quinta-feira, 30 de setembro de 2010

Queimando, só

Queimando, só o estômago. Aquele calor o aquietava, mas não ardia por fora. Sol a pino, sabe como é. Também não se pode atribuir à temperatura a serenidade de Bento. Bem poderia ter sido o feijão, comido às centenas de grãos durante a fome que, afinal, era filha de uma só gula. Chegou ao engasgo involuntário, tamanha a volúpia. Virou caricatura grosseira de um faminto em petição de miséria, mas a barriga estava repleta. Inevitavelmente tudo aquilo haveria de cumprir seu ciclo. E desde o big bang a forma gasosa antecede à sólida... Foi gargalhada cruel aquela dos colegas, no escritório repleto. Curvado à frente, côncavo como um berço de angústias, Bento assobiou de fúria.

quarta-feira, 29 de setembro de 2010

Não liga

Não liga, não larga. Ednéia aconselhou Teresa, quando a amiga soube que o marido andava com ocupações escusas no meio do expediente. A desmedida língua alheia, porém, apontava fuzis e canhões na direção do óbvio: Olegário, farmacêutico exemplar, estaria traindo a mulher com uma manicure decrépita e de modos fáceis. Teresa tentou testes, escuta, labuta, mas nada de conta de aferir a tal... A coisa era conservada à discrição monástica. Lá ia ele, toda a manhã, abrir a farmácia. No almoço, era batata. Saía do serviço à casa, da casa ao serviço. E nem plantões aos sábados ele fazia mais: que ficasse Batista, seu funcionário, cujo único mal era se imaginar médico. No salão de beleza da amiga, Teresa revelava o inconformismo latente: “Não é possível, Ednéia! Ele é todo trabalho!”. Naquele tarde, Ednéia foi à farmácia, como havia prometido à amiga. Às três em ponto, quando Batista saía para o lanche, ela entrou. Piscou apenas o olho esquerdo.

terça-feira, 28 de setembro de 2010

Certas noites

Certas noites, Olga Regina ficava acordada escutando o vento. Do zumbido mais agudo, ou menos, sabia prever os gemidos que viriam das dobradiças desengraxadas da porta dos fundos. Só esperava. Só, esperava. Naquela vila erma as casas tinham entre si a distância da discrição. Nas tempestades, todos se confessariam ressabiados, mas ninguém nunca perguntou isso a outrem. “Ó de casa!”, Olga Regina ouviu numa daquelas madrugadas de brisa mansa e chuva serena. Estremeceu-lhe a espinha, mas botou botas, calçada de coragem para ver quem era. Nunca mais foi a mesma órfã solitária dos muitos anos. Ao menos na lembrança que guarda daquele rapaz faminto e também solitário... como quem entesoura uma jóia preciosa.

segunda-feira, 27 de setembro de 2010

Consistência e caldo

Consistência e caldo grosso. Doce em coma, então sob o céu severo daquele povoado as rigorosas bocas palavreiras haveriam de apreciá-lo. Dona Noêmia comungava percepções que a vila oferecia às nesgas. “Aquele último, o de amendoim, estava um primor, Noêmia”. Era a maneira como a vizinha Cida criticava o penúltimo, de abóbora. Dona Noêmia vivia do ponto certo entre os ingredientes e os açúcares. Entre os ódios sem júbilos das amargas vidas e a defensiva de um “não experimentei ainda”, oferecia em domicílios seus préstimos adocicados. Criou os filhos com os dedos anônimos, manuseando colheres de pau. A precisão era a vida. As receitas que desandaram, por indefinição do tempo ou oscilação do fogo, foram incapazes de desatar-lhe o prestígio de doceira. Dizem que não morreu: cristalizou-se. Figo de cabeça para baixo ou morango crescido: essas coisas saborosas, que têm a forma de coração.

domingo, 26 de setembro de 2010

Na lata

Na lata, a intenção ficou explícita: eu não poderia me mexer. Seriam vinte segundos de absoluta precisão tecnológica, mas a base era a velha e alquímica transmutação de elementos. Voltaria vinte anos, um por segundo. Mais do que isso seria temeroso, disse o doutor Jekyll Sales Hyde, pesquisador renomado das coisas contraditórias e exibicionistas. A platéia olhava com uma angústia cremosa e a lividez dos macabros. Eu, lá, só esperava o início da coisa. Ele apertaria o botão de uma máquina rouca, um tanto ruidosa, mas eu não poderia me assustar com aquilo, era só o som do processo. Nem a odiosa contagem regressiva o danado do Jekyll fez. Foi logo apertando o botão. Confesso que os calafrios não vinham dos fios, todos plugados às partes vitais do meu corpo, mas de um certo cagaço intuitivo. Vinte segundos ansiaram séculos. E quando o motor calou-se, ouvi um oh do público. Para minha felicidade, sai do mesmo jeito que entrei naquilo, apenas bem mais cético.

sábado, 25 de setembro de 2010

Estilo tinha

Estilo tinha. Especialmente depois que ouviu de Bukowski que, quando Hemingway estourou seus miolos na parede com uma espingarda, isso era estilo. Julgava que era arte abrir uma lata de sardinhas coqueiro ou fazer qualquer outra coisa perigosa com estilo, como ler James Joyce, Guimarães Rosa ou precipitar-se do Viaduto do Chá. Haveria de haver estilo, para não ser estúpido, quanto mais, até poderia, então, virar arte. Com tanta verdade e estupidez em vista, arriscou a morte no Dia Mundial de Prevenção ao Suicídio. O impropério tornou-se puro êxito! Estilo, afinal, tinha. Sua morte, arte. Uma vitória, como idealizou, da falência múltipla dos órgãos, começando pelo cérebro.

sexta-feira, 24 de setembro de 2010

Nenhuma restrição

Nenhuma restrição. Com aquele traje ridículo de vedete ensandecida ela pode, sim, ir à tal missa pelas almas, na matriz. Por que impedi-la de defecar nas roseiras? É uma teoria que ela tem desde mocinha, jamais colocada em prática: perfume com o odor se faz! Havia uma certa obsessão nessa conversa. Acho que foi desde que infestou a sala com flatulências múltiplas, na noite em que vovô foi pedi-la em casamento. Temo apenas pela tal mistura de absinto com fanta uva: a fadinha roxa, como ela a denominou. Mais por questões intestinais do que alcoólicas ou morais. Lembra da história do noivado? Acho, de verdade, que quem é patético de fato é o doutor João, médica, lá, dela. Imagine, diagnosticar apenas três meses de vida.

quinta-feira, 23 de setembro de 2010

Bago do cisne

Bago do cisne foi o balé que Genival dançou com a perua da Amanda. Todo pavão virou galeto. Avis rara aquela galinha. Enquadrou o frango na linha simétrica dos patos selvagens, migratórios. Deixou-o com dilema de ema frente ao buraco. Pardal sem ar, bem-te-vi em canto. Todo quero-quero pra cima da harpia, piou na mão. Primeiro foi tico-tico, depois pomba-rola no alçapão baixado em ação de prisão, sem espaço ou misericórdia. Vidas com penas poderiam evitar as liberdades do vento. Voar é para pássaros!

quarta-feira, 22 de setembro de 2010

O ferrão

O ferrão do desprezo brilhou de prazer no peito de Edivânia. Água fria, fofa. Disse à Dirce, quando metia a cara dela na ducha anti-álcool, depois do porre. Seu estoque de fricote escoou pela fenda do ralo redondo. Degolá-la, como pensou, Edivânia deixou pra depois que escorresse o halo da vergonha. Úmida, feito baba de escargô, haveria de verter o mal que fez à amiga, através daqueles óculos embaçados que escondiam miragens suplicantes. Edivânia escoiceou o pé de Dirce na divisa do boxe, e lascou-lhe um tapa na nuca tonta. O irrisório fio do bom senso perdeu o nó. Pôs-se a arranhá-la, para arder; a empurrá-la, para escorregar no piso liso. Daí aos azulejos foi só um passo falso. Falsa! Fique aí desnivelada que é como você é, ainda bradou Edivânia imperativa. A pasta de amiga no chão não era mais gente, nem consideração, nem amiga. Com o olhar oco de expressão Edivânia, bateu a porta: “quando você se casar o marido é seu!”.

terça-feira, 21 de setembro de 2010

Converteu-se depois

Converteu-se depois do susto. Largou o pastor falando e foi conversar no bar. Até palmas batia naquela igreja: velho salão onde antes havia bailes. Foi à avessa que optou feliz. Trocou a oração gritada pela cerveja silenciosa, claro, gelada. “Espumar por espumar, prefiro que seja o copo, não minha boca, com demônios baixados”, disse terno ao Antônio, do armazém. Sua proeza também reza. Proeminentes pregações no balcão de pedra, que passaram a reunir mais e mais fregueses no boteco cordial. Deu-se que pastoreou pais de família, convertendo todos à redenção pelo bolinho de aipim, à crença na alegria etílica, à salvação pela prosa. Gente de bem, que passava por lá para a prece diária após o expediente na fábrica. Não tardou sagrar-se bispo do lugar. Especialmente quando convencionou que “amém” equivalia a “desce outra”. E os anjos diziam amém...


segunda-feira, 20 de setembro de 2010

No meio da casa

No meio da casa dos quarenta, beirando mais, inspirava a desconfiança pelo brinco em zê provocante dependurado na orelha esquerda. “Mais pra Tonto que pra Zorro”, cochichou o atrevido Ernesto, quando aquele homem entrou no bar e pediu licença para tocar o violão puído que trazia a tiracolo. Mas que maravilha contraditória era aquela? Queixo voluntarioso, meio indecente nos gestos (a música de murmúrio e notas que saía daquela voz e cordas), emanava uma atração inexplicável. Queriam-lhe saber o passado, presentemente encantados. Bisbilhotavam sem perder o ritmo, que não os liberava para comentários curtos. Com beiços caídos e troças engolidas, Ernesto emudeceu fofocas, só olhando fixo, sem sustento de provocações. Bateu o isqueiro, acendeu um cigarro e, de repente, estava assobiando a melodia do homem... e jamais a ouvira antes. Deu de súbito com a clareza, fez pelo sinal e baixou a vista. “Esse zê só pode ser de belzebu”. E a música nunca mais parou de tocar em sua vida.

domingo, 19 de setembro de 2010

Gateiro

Gateiro, pensionava felinos órfãos, penseiro dos miamentos tristonhos que reclariam a morte, se sem decência de casa, comida e fresca aguinha. No ronrodizer dos bichos era bemlambidamente reconhecido pelos faroletes-olhos que faiscavam afetos. Do desligo-displicente felídeo criava uma fina sintonia com o que pensava, então adivinhava as vontades das gatas famélicas, seus miados e cios. Foi suficiente para as zombetices do povo da vila, que o chamavam de gatonauta. Não ligava, até perceber que suas unhas também já estavam se tornando retráteis, como desses animais. Os passos tornavam-se digitígrados, na ponta dos dedos. Mas o que mais o assustou foi espelhar-se e ver-se nos olhos, que cresciam à vista: seu campo de visão ampliara-se a 185 graus e suas pupilas, agora, eram verticais. Engatou-se. Gatificou-se, até miar miou, já com novo afeto por si.

sábado, 18 de setembro de 2010

Por habitarem

Por habitarem visões esguias os olhos de Judite tornaram-se nervosos. Viam paqueras onde havia pena; desejos, onde desdém. Nem era mais seu excessivo peso o desequilíbrio da balança, era a caça contínua que espantava os olhados, ainda que viessem a ser pretendentes. Judite era a chama que olha, sem arder. O fogo às tontas, que queimava intenções. Por se achar bela e caçadora, abatia a caça antes do bote; comia verde, beneficências maduras. E é lógico que não foi cegueira a miragem de Edgar. Houve o gesto de fazer-se visto. O plasma para tornar-se imagem, mas Judite, de novo, errou no foco. E Edgar, seu amor que seria eterno, etéreo apagou. “Eu vazo à vista dela”, disse transparente ao amigo Omar. Amigo real.

sexta-feira, 17 de setembro de 2010

Era Maria

Era Maria Caxuxa, Ana Banana, Zé Capilé. Nomes de farras, leves acintes. Nem maldade, pecha ou piedade; só falas traquinas por respostas tortas. Então, fingidas raivas, que mansas voltavam. Meio aos ecos por mal nenhum. Um tempo havia onde vozes existiam no espaço das coisas. Época artesã. Manhã das gentes. “Quem escondeu, escondeu. Quem não escondeu, lá vou eu!”. Por trás não se bate ou briga. No chão, não se agride outrem. O nome da ética era não vale. Da confiança, combinado. Do respeito, sim, senhor. E quando origens, quase virgens, põem a memória para dormir com leite quente, canela e açúcar queimado, o presente a acorda ao despertador estridente: a última nostalgia que chegar é mulher do padre!

quinta-feira, 16 de setembro de 2010

Debrucei na janela

Debrucei na janela para uns pingos baterem-me à face. É uma espécie de ritual de revitalização: sempre que acontece algo bom comigo, chove. Mas nesses tempos secos de inverno não há pingos, e a face ficou à ficção, que fosse de um orvalho extemporâneo. Virou dessas síndromes de espera. Objeto fantasioso de conciliação com o inexistente. Então pensei fraudar a sorte, quem sabe lançando um esguicho de água sobre o telhado, para que ela retornasse às gotas. Muito indecente essa ideia falsária, e nem deve ser capaz de trazer algo de bom. Melhor perseguir as nuvens. Pelo menos é um encorajamento pra alma. Coisa de mãe, eu acho, que sempre nos orienta a corrermos atrás de nossos sonhos.

quarta-feira, 15 de setembro de 2010

Sinceridade nunca

Sinceridade nunca foi o forte de Odinésia. Dizia sempre que não descansava nunca, mas os próximos bem sabiam da distância que ela mantinha do trabalho. Aprofundava-se em tédios quando havia ocupações pendentes, e daí lançava suposições aos metros. “Num posso”. “Tô até aqui de papéis pra ler”. O peito subia e descia em enfado compassado que simulava espasmos musculares. Odinésia, então, era todo desprazer. Chegaria ao engasgo involuntário, se necessário; às lágrimas rosto abaixo, se indispensáveis, até que não houvesse mais risco de batente iminente. Ederaldo só conseguiu ludibriá-la quando a colocou de recepcionista do seu escritório de trambiques. “Fique aqui, Odinésia, e finja que está sempre ocupada!”, determinou à irmã. A falsa então trabalhou, fingindo que não fazia nada.

terça-feira, 14 de setembro de 2010

No manual

No manual, as referências eram dadas àqueles que não precisavam delas. Nos botões, a força de um vago saber atrapalhava as teclas. O resultado foi um ruído infernal, que só terminou quando o dentista desligou a tomada da parede, para o êxtase da paciente, que suava até os dentes. A nova cadeira para tratamentos estabelecia larga vantagem sobre a antiga, pena, os botões. As confissões prolixas do concorrente começavam a tomar vulto. José, o dentista adquirente, vibrou com as antenas, configurações, sensores digitais e frases ocasionais, em chinês tecnológico. Depois, os cabos, os plugs e a inexatidão dos encaixes, naturalmente, nos buracos errados. Continuaria indefinidamente aquela montagem, não fosse a decisão contundente da cliente: “vou tratar meus dentes na China!”.

segunda-feira, 13 de setembro de 2010

Estrebucha a danada

Estrebucha a danada. Na cabeceira de fórmica o relógio marca seis e meia. Família imóvel. Já faz tempo que Jandira ameaça. Irrepreensível, o cuco salta uma vez, a meia da hora que é. Todos olham, só porque ele chamou atenção. As vozes que Jandira emite têm um quê de celofane amassado. Não se juntam as palavras nesse espetáculo. Houve a vez que a mãe chamou socorro. Houve o pai que lhe enfiou o dedo na garganta, e tirou de lá todos os comprimidos. Houve o grito do irmão que a segurou na janela. Agora, não. Todos olham, num misto de vingança e mesura: ela quer? Que vá! Uma sombra informe cresce no quarto pelo Sol que raia. A zanga contida cresce junta, em todos, que olham, olham. Jandira provavelmente já não há mais. Nem celofane fala, nem estrebucha.

domingo, 12 de setembro de 2010

Colossal inutilidade

Colossal inutilidade vazou da voz pastosa de Demerval, quando se pôs a comentar o fardo que carregava como auxiliar de tenista. Havia aquela bola estúpida, que foi parar sobre a bosta do cão pastor, na quadra do condomínio. Havia a do bueiro, do banheiro, do brejo, debaixo do aguaceiro, do outro lado da autopista, da delicada horta, íngreme ladeira, buraco do tatu-peba, ninho de cascavéis cinzas, grudada na trepadeira, da caixa de marimbondos, no meio da briga das madames, no oco do cano, no furo do pára-brisa, por cima do bolo armado ou imagine mil lugares, e lá esteve uma bola, catada por Demerval. Ninguém, dali, conseguiu acompanhar a partida... perdida pelo patrão de Demerval. Então todos admitiram o excelente auxiliar que ele era.

sábado, 11 de setembro de 2010

Reportagem incompleta

Reportagem incompleta, essa. Sei que está... ainda bem. Esse aí da foto azul, tá vendo? É o Raul que não voltou. Dele, de lá, só existe aquele torpedo: “o crematório existe, sim”. Antes foi o Náder, convencido às duras penas, apesar de bom repórter investigativo. E dele? O que diz? Virou súplica! É ele no tal vídeo que enviaram. Horrível! Pois é, sinto refluxos da bílis, de remorso. Como se soube desses assassinos? Pelas baixas, ora. Cinco repórteres e quatro fotógrafos depois ninguém mais duvidava da existência do Buracão do Auchê! Auchê? É, vai ver alguém do pó andou lendo sobre o nazismo, o campo de Auschwitz, sei lá... Pertinente! Bastante! E o que é que você quer que euzinho aqui faça? Seria muito te pedir para investigar isso até o fim? Não, não seria muito. Não? É que ando pensando mesmo pensando em suicídio, mas não tenho coragem. Bom, então, veio a calhar! Pois é...

sexta-feira, 10 de setembro de 2010

O perfume

O perfume que usava, sem dúvida, era barato. Perfume cigano, rodoviário. Dos membros pode-se detectar certa infantilidade, voluntariosa e fictícia. Na mão esquerda, vê-se esse anel de plástico, do tipo distribuído junto aos doces em bares periféricos. No punho direito, pulseirinhas, também plásticas, de origem similar. Os detalhes nas unhas, com esmalte laranja-amarelado e pontinhos pretos, revela sua projeção para onça, tigresa ou sabe-se lá qual felino, desses capazes de gerar ciúmes, fundados ou infundados. As três tatuagens no tornozelo esquerdo denotam uma vida de paixões obsessivas: os dois nomes masculinos apagados aos borrões e, o terceiro, já com debuxo para um novo borrão, não deixam dúvidas. Do tronco, pode-se dizer que gostava de mesa farta. Essas formas arredondadas revelam cervejas e salgadinhos às farturas. Agora é que a levemos agora ao IML, lá, poderemos a pormenorizar melhor.

quinta-feira, 9 de setembro de 2010

Trocaram intimidades

Trocaram intimidades e receitas macrobióticas. Depois combinaram de um dia se encontrarem, “numa coisinha mais festiva”. Josélia zerara os créditos do celular e foi a sorte. Houvesse uns minutinhos de prosa virtual e jamais teria conhecido Heloísa ali, presente. Heloísa já não era de muita fala, embora não fosse muda. Por certo as proezas melancólicas de ambas careciam de indulgente cumplicidade, mesmo que nem soubessem. Cólicas, aliás, foi o sintoma comum. Nem queixas, ameixas ou laxantes naturais deram jeito. Então, o consultório médico. “Estranho nos conhecermos pelos intestinos presos”, falou Josélia. “Melhor do que soltos”, brincou Heloísa. E nos verdes campos integrais e pródigos da prosa, uma revelação: ambas haviam comprado o tofú do japonês da Vila Serena. “Senti um ranço”. “Também senti”. “Acho que nem precisamos mais desse gastrologista!”. “Já que estamos aqui há esse tempão todo, vamos até o fim”. “É, pode ser o sódio do shoyu...”.

quarta-feira, 8 de setembro de 2010

Frenético no trabalho

Frenético no trabalho nunca foi. Seu ritmo era contínuo. Jamais participou de “momento histórico” algum. Até esteve naquilo que chamava de “ocasiões”, mas Lupércio era categórico: “a história não tem momentos determinantes, mas é uma proliferação de instantes, de brevidades que competem entre si monstruosamente”. E radicalizou, faltando ao velório da mulher do patrão, morta com toda a pompa e circunstância de um cartão-de-ponto. Veio a advertência, ele protestou. Chamou o imediato, o gerente, o vice-presidente e, pior, a mídia. O caso logo ganhou repercussão dado assédio moral pelo qual Lupércio passou, mas havia a mítica nacional: no câncer, se é solidário. E o juiz do trabalho do lugar soltou o veredicto contra o solicitante: “causa improcedente, por difamação de cadáver”.

terça-feira, 7 de setembro de 2010

Desceu outra chávena

Desceu outra chávena de vinho prosecco e a tilintou com a taça Jurandir. Era assim a Isabel, só prosecco em chávena, entre outras excentricidades, que por suposto visavam compensar sua extrema feiúra. Um provável desvio na coluna deixavam-na de peito empinado, andar arrogante e um certo ar de sabichona, característico dos não são muito inteligentes. O ex-marido já havia sido mandado nas últimas para um hospital, onde o que lhe restou foi morrer em paz, que, aliás, foi o que fez. Agora Isabel almejava a alma de Jurandir, outro tonto aos seus caprichos. Fez com que ele profanasse amizades, encurtasse a visão de mundo e aderisse ao bel prazer das fascinantes fantasias consumistas. Depois, que mudasse de casta, que era a visão de Isabel sobre os outros: todos que não tivessem um dia nascidos ricos. Então, do trabalho de Jurandir, manteve sua pose e a chávena constantemente repleta de prosecco. Buscando, quem sabe, o dia em a morte os separasse.

segunda-feira, 6 de setembro de 2010

Provável páreo

Provável páreo para Diva seria Divina. Uma cristaleira que brilhava na sala e outra parede, com bocados de tijolos desalmados. Oposição e situação. Água e óleo. Embora uma fosse afável e a outra insossa, bem sabiam os de perto que, delas, não sairiam forças desiguais. Deu-se que, à primeira, veio a bonança e, à segunda, o caos. Paz e guerra. Sucesso e fiasco. Deu-se que se combateram. Pouco pesou o ventre único no qual foram ambas geradas; a lembrança simétrica que pairava sonsa quando ambas davam-se as mãos para um passeio. Foi-se o cheiro ácido das drogarias de infância, a penumbra castanha das mãos em concha, prontas a amparar migalhas que caíssem do bolo de cada boca. A leveza dos beija-flores no outono pesou como os buchos do gado no pasto verde do verão. E o páreo foi cancelado, por falta de espírito esportivo... e risco de fratricídio.

domingo, 5 de setembro de 2010

Tão educadinho

Tão educadinho era Atílio, que o pai de Vilma coçou a cabeça ao ser apresentado ao namorado da filha. A vista do rapaz de turvava sempre que se abaixava, e dizia ver cristais luminosos. Cada uma! Pensou o velho, paspalhão e fresco como letrista de tango traído. Mas Atílio, em seu íntimo, aparentemente passivo, era uma bomba-relógio: poderosa e irracional, quase ilógica, pronta para explodir no momento menos indicado. O velho, turrão e atento, não abria espaço ao namoro dos dois, ainda que mantido em rigoroso banho-maria, homeopático, no sofá principal da pequena casa. Ao menor sinal de cochicho do casal, interferia tosco: “o que é? Fala mais alto!”. Foi no domingo à tarde, quando o silêncio dos três produzia cãimbras, que o jovem enamorado, sem quê nem por quê, virou a bunda em direção ao velho, como se alçasse mira, peidou prolongado, levantou-se e, ainda à porta, virou para os dois, ameaçador: “vou namorar alguém menos complicada”.

sábado, 4 de setembro de 2010

Desbotada

Desbotada, a camisa do timão cobria as partes baixas de Amanda. Seu crioulo era ignorância latente com a situação, com os outros. Ninguém se aproximava muito. Justo ela, da galera, ali... Antes, só era vista aos gritos, óóóhhhsss e vibração intensa, entre um bando de loucos que se auto-manifestava: “aqui tem um bando de louco, louco por ti Corínthians”. Vista em silêncio, de esguelha e verde, era traição. Expressão da impassibilidade, logo depois de gol sofrido. Perfídia aos filhos alvinegros. Então o funk, o tom, batuque excêntrico de uma existência, estendidos no meio-fio feito trama de tango, assim, meio tragédia grega. Atropelada pelo ônibus de seu time, Amanda foi expulsa de campo, no momento do pênalti favorável. Do alto, os gaviões, ao mesmo tempo em que se compraziam do vôo, olhavam vigilantes, com seus olhos capazes de discernir o mais ínfimo movimento lá embaixo.

sexta-feira, 3 de setembro de 2010

Desajeitado com aquela

Desajeitado com aquela altura era quase uma redundância. Aos nove anos, Hipólito media um metro e setenta. Não era um menino, era uma bananeira, que balançava ao mínimo vento (ou sem ele), como se fosse cair de lado, de frente, pra trás. Ria por tudo, não só com a boca, mas com os olhos e a garganta, com os braços e pés, que mexiam em breves sapateadas de contentamento. O povo do lugar não demorou ignorá-lo pela estupidez nas alturas, somada ao mais absoluto silêncio. Hipólito nunca falava. Olhava e ria, passava e oscilava no ar. Era levado pelos meninos de sua idade para apanhar jabuticabas e mangas dos galhos mais altos, missão que cumpria com o gosto da utilidade aplicada, sem o gesto se transformasse em recíproca amizade. Nascido num dia chuvoso de maio, morreu num temporal. Caminhava pelos pastos, como de hábito, quase sempre sozinho. Dizem que veio um raio lhe buscar.

quinta-feira, 2 de setembro de 2010

Não tomou

Não tomou toda a água do copo. Seus excessos tinham outras naturezas. Virou-se à moça e, sem dizer nada, apontou para o pastel murcho que jazia na pequena vitrine de salgados. Cheirou, mordeu e olhou em volta. Garçonete. A senhora que fez? Fez que não com a cabeça. Ah! Não gostou? Não! Deu de ombros. Poderia ter sido de sobrancelhas. Verificou as horas no relógio de pulso, e era tempo de mudar de rumo na vida. Borbulhou na garganta o café frio. Engolia as últimas ansiedades desse mundo. Súbito, sacou um canivete suíço que trazia no bolso, para cortar desfeitas. Puxou a moça pelo colarinho e encostou rostos. Estúpida violência inútil da frustração imediata. Reinando sobre a vida, chegou-lhe a lâmina ao pescoço. Não te mato, sua vaca, porque a azeitona era preta. E eu adoro azeitonas pretas.

quarta-feira, 1 de setembro de 2010

Espelho da barbearia

Espelho da barbearia é sempre uma esperança. Foi num deles que vi Albuquerque. Sei que esse era o seu nome porque era do tipo que se auto-mencionava: “aí, meu sócio me disse: - Então Albuquerque, não quer aumentar sua retirada? Nossos lucros estão de vento em popa!”. Hã, hã, respondi. Havia dois barbeiros trabalhando em conjunto: um cortando meu cabelo, outro, o do Albuquerque. Em si, cortar cabelo já é uma chatice social, com o Albuquerque ao lado a coisa ganhava a dimensão de uma dor de dente. Minha autocomiseração chegava às vias do tédio de um hipopótamo enjaulado. As proporções angustiantes de meus modos se perdiam na imagem refletida à frente. E a esperança? A única e restrita esperança de uma cara melhor, ao final da obrigação, apenas punha visível um conteúdo dissimulado. Juro! Vou deixar o cabelo crescer.