ela. Depois deu pra debochar de mim: que a minha calça era de otário, minha camisa era isso, minha cara aquilo. Depois não queria mais conversa comigo. Depois... bom, doutor, depois o senhor já sabe o que eu fiz!

sexta-feira, 1 de janeiro de 2010

Corpinho débil

Corpinho débil, parece que nunca vai sair da infância. Inspira certo temor. Como vai se deparar com o aquecimento das horas globais, a efusão das passionalidades do homem e tanta enchente e tufões e furacões e homens-bomba? Será gigantesco como conjunto de problemas que irá enfrentar?
Quando ele aparece peço a Deus e aos céus que o protejam do mau-olhado, da dor nas cadeiras, da espinhela caída, até da lufada de um ventinho inverso, capaz de propiciar-lhe um resfriado. Fui atendido em suas aparições anteriores. Devo estar em dia com Deus. O diabo é que sempre escapa uma farpa, logo extraída pelos céus. Vai ver o destino deles sempre foi o de crescer, eu é que me distraio e deixo que o perturbem.
O primeiro dia do ano é sempre uma incógnita acompanhada de uma esperança. No fundo, acho que todos sonhamos em encontrá-lo outras vezes...e só isso.