sábado, 31 de outubro de 2009

Violenta repulsa

Violenta repulsa ou susto. Eram as sensações que Hernandes causava, feio como a sombra de um sapo sobre o abajur. Ninguém entendia a imensa paixão que Barbelina, de beleza simbólica e estampada, nutria por ele. Um casal bela e fera, Quasimodo e Esmeralda, que olhos alheios miravam como se vissem dois fugitivos fortuitos da Catedral de Notre Dame.
Corcunda ele não era, nem precisava, para configurar-lhe o tosco. Bastavam-lhe os traços abjetos. Ela, ereta. Forma e expressões precisas, até o dia do acidente.
Aquele desfecho sobre a linda estampa; os pontos mal dados nos cortes profundos; o insucesso da cirurgia na perna esquerda; as marcas do fogo que lhe cobriram o corpo todo, transformaram Barbelina. Virou outra e horrível. Nele, ninguém reparou os efeitos da tragédia, apesar de ter recebido tratamento idêntico. Ninguém se conforma é com a ingratidão. Ao vê-la medonha e capenga, Hernandes deixou de retornar os seus telefonemas, não trocou mais e-mails e sempre que tinham que sair arrumava uma desculpa.

sexta-feira, 30 de outubro de 2009

Só chegar

Só chegar ao shopping não bastava. Lá, ela era tátil, visual não. Compulsiva a observadora. Perdulária a econômica. Melhor mais caro, meu caro, que barato basta o desprezo por aquilo que já compramos.
Era objetiva nos seus desejos dispersivos. Tanto se consumia da paixão pelos consumos, que mal teve tempo para amar Heitor. Heitor-off, ela o etiquetava. Como se o desconto de 10% de seu tempo de compras, para dedicar-se ao namorado, fosse uma liquidação desvantajosa.
Sob as leis do capitalismo afoito, não durou nem um mês esse romance promocional. Ela própria sentiu a aflita a vantagem do parceiro. Heitor comprou uma, e levou duas: além dela, Isadora, uma militante do partido verde, cujo único sonho era o de votar em Marina, para presidente.

quinta-feira, 29 de outubro de 2009

Sempre o duelo

Sempre o duelo. Já não era mais uma diferença na essência, era na vida, mesmo. Estudante de Direito e coveiro do cemitério municipal, vivia o dilema entre uma coisa e outra, mas atenuava o sofrimento “É, senhores jurados, o réu precisa pagar as contas!”, costumava ironizar. Até que o morto do dia, era um inocente. Fora assassinado friamente, confundido com um vendedor de enciclopédias, acusado de estupro das clientes. O quintoanista ouviu as dores da área criminal, expressadas num choro de mãe. Ação indenizatória, pensou, entre uma pazada de terra e outra. Carregava as coroas de flores, enquanto escrevia mentalmente a petição. Entrelaçava o caixão, com os argumentos de defesa na cabeça. Baixava a esquife, com o cálculo das somas indenizatórias todas ajustadas. Antes que a família deixasse o cemitério, correu ao banheiro. Retirou as roupas sujas e meteu-se na beca. Correu até a saída do campo santo e, com cuidado, abordou a mãe do enterrado: “precisamos conversar, senhora. É preciso pagarem pelo fizeram ao seu filho”. A pobre mulher olhou-o, desconfiada. “Olha aqui, seu coveiro, meu plano mutuário cobre velório e enterro. O senhor que vá procurar outros mortos”...

quarta-feira, 28 de outubro de 2009

Hô-ba-la-la-va canções

Hô-ba-la-la-va canções de João Gilberto. Tinha até um banquinho, mas era torpe a sua afinação à bossa ou vida. De fato, mal manobrava os botões de play dos toca-coisas. Instrumentos? Nem pensar. Por acreditar na jocosidade de Jobim para os versos de Desafinado, achava que o intuito daqueles que lhe pediam silêncio era o de causar-lhe apenas uma imensa dor.
E continuava: bim-bom. A diferença entre João ele era a de que João não queria ser ele, ironizavam os ouvintes, parodiando a piada. E, tanto fizeram, que ele fez cara de triste: cantar é tolice. Aprendeu a dançar. Fraco e frêmito Fred Astaire. Tornou-se um sem-Ginger, sem-teto e sem hora para parar. Sapateava alegre, divorciado da música. A internação não tardou. Contam que foi encaminhado ao hospício por uma sobrinha distante. Uma mal amada.

terça-feira, 27 de outubro de 2009

Com o tempo

Com o tempo a resignação prevaleceu. No decurso dos anos arrotou coca-cola, melecou-se de ketchup, espirrou mostarda, mas já se livrara da pecha de cachorro-quente. Era, assim, um cão domesticado e frio, capaz de passear com a dona, fazer xixi no lugar certo e abanar o rabo, quando ela o chamava à mesa, para o jantar na hora certa.
Aquelas “carnes abundantes e já um bocado crepusculares” de Maria Rita o haviam retirado do banquete exótico de cachorras e cadelas, que era como a mulher se referia às escapadelas de Agnaldo, para os amores fortuitos, nos primeiros anos de vida em comum. Mas, nem todo o direito de errar dá licença à burrice. Ao acordar afoito, naquela madrugada que antecedia o ano novo, Agnaldo destruiu os chinelos de Maria Rita, com os dentes afiados. Cagou no tapete da sala e mijou no pé da geladeira. Abriu o velho Drurys, que servia de enfeite para as visitas, na prateleira do barzinho, e entornou meia garrafa num gole só. Fumou todos os cigarros proibidos. Sentou sujo no sofá e gritou o nome da mulher, que acordou assustada. Rosnando para ela, jurou, mostrando os dentes, que jamais tomaria a próxima vacina.

segunda-feira, 26 de outubro de 2009

A mesma Lua

A mesma Lua se escancarou, cheia. Leonildo adicionou um punhado da erva-de-santa-maria no pano de prato, enrolou bem, e começou a socá-lo, torcendo-o lento para extrair o sumo verde. Aquilo era bom para tudo. Dava cor à palidez e saúde ao estômago, se tomado. Consertava ossos e nervos remontados, se emplastado. E seus tantos e esplêndidos bens até mal de amor curavam, se crédulos.
Mas a cara feia de Dadá, cheia dos furos de espinhas, estaria condenada a ser máscara, se a Lua não estivesse cheia. Outra não podia. Aquela, portanto, era a hora, a fase certa. O creme de santa-maria era ávido por milagres, e Leonildo o decifrava com sabedoria. Socava e escorria. Reservava. Aprendera tudo nas rezas, que ler não sabia. Na falta de pontuação das falas, pulou o descanso de algumas vírgulas, e esfregou logo a pasta verde no rosto da menina arteira. Crescentes modificações revelaram-se, nos minguantes buracos da cara de Dada, com nova fisionomia. Teria dado certinho, e nem teriam surgido aquelas inúmeras pintinhas verdes se, na última aplicação, a Lua estivesse cheia.

domingo, 25 de outubro de 2009

Meu apelido

Meu apelido, os anos, que tudo esquecem, esqueceram-se. Tártaros nos dentes substituíram o feitiço daquele beijo metálico, nas arcadas tortas. Nem as arcádias corrigiram os dentes ou os apelidos: para deixarem-me com um nome mais poético. Homero, o Labiríntico, quem sabe. Cada tarefa era um grito, com o tal nome, que era o meu apelido. Durou o que dura as férias escolares: anos, décadas. O tempo também se enganava ao som inimigo, do apelido. Alguns, anos depois, lembraram-se que “não pegou”. Não pegou porque não foi em vocês, pensei com horror. Salvadores entreteram os sádicos. Aqueles que decifravam meu ódio ao apelido. Salvadores me chamavam pelo nome. Foi a sorte, por isso, salvadores. Nos quarteirões, pátios e fachadas habitavam os detratores do meu nome de batismo. Mãe não conta, porque me chamava pelo nome, quase completo. Eles esperavam eu passar, para solfejar, declamar, dividir silabicamente meu apelido. Es-pe-zi-nha-ção pura! Tortura em fragmentos. Pior que às vezes, como essa noite, acordo ao som do meu apelido. Pesadelo não tem paixão pela linguagem.

sábado, 24 de outubro de 2009

Larica era mentira

Larica era mentira. Fome mesmo. Desculpa inútil. Antecessores também chegaram famintos. Inocência de rodoviária. Vergonha sem medida. Parecer gente do meio é a razão. Dá pena. O ardil vai começar. A ferocidade da cidade mal desembarcou. Qualificação nenhuma. Vontade visionária. Abundância de prodígios. Todo dia é assim. Declarações desapegadas. Saudade à sombra. Dinheiro em lágrimas. Afeitos a sonhos. Dá para profetizar um calvário interminável. Tantos e perplexos. Olhos das ruas. Medo do pecado. Subemprego da contemplação. Outras e muitas fomes. Cidade enorme. Gente pequena. Juntar para voltar. Árduos manuscritos à família: mentira dos êxitos. Labuta e luta. Encantos provisórios. Melhor ficar. No pra trás era pior. Memória vertebrada. Tumulto de caprichos: um aparelho de som. Pudor perdido. Fome mesmo. Vergonha milimétrica. Subúrbio e lama. A carne barata da nissei. Nunca vira aquilo. Negócio da China. Cidade boa. Morrer de louros. Adequação incomensurável. Voltar, não.

sexta-feira, 23 de outubro de 2009

Filha de Maria

Filha de Maria, Lauzina morava na viela paralela à paróquia, via de mão dupla, “no rumo da imagem do Sagrado”, gostava de explicar. E se benzia. Disfarçara-se de menino, na infância, com o único intuito de tocar o sininho, na função de coroinha. Travestira-se de mocinho, na adolescência, apenas para ser aceita no seminário, e “entender com profundidade as mensagens que Deus só revelava aos homens, futuros padres”. Descoberta, foi expulsa pelo senhor reitor, mas não chegou à excomunhão, pelos motivos nobres da fé com os quais explicou sua intenção. Jovem senhora, adotou um hitleriano bigodinho postiço, cabelo curto repartido de lado e terno preto. Performaticou seu ingresso na Opus Dei. Os traços fortes e o corpo rude ajudaram no novo disfarce, desmascarado apenas quando teve que se imolar com o cilício à frente dos membros. Não havia membro em Lauzina.
Desistiu da profundidade na hierarquia católica. Seria, enfim, o que poderia ser uma mulher, que nunca se dispôs a ser freira. Decisão própria. Depois, sempre tivera uma queda por Maria. Com todo o respeito.

quinta-feira, 22 de outubro de 2009

Chegou de bóia

Chegou de bóia à beira da embarcação. Para surpresa geral, fora visto somente quando já se encontrava a poucos metros da popa. Disse que queria viver mais, como todo o homem comum. Os tripulantes estranharam: “que papo?!”. Não, ele não precisava de nada, respondeu à pergunta. Lamentava a não existência da felicidade sem grandes proibições. O capitão foi chamado. O homem sentado na bóia era de fato estranho, concluiu aos presentes, como se esses não o tivessem percebido. Se vocês quiserem explicar tudo, o ser humano jamais mudará o mundo, asseverou, lá de baixo. Entreolhares perplexos. Não havia uma explicação amadurecendo, pelo contrário. Disse, calmo e seguro, um adeus inconseqüente. Boiaria para longe. Houve quem esboçasse o desejo de capturá-lo, mas o capitão disse “não”. À distância, o homem se transformava em história de marinheiros. Naquela situação transitória, ainda ouviram uma frase no horizonte: “não acreditem em tudo que veem”.

quarta-feira, 21 de outubro de 2009

Fui tomar no...

Fui tomar no .. como você me mandou, sua sacana. Deve ser porque eu sou um miserável mesmo e, quem sabe, mereço. Com tantas ofertas de computadores nas liquidações... até 100 prestações, foi logo comprar o seu, usado, naquela loja trambiqueira de produtos para informática. À vista... sua cretina. Paguei duzentão, real por real, sem chorinho. E pensa que foi fácil conseguir o dinheiro? Suor... sua coisa-ruim. Tem ideia do que é isso? Trabalho, trampo, labor, faina, lida dura. Toda manhã acordo às três... carrego a moto e vou entregar jornal. Gente de bem, como você... sua pulha. E eu, todo feliz, contei pra vila inteira que teria um computador. Chamei os manos, minha prima Daiane, a amiga dela, Estéfani Charon, meu primo Braddy Pedro e até meu pai, safado, que deu um pé na bunda da mãe... eu chamei. Todos na sala. Eu liguei a tomada... winnnn.....dowsssss. Cheio das musiquinhas... dos frins, frons e tal. Ninguém sabia mexer. Deixamos... ele, quietinho... sua vaca. Só olhando pra telinha. De repente, aparece lá: “O idiota que me comprou que vá tomar no ....”. O mané que me vendeu disse que dava pra trocar o escrito. Diz que é o tal “protetor de tela”. Proteger você é que ele não vai... sua cadela. Mandei trocar na hora, é... Sabe o que ele diz agora?... “Fui de uma puta!”.

terça-feira, 20 de outubro de 2009

Má comida

Má Comida era o apelido de Laura. Não pelo que pensariam os afoitos, mas pela sua absoluta incapacidade de engordar, mesmo comendo mais do que todos da família. Fez tratamento médico, regime de engorda e simpatia da Lua, na qual repetia, naquela fase da Lua, dia após dia: “como com o Sol, engordo com a Lua, primeira Lua Cheia”. Como com o Sol, engordo com a Lua, segunda Lua Cheia. E, assim, sucessivamente. Não adiantou.
Andrelão, o dono da gráfica, a chamou em seu escritório, e repassou a oração que recebera de uma cliente, já um tanto gordinha: “Eu (Laura) vou engordar. Meu corpo ficará lindo, minha bunda empinada, as pernas grossas ficarão lindas e minha cintura fina. Contarei 10, 9, 8, 7, 6, 5, 4, 3, 2, 1. Bruxinhos e bruxinhas, assim que esta simpatia eu publicar, vou começar a engordar 5 quilos em 3 semanas, bem distribuídos no meu corpo e nunca mais voltarei a ficar muito magra”. Pagou a Andrelão pelos impressos como pode, e publicou a oração. Mas só engordou mesmo na barriga. Ainda assim, pouco quilos, que perderia nove meses depois... Andrelão fez questão de pagar o parto.

segunda-feira, 19 de outubro de 2009

Alta libidinagem

Alta libidinagem e baixa estima conduziam as mãos eróticas do Velho Par, como era conhecido na cidade. Com o braço tonto sobre o ombro da “deusa”, deixava entrar a mão boba sob a blusa de R$ 9,99, acariciando-lhe os seios firmes e volumosos. Beijava-lhe o rosto, lascivo, deslizando a língua no entorno do colar de R$ 6,50. Descia a mão às nádegas, e apertava-lhe seguro o glúteo direito, sob o minúsculo short de R$ 15,90. Para deleite dos voyeurs presentes, que firmavam pactos de risos e desdém, puxava-lhe a calcinha rosa de R$ 2,90, aproximando-a do umbigo desnudo. Ajoelhava-se, e corria os lábios sobre as coxas bem delineadas e roliças. Beija-lhe os joelhos, as meias soquetes, de R$ 3,10, e a sandália vermelha, a apenas R$ 20,00.
Expectadores fotografavam, filmavam ou simplesmente apontavam. O Velho Par, sempre bêbado, era uma atração à parte na vitrine frontal das Lojas Bremer, quando adentrava sorrateiro o reduzido espaço, e se punha a namorar a manequim de fibra de vidro.

domingo, 18 de outubro de 2009

Punha em ordem

Punha em ordem tudo o que a razão não conseguia dominar. Arrumou os livros de filosofia lado a lado, no rumo alfabético de autores. Entre Adorno e Zizek havia 126 centímetros de pensamentos. Odiava ser contrariado, assim como uma taça de cristal odeia cair no chão. E quantas palavras fantásticas utilizava!
Seu intelecto era tratado com canapés, licores e chás, mas não lhe eram assimiláveis as informações que recebia, que resultavam em agridoces arrotos verbais. Colecionou livros, filmes e CDs. Organizou saraus literários, onde lia poemas que julgava “inteligentes”, ainda que as palavras ditas saltitassem feito lebres em dia de caça à raposa.
Orlando Fontes e Figueira era um nome, enfim, associado à cultura, mas não contava com a língua de Bernadete, a doméstica de anos, que se enfureceu na entrada do terceiro mês de atraso salarial. Sabida, foi pomposa servir no recital que o patrão oferecia aos amigos aquela noite. E quando o anfitrião anunciava Nelson Meire, o pianista, ela ligou o toca-discos, e entregou a intimidade do dono da casa à restrita platéia de trinta pessoas: “Olha gente, não agüento mais ele escutando isso o dia inteiro”. Você não vale nada mais eu gosto de você, esgoelava a música que, de repente, tomou conta do salão.

sábado, 17 de outubro de 2009

Diz que da

Diz que da ética só se salva a tica. Rubrica, a qual chamava o verbo ticar, sempre que anotava um ganho ilegal, no caderninho de receitas, percebidas por lobby. Apresentava o empreiteiro ao prefeito, e lá vinha “a tica”. Um construtor ao vereador e, tica. Um casamento pomposo ao pastor, e tica. A lista parecia não ter fim, e Honésimo nenhum limite.
Como sempre se pautara pelas negociatas legais, e fazia questão de frisar, jamais enfrentara problemas com a polícia. Jamais, até aquela tarde, na primavera. Inspirado nos colegas nobres, o delegado do lugar criou a Operação Tica-Tica no Fubá, e colocou um investigar disfarçado de receptor de furto da partitura original do chorinho, quase homônimo, de Ernesto Nazareth, para negociá-la com Honésimo, que o apresentaria ao deputado, apaixonado por chorinhos. Negócio agendado, blitz. O disfarçado se apresentou, Honésimo e o deputado caíram.
Diz que na cela só se salva ela: a velha tica. Honésimo consegue tudo no presídio, desde que “comissionado”. Montou uma holding de ticas que, diz, já atua em todo o Mercosul.

sexta-feira, 16 de outubro de 2009

Motivos não

Motivos não havia para uma lareira naquele calor, mas havia a lareira. Leitores de Anne Rice, Zé Lestat e Mary Stoker viviam nas trevas tropicais. Um quarto amplicíssimo, pintado de negro, com tochas flamejantes, que os remetiam aos castelos da Idade Média, em pleno Sol do Mato Grosso.
Por medo ou por asco substituíram o sangue por litrões de coca-cola, que sugavam até o saciado arroto. O crucifixo invertido na sala endemoniaria de vez o ar, não fosse a essência de tuti-fruti que pairava dos chicletes, mascados até virarem borrachas insípidas.
Resolveram, enfim, ir além na crédula encenação. Decoraram o teto com morcegos empalhados e decidiram matar uma galinha, em sacrifício macabro. Por Deus ou por sorte, a penosa conseguiu fugir dos vampiros teóricos. Ambos tinham medo de bicadas.

quinta-feira, 15 de outubro de 2009

Nesse estado

Nesse estado ele pode ser levado pelas águas. Não convém sair assim. O barco é pequeno, não tem recursos extras, nem piloto automático, né? Ele balança como as pontas dos coqueiros em dia de tempestade. Por muito menos já houve naufrágios históricos. Aquele com o Nino, pertinho do ancoradouro. Mesmo motivo. A escuna bateu sem dó na lancha do doutor Aristides. O netinho dele, loirinho-loirinho, morreu na hora.
Água é o tipo da coisa que em grandes quantidades promove um prazer bem menor do que em pequenas: melhor beber do que se afogar. As ondas parecem que mudam, feito as ofertas das Casas Bahia. Uma, duas, quinze vezes. Todos os esforços contrários, quando o rumo é o mal, dão impressão de atrair para um abismo.
No estado do Pepo ele deveria dormir na areia. Ninguém bebe treze copos de cachaça e se põe a navegar. Nem por precisão.

quarta-feira, 14 de outubro de 2009

No chuveiro

No chuveiro do elevador soprou bolhas de ar comprimido. Fizera surreal a casa rasa e flutuantemente tosca. Para um casal, dizia, sozinho.
O laptop entupia a pia de espumas, inseridas no texto. Detergente, esse Word, de brancos nadas salientes, esperando palavras. Apoiado no ralo, o mouse pedia um pad menos propenso às falhas do comando. Pulava preposições, acachapava verbos, homossexualizava artigos, por conta, não por opção dos comandos.
Histórias histéricas começavam a brotar no vaso azul de azaléias. Queria um conto, se tanto, para famigerar a fama. Uma chance extra-paredes plásticas de consciência reciclada. Descarga, certeira, no botão delete da caixa encantada. Lixo virtual pode provocar cegueira e falta de memória, leu na advertência da caixinha de tinta para a impressora. Apertou o botão.

terça-feira, 13 de outubro de 2009

Forma de pão

Forma de pão em punho, tia Antonia atropelava moleques e caçarolas, na cozinha escura. Janeiro. Manhã bem cedo. Raiozinhos de Sol entrando. Eles queriam lamber os restos das latas de leite condensado. Ela os queria longe. Calores: verão, fogão e menopausa de tia Antonia. Ralhos às tontas subiam no ar como o cheiro de canela. Risos rastejantes serpenteavam o chão, junto aos moleques. Pés de moleques e seus desenho abstratos, riscados nos ladrilhos pelas marcas da farinha que caiu. De repente, o entorno aflito. Queimados. Socorros. O barro da panela partiu. Água fervente por todo aquele chão. Os moleques sapecados. Marcas eternas, na alma de tia Antonia.

segunda-feira, 12 de outubro de 2009

Afaste o pé

Afaste o pé. Volte. Dois passinhos pra direita. De novo. Mexe esse quadril. No ritmo, Walda, ouça a música.
Tempere a carne com sal grosso. Agora, aquilo. Duas batidinhas com a palma da mão. De leve, porque as pedrinhas do sal não podem grudar. Controle, ali, o fogo: tem que ser alto.
Vem aqui, pertinho. Agora esprema devagar, sem a unha, senão marca. Walda, com a unha eu já disse que dói! Do lado tem um cravo velho, cabeça preta, tente nele.
Nem sempre você aprende, Walda, mas só te ensino coisas boas.

domingo, 11 de outubro de 2009

Na primeira cena

Na primeira cena Helena interpretou o dilema. Solucionou-o na segunda cena, mas havia ela própria, por trás da personagem. Deixar o palco e assumir de vez a função de mãe-de-santo no terreiro de candomblé não estava naquele texto. Um outro dilema, bem mais complexo do que a história da fadinha protetora do príncipe, que pirilimpimpava naquele cenário.
Seria, assim, uma profissional das artes cênicas, não fosse a súbita intervenção de sua orixá-de-cabeça, em pleno terceiro ato de O príncipe e a fadinha. Sem que a atriz pudesse tomar conta, a personagem pôs-se a ladainhar, primeiro baixinho: “Eparrei, Iansã. Oyá. Saravá”. O príncipe ainda tentou puxar Helena para o espetáculo, mas tomou logo um tapa na coroa. Gira na gira, vai na fé de missambê, que só tem pra Rainha do Vento. Ouviu, antes de atordoar. A platéia aplaudiu o súbito final da peça, sem entender direito se a fadinha, afinal, estava ali para proteger o príncipe.

sábado, 10 de outubro de 2009

Dói aqui

Dói aqui, quando eu ando. Quando sento, repuxa esse dedo. Respirar é uma dificuldade, parece que falta ar em toda a cabeça. Um vazio. Chego a mancar, quando espeta esse nervo. Até que estou melhor da coriza, só começa quando eu acordo. Continua seca essa tosse, mas o xarope ajuda, molha um pouco o alto da garganta, sabe? Às vezes o pente sai cheio de cabelos, acho que não demoro a ficar careca. Também, com essas febres que vem e vão, não há cabeça que agüente. Deve ser quisto, feito o que acho que tenho também no estômago. Muita azia, queimação diária. Graças a Deus aquela ardência nos olhos, que chegava a raspar, passou. Foi o corticóide, eu acho. Não sei, amanhã bem cedinho vou de novo ao médico pra ver isso, quem sabe, ele descobre alguma coisa...

sexta-feira, 9 de outubro de 2009

Buzinou compulsiva

Buzinou compulsiva e olhou feio para o segurança da escola. Queria urgência e a filha Débora, de 5 anos, que não encontrava-se no bloco das primeiras crianças que saíam. Buzinou insistente e gesticulou todos os braços. Motivou a mãe do carro da frente a também buzinar. E da frente, e da frente. E as de trás, também. Todo final de aula ensurdecia aquele quarteirão pacato, cujos moradores abaixo-assinavam pedidos de silêncio. Mães incautas, não contavam com o velho Bira, capitão da reserva, morador do número 508, que mantinha em seu Opala o adesivo “Ame-o ou deixe-o”.
Naquele final de aula da sexta-feira, todas as mães sentiram o cheiro forte de álcool, que parecia molhar o asfalto, formando possas isoladas nos muitos buraquinhos do solo. Jandira, sobrevivente, com apenas 45% do corpo queimado, disse que não imaginava “que alguém fosse tacar fogo naquilo”...

quinta-feira, 8 de outubro de 2009

Fosse o que fosse

Fosse o que fosse, mais doce não lhe parecia possível. Aquele olhar de Dulcinéia, que lhe sintonizava, em meio a tantos, não seria de vã rastaqüera. Ascendeu recentemente, é fato, mas já largava amores e fortunas, quando não lhe convinha o vínculo. Morbidamente indiferente.
Para ele, não. Movia-se para comovê-lo, criando um fascínio de dúvidas, que motivou Alonso a aproximar-se. Queria tê-la às certas, matematicamente. Fosse seu, por a mais bê, o olhar que a todos pertencia. Moveria moinhos.
Atravessou a pista, entre esbarrões e chistes, para ver bem perto aqueles olhos. O funk catalão pulsava no resto. O riso súbito das amigas alertou-lhe a desconfiança. Um pouco tarde para Alonso, já frente a frente com a moça. Ouviu, súbito, o grito cômico da galera: “Alonso Mortadela. Alonso Mortadela”. Assustou-se, e saiu às pressas, para o reservado do boate. Pança, o amigo obeso, tratou de explicar-lhe o sentido do cinismo público: “você é metade porco, metade burro e existe em qualquer botequim”.

quarta-feira, 7 de outubro de 2009

Gaguejou súplicas

Gaguejou súplicas na primeira cena. Corte seco no algoz: um traficantezinho magrelo, com camiseta Giorgio Armani e boné da Xuxa, invertido na testa. Ele come compulsivamente as batatinhas de um saco de Elma Chips e olha frio para a vítima, amarrada na roda dianteira de uma Kombi. – Essa merda tá na Bíblia, Rafinha. Tá lá, lembra da dona Lourdes? Não matarás! Diz aflito o prisioneiro, em plano americano, com a captação da imagem feita de cima para baixo, inferiorizando o personagem. “Só acredito em mim, vacilão!”, responde o líder dos carrascos, já dando ordens, com um sinal de cabeça, para que seus ajudantes reiniciem a tortura. Plano aberto. Sombras tenebrosas mostram o traficante de costas, em primeiro plano. Ao fundo dois bandidos adolescentes, um de gorro, outro de regata, ambos com fuzis entrelaçados às costas e pedaços de pau às mãos, desferem golpes contra o amarrado. No back-ground, uma paradoxal música suave enternece a morte. Corte seco. Close de uma batatinha chips que cai da mão de Rafinha. Ela tamborila no chão sujo, ele a pisa firme, balançando a ponta do pé, calçado com um tênis Nike.

terça-feira, 6 de outubro de 2009

Aquela gordura

Aquela gordura exposta ao Sol só poderia estar querendo virar bacon. Era assim que Umbelino falava de Marcinha. De mal, na piscina do clube. Maldade tem essa coisa, de enfeiar ou engordar as pessoas. Encovado nos pensamentos, não entendia o por quê daquela gorda, e feia, e chata, e pernóstica, e metida, e enfadonha Marcinha negar-se a namorá-lo. Se namorava com todo mundo!?
Foi que fez feio. Gracinha para os outros. Chegou perto da toalha da moça e, estúpido, trocou o bronzeador. Embalagem igual, mas com pó-de-mico misturado à pasta. Marcinha nem viu. Passou pelo corpo e danou a se coçar. Um sofrimento de cadela atropelada, coitada. Raspava-se, contorcia-se e chegou a pedir socorro. “Querendo, eu posso melhorar você?”, disfarçou o criminoso. Sim, ela disse, quase como pedido de pelo amor a Deus. Já com um balde de água ao lado, ele a lavou. Foi alisando aqueles braços roliços, aquelas costas brilhantes, aquele rosto corado. Ela enterneceu. Viu bonito, o mau caráter do Umbelino. Não fosse o falastrão do Zequinha, teriam até namorado...

segunda-feira, 5 de outubro de 2009

Com essa cara

Com essa cara de peroba-rosa que meu pai me deu, casposo nos ombro e escondido nos pensamentos, balanço os olhos para um lado e pro outro, mas não sou doente-dos-nervos, isso não! Sei de mim. Quando falo igual pastor de crentes em noite de pouco dízimo é porque tenho o que dizer, ara. Às vezes nem abro a boca, que nem passarinho na muda. Viu esse uálquemem? Tem cantor lá dentro, por isso eu saio cantando pela rua, feito o caminhão gás. Ouço, só eu e ele, a musiquinha que ninguém ouve. Agora mesmo, tava um silêncio de cemitério, entrou então o tum-tum, troncudo e tonto. Eu balanço. Todo mundo já logo acha que é doidice. Xô urubus e berenices! Também pinto. ‘Cê pinta como eu pinto? Há, há. Inimiza comigo, mas quer meu abrigo! Viu? Faço rima, às vezes. Só falta você dizer que eu não sei pregar botão, por causa desse aqui que falta? Se tivesse botão, bobão, eu ó: passava a linha assim, assim e abotoava o paletó...ó. ó. Estudei até a quarta! Nunca fui na escola às quintas e sextas. Brincadeira, sai no meio da oitava. Foi quando me deram esse remédio aqui, ó. Pra eu tomar de manhã, de tarde e de noite. Tá estranha essa Lua, né? Será que é porque hoje eu não tomei nenhum?

domingo, 4 de outubro de 2009

Gemada, não

Gemada, não! Jão-Carlim, filho mais novo do finado Ataliba Mecânico, com a comadre Rosário, morava dois morros pra cima de onde tinha aquela moita enorme de eucaliptos. Vivia constipado. O irmãozinho dele teve um troço cedo, tadim. Un’zóinho azul miudinho que dava gosto de olhar. Era parecido com Ti’Duardo, irmão do Mané Padeiro, que casou com a tia Fátima, quando ela veio morar na casa da minha mãe, aqui no sítio. Faz tempo.
Não havia reza que curasse o Jão-Carlim, até que a dona Sebastiana, sabida das coisas da medicina, porque o cunhado dela, doutor Tadeu, se não me engano, três por quatro falava num negócio de ômega três. Bom pra tudo. Deu até receita, naquela época, com as coisas que a gente tinha. Leite quente e dois ovos batidos de um tanto que doesse a mão. Gemada. Um santo remédio. Mas a madrinha disse que Jão-Carlim enojou. Era olhar pr’aquilo e tossir de quase por pra fora, as coisas e a constipação. Não vi mais esse povo. Dizem que Jão-Carlim casou, tem filhos e tudo. Vai ver sarou. Mas tenho certeza de uma coisa, só gemada não foi.

sábado, 3 de outubro de 2009

Chamou ligeiro

Chamou ligeiro a mulher para apresentar-lhe Jaciro, com orgulho. “Esse, benhê, é o melhor tocador de violão que eu conheço”. Prazer. Prazer. Telminha ficava sempre com uma pulga atrás orelha, quando o marido saía às terças-feiras para jogar truco, e voltava às altas horas, explicando que depois do jogo ficara lá, à toa com os amigos, cantando “umas modas”. Por isso quando viu o músico passando afobado, do outro lado da calçada, fez questão de convidá-lo a conhecer sua casa e sua família. Seria uma espécie de demonstração à esposa que os amigos eram “honrados”.
A pressa de Jaciro diminuiu quando o amigo lhe propôs que apreciassem um salaminho, trazido pela irmã de Telminha, que trabalhava numa fábrica de embutidos. Mais um pedacinho e uma necessidade: buscar outra meia dúzia de cervejas. Uma “gentileza” cuja incumbência caberia à Telminha. Com ar de enfado armado, ela foi. E foi-se o salame, mas cadê Telminha? Jaciro se despediu e a noite cresceu rápida. Passava das duas horas da amanhã, quando a mulher retornou, com uma alegria vesga e uma amiga gorda: “Essa, benhê, é a melhor cartomante que eu conheço”.

sexta-feira, 2 de outubro de 2009

Caso seja

Caso seja de seu agrado, farei o feijão tropeiro. Caso não, farei da mesma forma. Dizendo-se um animal de postura ereta, razão pela qual se ficasse muito tempo de cabeça baixa acabaria se cansando, Doralvina quis enquadrar o marido logo no primeiro domingo após o casamento. Bem cedinho, ainda comiam queijo fresco com café quando o pobre perguntou-lhe “o que aconteceu”, no momento em que ela havia mordido a língua. “Não existe pergunta mais infeliz”, ela devolveu-lhe encolerizada.
Angelino entendeu logo que os dois anos de namoro, destinados a uma escolha precisa, calibrada, pontual e, portanto, eficaz, não passaram de um teatro de gentis embusteirices. A coisa era cão, pensou baixo, com receio de expressar, na face, a funesta conclusão. Em tal nível, foi-se o primeiro ano. Dora já se inquietava com falta de gravidez. Angelino seguia a lei da gravidade, caia na cama todas as noites e simulava, raso, um imediato sono profundo. Nem safanões, lingeries vermelhos, velas aromáticas ou champanhe cidra-macieira eram capazes de motivá-lo às funções maritais. Ela, então, apresentou-lhe o ultimato: eu ou cama? Ele chamou o Gordo, amigo caminhoneiro, e contratou o frete: com colchão e tudo.

quinta-feira, 1 de outubro de 2009

Erguer monumentos

Erguer monumentos era a idiotia social de Mirinho, prefeito do lugar. Superava o coro dos contrários com suas queixas, contra a “ignorância do povo”, e constantes irrupções de cóleras. Um elitista mimado, enfim, nos padrões que convém a todo o reacionário.
Dizia-se dado às artes e, também particularmente, às colunas romanas. Transformou o posto de saúde da cidade num pseudocoliseu. Exagerou, no entanto, na sua ânsia pela tradição. Ao invés de um cristo redentor, mandou fazer logo uma Santíssima Trindade, cuja estátua do deus-pai, dizia a oposição, pretendia ter os traços do próprio prefeito. Miro Júnior, seu mais velho rebento, virou o Cristo, o deus-filho. Mas o que motivou sua contra-ordem a demolirem todas as esculturas foi o Espírito-Santo. Com a feição de Girassílvia, a primeira-dama, logo apelidaram o pássaro divino de pomba-gira...