sábado, 31 de dezembro de 2011

Tomaram cana

Tomaram cana, jeito, não. Um naco de chouriço, caldo de feijão. De olho no Joaquim, de olho no rabo de saia, um e outro olho. O português, bom coração, ralhava, mas servia. Pagariam, atrasados como sempre. Era o jogo, o pouco caso, bolo da eterna trama: bêbados e o dono do botequim, mais a moça que passa, irmã gêmea das canções vadias. Depois, o delírio. A lira que nunca soube de nota alguma, do poema puro ou do comércio humano. A cara de poucos amigos, pinga com groselha e pronto. Rumo pra casa porque a sobremesa foi servida etílica, sem exagero ou privações domésticas. O bar fecha a essa hora, que fazer? Picas. Pouco a pouco, para nunca chegar a lugar algum, nem enxergar divagações sem sentido.

sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

O tom retórico

O tom retórico dava-se nos silêncios. Um jorro de palavras emocionadas, e pausa. Um longa metragem de expressões faciais, e baixava a cabeça. Fazia-se utensílio do dono para uma massa cada vez mais inflamada contra as explorações cotidianas. Cair o quê do céu? Dizia manso, para sustentar o augúrio previsto. Deu-se que, de lá do meio, Celiozim se punha cada vez mais sério. Do ceticismo à revolta, da inércia à guerra. Nunca se dera à algazarra, sério como coruja, decisivo feito onça. O bicho que lhe deu ninguém nunca soube, porque se calou ad infinitum. Meio mártir às avessas, ídolo dos tantos poucos que assistiram à cena. Uma longa pena cumpre sereno, como se lavasse das mãos o sangue sujo do feitor.

quinta-feira, 29 de dezembro de 2011

Nada disse

Nada disse que pudesse estimular o ímpeto raivoso de Alice. Sobre as folgas de Pérsio, seus enlaces esparsos, firulas com as moças, essas coisas. Nem de leve mencionei o acaso que me meteu naquela festa de despedida de casado do cara. Nunca duvidei que Alice era louca, apesar da insistência com a qual ele dizia isso. Sabe-se lá com que ouvido pirotécnico ela escutaria a história? Dá certo choque quando a gente vê a coisa feita. O relógio de pulso estilhaçado, a camisa alinhada toda fora da estica, Pérsio sempre tão fino naquela cena tão adversa de invés de si. Não fui pão para o diabo admoestar. Nada. Alice roia as unhas, sentada sobre aquele mar vermelho de desolação, mas eu, discreto como um carrapato em cão peludo, só confirmei isso à polícia. Vi Alice, isso vi, sentada lá...e só.

quarta-feira, 28 de dezembro de 2011

Todos os tipos

Todos os tipos de despedidas desanimaram a futura visita a Abílio. Sua cordialidade beirara o canibalismo, especialmente depois dos longos abraços e lágrimas, quando chegava a soltar baba no rosto das tias e primas. De angelical, aquele grude mais parecia demoníaco, como se tivesse a esperança de nascer e crescer novamente, para transformar a voz da terra natal num coro de lama. Com a mãe, ora tia velha, Abílio foi o único parente que ficou na vila de São João do Pino Entortado, depois de se formar professor, na cidade próxima. Estudou a cavalo e deu aulas às cinzas, mal separando o aboio do trigo. Agora, lá, no calor cozido pela falta de água, ilustração ou gente, colocava o tédio para passear de bicicleta, e não tocava em outro assunto, exceto no da espera dos parentes para as festas dos finais de ano. Tia Dirce, no regresso, disse às filhas enfadadas: “isso não é mais amor fraterno, é sangue do meu sangue”.

domingo, 25 de dezembro de 2011

Nasceu o filho

Nasceu o filho da Mª! Blz. #Banalizou. Numa manjedoura. Kkkkkkkkkkk, qué isso? Lance de bicho, sei lá! Kkkkkkkkkkk. #prontofalei. Twitteiro? #partiu Belém. Twincidência, Gugu twitou tbm. Ptz, o cara é Cristo! #Brinks? É serious, seu lindo! Blz. Mandei um reply pros reis. Então dá um block no Herodes! Twerd, o cara. Kkkkkkkkk Esse kara vai arrasar nos followers! #Banalizou.

sábado, 24 de dezembro de 2011

Houve o amor

Houve o amor, ouve? Os dois riem intermitentes, entre os lábios, como se brindados por algo caído do céu. Essa porta não basta para impedir a visão de tanta felicidade. As barulhentas molas da velha cama já estalam aqui e ali, sem fôlego ou pressa. Imagine? É, sem dúvida, o momento da memorável admiração, ausência de suspeita, de sortilégios torpes. Há um descanso lírico no ar, ouve? O casal prestigia o mundo, sem incertezas. Anjos assentes tocam harpas ou liras nos dois cérebros. A gente aqui de fora, nessa curiosidade quase intrometida, mastiga papas nas línguas, enquanto eles, lá, gracejam. É mesmo um tédio essa vida de testemunha.

sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

Exigir encantos

Exigir encantos, tomar beijos, nesse aperto, que essa raridade se emancipe, Gustavim. E Alda flácida falava assim, mas rebolava em malabarismos, como convém às poses. Destituída de contrastes pelas enormes curvas que portava, a pobre alertava o noivo, mais afoito que bem quisto, sobre despropósitos que solicitava: coisas em falta aos celerados. Prevenida, mas condescendente, praticava as danças em prol de si, viesse a acontecer o tivesse que ser. Gustavão, nem aí. Mais diversão que gula, mantinha a moça. Mais haver do que ter. Seguiam carecendo, em condições ínfimas de estabilidade.

quinta-feira, 22 de dezembro de 2011

Pagando pesado

Pagando pesados tributos à vida, Roberto azulejava sua ânsia colecionando miniaturas de motocicletas. Um espetáculo de aflição extrema. Começou com Suzukis, porque as conhecera ainda menino, antes das Hondas ou Yamahas, êxtases da adolescência. Decifrou-as nas marchas, potências e detalhes. Desfilou bem apanhado sobre todas elas. Conquistou garotas tolas e a admiração invejosa de seus iguais. Amava tanto as duas rodas que o tempo passou feito uma carreta de oito eixos, carregado de oportunidades. Roberto o cruzou ao vento, de peito aberto na velocidade equivalente. As tolas ficaram sabidas; os fãs, ricos e poderosos. Roberto lá, exibia-se montado nas 125 cc a mais ninguém. Caiu algumas vezes; alguns pinos e muitas cicatrizes. Quando acordou, viu que dormira. E velho mototaxista, reduziu os sonhos à coleção que lhe cabia.

quarta-feira, 21 de dezembro de 2011

Corda bamba

Corda bamba e riso tenso. Num gesto de heroísmo trôpego, o garçom tentou salvar a reputação do formal gerente, cuja única taça de vinho tinto que degustaria na festa foi abaixo da bandeja. Enfronhado no incidente, o serviçal girou ligeiro a mão errada, distribuindo aos comensais fartos respingos do líquido roxo. Seria em si um fato tosco, não fosse a disposição insana do vice-gerente, que sacou da arma e mirou o moço. Subvertida aos pés das mesas, a festa ganhou dezenas convivas de quatro, num coro de “deixa disso”. Célere e surtado, o garçom sumiu em sucessivos segundos. O vice, entretanto, foi promovido a gerente na filial de Indiaporã. Dizem as más línguas, que sem competência para o cargo.

terça-feira, 20 de dezembro de 2011

Nutrir-se do drama

Nutrir-se do drama era a parte ínfima de sua enorme fome. Da farsa se alimentava também, e algumas vezes do gozo, do qual já duvidava, pelos tantos disfarces que praticava sonsa. Quando se casou com Celso dizia-se pura. Separada, usada. E foi somente no enlace com Silvio que se perpetuou dissimulada. Mãe de dois rebentos párias, criados ao modo que se lhe fizessem úteis, segurou-os em casa até titubearem plenos, quando já não ouviam os clamores do mundo. Silvio pouco tom dava àquela música minimalista: provedor de enganos, acolhedor de embustes. Ela, enfim, pode pertencer à nata da elite urbana, com a qual aprendeu a fazer docinhos em prol do Lar das Criancinhas Portadoras de Bipolaridade.

segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

A rocha avulsa

A rocha avulsa despencou, pendeu a encosta e impediu o trânsito de Leôncio, que andava às tontas com seus avatares debaixo do sovaco. Parecia brejo, mas era precipício. O que representava a luz era uma lanterna; as trevas, toras de carvão. Dali, botar defeito era besteira, conduzir em frente, impossível, então tentar saltá-la, por pressuposto, era o que restava. Leôncio era de lua, com musculatura tensa e um ínfimo fiozinho de suor sempre lhe escorria à testa. Manipulava os joguinhos eletrônicos com trejeitos débeis e a aflição de náufrago, cheio de sustos. Jamais jogara com aquele famoso adversário, morador do alto do morro. Temeu mil medos, vacilou vezes seguidas e rendeu-se aos arrepios limítrofes da aflição plena. Aquela rocha, maldita, definitivamente impediu-lhe de chegar à próxima fase.

domingo, 18 de dezembro de 2011

Do vento

Do vento não se ouvia outro sopro a não ser o do uivo aflito. Certo dueto com o gato no cio, que do muro mais alto chamava amores. Chovia delituosamente, e a água que emborcava nos bueiros não deixava margem ao conforto... aquele som grave e gutural. Suposto terceto. O que se diria se do quarto acima, só abaixo do sótão, surgisse o grito agudo da louca, que morava há anos naquela casa erma, sem que ninguém jamais a visse? O quarteto, assim, poderia ser o ápice de uma ópera à beira do macabro. Tiros, então, com seus sons estampidos, dariam conta de um quinteto para o encerramento. Mas certamente, todos juntos, não caberiam em poucas linhas.


sábado, 17 de dezembro de 2011

Não foi pelos

Não foi pelos ouvidos que percebeu a fala branda de Pedro. Pouca humildade, por vezes explícita. Um gestual à mercê das vistas. Parecia alongar os braços para se apartar dos próximos ou estabelecer espaços. Atrevimento comedido era o que poderia ser notado, naquele hábil requinte do volume baixo. Teresa à distância conveniente o observava às vezes, entretida em seus desejos de ideias vagas, quando se deu o arrepio. Como assim? Perguntou-se. Não havia hóspede para sua hospedaria, nem curvas para a sua retidão. Um relance. O olhar. De Pedro, lá na frente de seu espaço reservado às próprias cenas. Misteriosamente, como um clarão em campo escuro, ele deixou a roda e se encaixou no rumo. Caminhou lentamente até Teresa, e se puseram em colapsos. Viveram, depois, felizes para sempre.

sexta-feira, 16 de dezembro de 2011

Tantos impedimentos

Tantos impedimentos que o senso se foi. De nascença vem essa ojeriza às ordens burocratas: para quê esquentar além, se perde-se um tempo enorme esfriando a mamadeira? Assaz se faz essas incoerências sem ciências. E deve ser obra do demônio tecnocrata esse medo que não se dispersa nos inseguros cartorários. A compulsão pelo carimbo, prazer por notas de rodapé, desejo orgástico por xis nas alternativas mínimas, êxtase às filigranas da lei. De tempo em tempo, inversões, como método para se evitar o óbvio do acesso comum às essências, e o consequente desprezo aos tecnicistas. O próprio tempo gasto em declará-lo ocupa insano o espaço de outros versos... ou das frases, que ditas com a pretensão das artes, quem sabe tornariam o mundo mais compreensível?

quinta-feira, 15 de dezembro de 2011

Conhece minha

Conhece minha devoção, Edileuza. Quando por ela faço alguma coisa é para engrandecê-la. Ninguém é mais indicada que você para acomodar esse pensamento. Falarei e você vai ouvindo. Teria muitas pessoas para ouvir-me, mas você é mais célebre, austera. Ainda que para completar as frases, quando me foge o pensamento, uma outra palavra, você não seja, assim, um primor de elegância, sempre espera pelo meu raciocínio. Gosto disso. Até das repetições você não reclama. Quem, senão você, Edileuza, é mais merecedora desse proselitismo. Bem, foi em novembro, me veio aquele desejo de escolher, entre as senhoras mais distintas da aristocracia brasileira, aquela que pudesse entender minha volúpia verbal. Daí, você, Edileuza. Dá pra entender?

quarta-feira, 14 de dezembro de 2011

Febris espasmos

Febris espasmos chacoalhavam os braços daquele homem, deitado há dias no leito de enigmática doença. Às vias da regra seria, quem sabe, uma malária ou qualquer dessas moléstias tropicais. A moleza serviu de sinal, mas o diagnóstico não pode se completar, porque Idalice, que era quem lhe cuidava da vida, foi embora na véspera dos primeiros sintomas. Devorado, sem decifrar o motivo, ele pensou primeiro num gestozinho chantagista, mas aquela ausência, horas depois, já lhe enchia de sintomas. Que fora canalha com Idalice bem sabia, como não duvidava que bêbado quase ninguém lhe compreendia, mas daí a Idalice ser vista por outros olhos havia um mar de inquietações, uma inflamação da alma ou irritação do cérebro. Conjunto de dados que pouco contribuía para sua cura do mal do amor.

terça-feira, 13 de dezembro de 2011

Breve, inútil

Breve, inútil e leve, a frase que Dirce disse, libidinosa, encheu o querido de dúvidas. Por qual nó queria atar-lhe, se daquele jeito já estava tão bom? Pontes para ligar amores quase sempre são mudas. Faladas, falham. Coincidia com o incidente a crise de manias duradouras pelas quais o querido passava. A maior delas, a do sumiço de desfeita ao mundo, com relances eremitas e reviravoltas à revelia do senso comum. Alfinetá-lo com coisas do sexo, ante a materialidade então ignorada, era como tossir durante o solo, no concerto para solo e orquestra. A consciência do querido desafinou, com suas fugas e pavores. E Dirce ouviu, fora do tempo e do trecho musical, que não haveria redenção. O querido se quedou, sem mesuras ou gran finale, com a partitura partida.

segunda-feira, 12 de dezembro de 2011

Para subir

Para subir na vida, como diz o outro, deu um dedo ao papo e nenhum ao trabalho. “Tiro o meu”, grasnou. Entre expressões óbvias como “guerra é guerra”, “olho por olho, dente por dente”, comprou a primeira casa, processando o milionário por assédio moral. A segunda veio da indenização, pelo atropelamento sofrido. Uma separação da mulher rica, lhe conferiu as flautas e vinhos, e por consequência as risadas. Não tardou em tornar-se exemplo, depois de esconder a santa da matriz, e aparecer com ela, meses depois, munido de uma longa história de resgate heróico. De bem com o povo e com Deus, o que mais poderia querer na vida?

domingo, 11 de dezembro de 2011

Torceu o nariz

Torceu o nariz e desligou. Vida de fênix sempre tem cinzas, além de outras pertinências. Só quando mudou da sala para a varanda, Bebeto abriu a guarda, sacada de algum baú da memória, junto com a rolha do vinho. “Enquanto me fazem de fantasma, vou assombrando essa canalha”, disse pausado, antes do primeiro gole. Jamais cedera às sumidades que, ao custo de brechas ou invejas, tiravam-lhe espaços ou chances de ascender na carreira. Que tocassem os solecismos, reisados, pedras, britas ou aleijões para a sobrevivência. Bebeto viveria sem ser vítimas dos contorcionistas medianos. A fumaça do charuto cubano era testemunha de sua indiferença ao ordinário. Cada vez que renascia atemorizava mais as almas vulgares. Aquela ligação certamente não mudaria o rumo de sua nova vitória iminente.


sábado, 10 de dezembro de 2011

Cebola na salada

Cebola na salada de frutas, macarrão na pizza, açúcar no churrasco. Odenir tinha augúrio do erro, e presumir que pudesse acertar naquele seu romance com Lena seria como acreditar em duende manco. Sustentando-se nos trâmites das balas de menta, cinema e festas, o namoro sombrearia o óbvio de relação estável, mas como conter os ramos nascentes de sua árvore torta? No velório da tia surda, Odenir olhou de esguelha para Selma, amiga da prima órfã. Microincomodada, Lena arriscou um beijo, ineficaz. Deu a mão, o braço e atenção plena, à toa. Quis mudar de lugar, Odenir não. Com a lógica do ciúme e ódio, aplicou um safanão no namorado galanteador: - Fique aí com seus mortos, cacoetes e baixarias, vou rezar pra outro santo! Selma a seguiu, perdidamente apaixonada... à primeira vista.

sexta-feira, 9 de dezembro de 2011

No olho d'água

No olho d’água havia sequelas de bizarras coisas contemporâneas. Uma carcaça de computador, algo como peças de eletrônicas tralhas, trânsfugas plantas urbanas que, ao que pareciam, um dia haviam ornamentado algum jardim. Lá, afinal, tratava-se de uma mata. Lugar estranho a tantos avessos, cujos acessos pouca margem davam à imaginação. Como teriam parado ali? Ubíquo dilema. Ambíguo problema. A ideia, no fundo, era apenas passear a pé pelas arestas da cidade, onde a esperança que há de uma quina de bucolismo pudesse apaziguar a alma e encher os pulmões. Deu tosse.

quinta-feira, 8 de dezembro de 2011

Disse que sim

Disse que sim, Glaucí era a mais bela mulher que tinha. Sem dúvida, que Tornado era o melhor pastor alemão que dispunha. A mais rara orquídea havida estava na mesa da sala: uma Cattleya labiata lilás, arroxeada. O travesseiro grosso, de penas de ganso, superior a outros, inigualavelmente seria superado. E o isqueiro de aço envelhecido? O máximo! Havia o tapete de algodão, urdido com linhas retas, ton sur ton, artesanalmente: um show! As poucas coisas de Umbelino, a mulher, o cão, a flor, uma cama, um isqueiro e um tapete, era tudo o tinha. Mas, indiscutivelmente, não havia vida mais feliz e grandiosa que a dele. Era só lhe perguntar...

quarta-feira, 7 de dezembro de 2011

Amanheceu seda

Amanheceu seda. Fez-se brim. Entardeceu renda. Na vastidão daquilo que podia, Cleber quis enfrentar o destino, a aguardá-lo. Tendia a zero qualquer observação que lhe fizessem, como a de Vânia, homérica nos detalhes, ao lhe sugerir frios tons de azuis ao vermelho pretendido. No alto da costura, Cleber mantinha o ponto maduro de sua intenção fashion. Chuleou e andou para a observação da amiga, que entendia palerma e lerda para as coisas da estética. Atingiu o tecido no matiz que lhe convinha mais, compunha os planos aos panos transformados. Nem a mixórdia dos bastidores impediu os olhares curiosos dos demais estilistas e modelos. Ninguém que viu o desfile disse um a. Pura inveja.

terça-feira, 6 de dezembro de 2011

Tanta leitura

Tanta leitura e deu nisso! O dobro do outro e apanha! Alto feito um bambu e vê se alcança? Forte como um touro, mas trabalhar que é bom... A avó não era lá de muito estímulo a Gabriel, o mais velho dos netos, cujos gestos ausentes enfureciam a velha. Nem se pode dizer, aqui de longe, quem detinha a razão ou exacerbava nos gestos e pertinências. Viviam às turras, promoviam males recíprocos e quando o tempo permitia ainda se davam ao luxo de vexarem-se mutuamente na presença de amigos, parentes ou desconhecidos. Prevendo sortilégios, ambos atacavam. A velha, na velocidade lenta e constante que os anos lhe permitiam. Gabriel, pontual, mas pouco prático, bem de acordo com sua lerdice. Nos sonhos, até imaginavam a morte um do outro, porém se por algum motivo ficassem muito longe um do outro, a saudade entrava na briga, incontrolável.

segunda-feira, 5 de dezembro de 2011

Com uma grandeza

Com uma grandeza que não cabia no corpo, o espalhafatoso Horácio mal meditou para afirmar que o céu já lhe era uma garantia... divina. Metafísico até os dentes, tatuou santos pelas costas, cruz no peito e um passaporte imaginário no corpo caloso do cérebro, assinado por Deus. “Nada acaba acontecendo como a gente imagina”, ainda vaticinou Dirce, a pessimista com que ele convivia por exclusão, impossibilitado de se mudar daquela pensão infecta, por questões financeiras. Pois o crédulo homem tropeçou sobre a tábua em gangorra, na ponta oposta da qual estava a lata de pregos. Ao voarem pelo impacto, os pequenos e pontiagudos pedaços de metal atingiram em cheio a turminha da escola que passava pela calçada: três crianças cegaram, uma morreu e quatro foram internadas com perfurações pelo corpo. Dirce, em êxtase, disse “eu disse”, cheia de convicção.

domingo, 4 de dezembro de 2011

Batata!

Batata! Sempre um pateta. Quatro goles depois, e pronto. Não consta nas legendas, porque não aparece nas fotos, quase sempre absorto em algum dos milhões de cantos, fora de hora e do ângulo. Astro errante, que vagueia por certa privada ou pé de árvore, na busca da urina eterna em festinhas sociais, bares ou leves porres. Suspeitam de incontinência, mas os úmidos ureteres alambicam a bexiga frouxa assim que o trago passa a garganta. Não, não mija pra trás: o líquido é fogo. Surge abundante em vezes, ainda que insignificante em quantidade: feito o cão que demarca ou a garoa abobalhada antes da chuva. Às vozes que clamam respeito e higiene, lamenta com a atávica insensatez dos tolos: “não deu pra segurar!”.

sábado, 3 de dezembro de 2011

Coou o frio

Coou o frio no filtro de papel. Há minutos, já nem tão palerma de sono, contorceu os lábios num assobio desafinado. Era uma espécie de pausa ou ócio. De busca tosca com a ordem do mundo, em sintonia com a emissora de rádio, que veiculava modas incompatíveis com o decorrer do dia. Naquela hora da madrugada, fazia as vezes dos pensamentos estratégicos. Traçava os planos de buscas aos tesouros, cujos mapas sempre indicavam o rumo da fábrica: armado com martelos, formões, plainas e pregos.

sexta-feira, 2 de dezembro de 2011

Dialeto bem

Dialeto bem que utilizou. Tentou minimizar a culpa com um “vacilo do mano”. Também deu sorte quando a doutora o xingou de bipolar. Fazer o quê? “Coisa da mente”. Tão misteriosa que a própria razão desconhecia. Melhor mesmo foi o “fausto consumado”: um trocadilho que o advogado de defesa mandou ver para a redução da pena, assegurando aos jurados que ele não era o diabo que pintavam. As últimas conseqüências foram inevitáveis: santidade zero, delito um. Placar razoável, sem a pecha de goleada, que resultaria aí em cinco anos de reclusão. Bacana! À luz da fresta que lhe cabia iluminar, foi a maior glória. Melhor sentença que daquele burguês otário, psicólogo famoso, que ele mandou pro saco com dois tecos do tresoitão. Porque o cara era um mala!

quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

Conspiram?

Conspiram? E, antes de falar, sustando em tempo de não dar margens a ouvidos outros, Vasconcelos olhava de um lado e de outro, depois sussurrava: - Todos têm a intenção de derrubar o doutor Afrânio... Resvalando no temor, ainda insinuava uma pífia e vaga reação: - Precisamos mexer os pauzinhos! Então, com temperatura antártica, punha-se para o prumo do corpo, impostava a voz e lançava dúbias frases a quem quisesse escutar: - Não se pode dizer que o doutor Afrânio seja, assim, um poço de competência, mas tem resolvido com justiça as pendengas do financeiro. E quando todos lhe lançavam olhares de proveito ou ausência, lavava as mãos: - Longe se seja o céu. Cheio de tiques, fricotes e faniquitos, com os quais movimentava sem rumo os papéis sobre sua mesa. Era o oitavo chefe que passava. Vasconcelos, meio nem aí, sempre esteve aqui.

quarta-feira, 30 de novembro de 2011

Desdigo o que faço

Desdigo o que faço. Matar frangos não é coisa do interesse de ninguém. Falo que trabalho lá, no frigorífico. Dou o horário e tudo: das sete às cinco horas da tarde. Sei lá quantos foram ontem: uns mais de mil. Eles surgem em fileira, com pés já presos e de cabeça para baixo. Só passo a faca. Dizer que não sinto um troço também não digo. Nos primeiros, depois... é, é meio mecânico. Vou pra um lugar ausente que não sei onde. Viro só braço, faca e sangue. Sempre tem uns doentes querendo meu emprego. Já, eu, procurei evitá-lo, não deu. Acho que logo, logo me pareço com um dos frangos que executo, não dá para adiar o destino. Tomara o chefe perca a cabeça também. Não, não desejo a ele o mal dos frangos, só uns equívocos. Se ele errar, quem sabe eu consiga a promoção para empacotador?

terça-feira, 29 de novembro de 2011

Mil respostas

Mil respostas esticavam a voz de Victor, quando nem se ofereceram perguntas para que explicasse as preciosidades de sua vida contábil. Um hiato enorme separava os ditos das inúmeras possibilidades de compreensão. Por que ele se defendia tão afoito de tão vastos insultos, se apenas o que quis saber Celeste foi como ia sua vida? Valha-me a Virgem Santa, bocejou o cérebro já quase surdo da moça, molestado no humor. E não cessavam aqueles fluxos de substância, fragmentos de histórias tristes, nacos de “haja saco”, porções de desalinhos com a vida. Victor era um néctar de fatos notáveis que ninguém percebia, um engarrafamento de tino e juízo, esconderijo de benignidade, segundo ele próprio desprendia. Até que se disse meio sozinho. E foi quando Celeste olhou para céu e pode respirar, para seguir seu rumo e retorquir apenas: “compreendo!”.

segunda-feira, 28 de novembro de 2011

Falada

Falada, a Chafira. Não porque turca atônita com as delicadezas dos homens latinos, mas pelo kibe que faz. Ficam vermelhos com aquele prazer, machos e kibes. Trigos estufados à custa de uma umidade contínua, intensa, na medida da massa. Saltam aos olhos, quando crus; ou assim, assados na manteiga; quem sabe, estarão fritos. Há maneiras e gestos para enternecer o ponto, com mãos de mágicas e compenetração de sapiência. Idas e vindas com habilidades múltiplas, harmonia e inclinação vital com um olho na forma, outro na fome que fará cessar. Só lá nas faces reentrantes, no pós gula e já engolido, surge a picante malícia, que excita ou irrita o paladar abastado: o gosto, enfim, é o de hortelã.

domingo, 27 de novembro de 2011

Meus amigos

Meus amigos vivem indo para céu. Não sei o porquê desse gerundismo constante, dessa vontade exótica de transformar seus rostos em espécies de camafeus, fazer panquecas de saudades a cervejadas vãs. Alguns só ameaçam, e aí compreendo. Idade, essas coisas. O mal de meus amigos sempre foi a maneira radical no convívio com a Terra. Quase todos, com exceção dos conhecidos. Estes, às vezes, também sobem, mas no caso a compreensão substitui o camafeu. Sobra consolo quando falta proximidade. Um dos últimos, falei com ele há horas, e já agora me parece que sonhei apenas. Nunca mais me faltará em arquétipo, mas em pupilas, aí sim. E nos jogos de Natal... amigo oculto, secreto, essas coisas.

sábado, 26 de novembro de 2011

Dormiu com Proust

Dormiu com Proust, cheio de coisas. Pequenas manias do mau estado, dores do excesso de zelo, contradições da perspicácia. À irmã, que o acordou para o trabalho, pediu licença para a profilaxia. No café, beijou a mão da tia, entre mesuras e agradecimentos pelo pão na chapa. Levou aos lábios uma colherinha de chá, a sorveu alongando o dedo mínimo da mão esquerda, enquanto gesticulava com a direita para comunicar a todos o revés no emprego. Ao olhar reprovador da mãe, fez que sim com os ombros, tornando inofensivo o desastre. Pensou tê-los convencido do infortúnio iminente, e de certa maneira o fez, mas foi justamente o primo rude, da ponta extrema da mesa, quem enxergou, naquela situação toda, o grande engodo: - “É fácil falar de mim, difícil é fazer o que eu faço”, retrucou ao parente fino, como um para-choque de caminhão.


sexta-feira, 25 de novembro de 2011

Aproveitar

Aproveitar o seu humor aproveitaria. Já se valera dele antes, quando o tédio da fala maldizente de Umbelina narrava que mulheres sãs disputam entre si cada espaço que as cerca, só a doentes amam. Foi quando a chamou de “amor”, “amada”. Ambos riram, porque era sempre mais útil, nas situações aborrecidas, do que ouvir a inteligência fina da conhecida. Poderia até gracejar, em outra circunstância, mas ali não seria entendido e poderia parecer tosco, embora pouco se importasse com uma eventual grosseria, entre as tantas indelicadezas dissimuladas que se apresentavam naquela logorréia de intelectuais estreitos. Chamou o garçom e pediu então uma cachaça. No tom cult e goles curtos, trataria sua persuasão íntima, e quem sabe acabaria achando todos ali muito interessantes?

quinta-feira, 24 de novembro de 2011

Metafísica!

- Metafísica! E ao ouvir a expressão do diretor, dita de maneira tão perplexa a propósito do professor de filosofia que explicava os atributos de Deus, o velho professor de educação física ordenou trinta flexões abdominais a cada um de seus alunos. O equívoco jamais foi entendido, porque ninguém reparou. Suados e atônitos, os jovens passaram a tratar com desprezo o professor carrasco, pela ação inexplicável. Apenas o jovem Adiel, no entanto, foi ter com o diretor para comentar a súbita determinação ocorrida na aula de educação física. “Por Deus, professor, quer matar os alunos?”, a autoridade indagou ao velho professor. Sem entender o que seria uma contra-ordem, o idoso homem apenas retrucou empalidecido: “Mas foi o senhor mandou meter física!”.

quarta-feira, 23 de novembro de 2011

Nesse caso

Nesse caso – disse Aderbal – não há necessidade de chamar o doutor. Demasiada assombrada, Inês olhou para os cacos e para o banco do carro, onde a ridícula história deveria começar. Juram que Juliana se suicidou às cabeçadas no para-brisa dianteiro do fusca. Juliana sempre foi determinada, e os elogios fizeram sentido. Tosco, mas próprios. Sempre assegurou sua capacidade de morrer tapando o nariz com os dedos, ninguém a levou a sério. Seus simulacros de explosão pela degustação contínua de feijão tampouco foram capazes de sensibilizar os amigos. Agora, estão aí, Inês e Aderbal, com caras de poucos amigos. Pelo menos uma a menos, com certeza debitaram, com esse ar blasé e relapso...


terça-feira, 22 de novembro de 2011

Na estante

Na estante, o vaso. Uma imagem de um dragão chinês, cerâmica xavante, galinha d’angola e esculturas em pedra sabão que Cortázar, Bolaño, Borges, Unamuno, Góngora e Cervantes jamais imaginaram. Era dos hispânicos e latinos a estante com tais heresias. Não que a tivessem adquirido em períodos distintos. Pelo acaso se juntaram a ela, e conviviam bem, cada qual com seus enredos. Nunca se atreveram a jogar o xadrez no tabuleiro de barro, pois tinham destinos distintos aos seus reis, bispos, torres e cavalos: peões de ideias. Ali, lado a lado, estavam prontos a explicar seus pontos, sem os entregar. Curiosamente dependentes de alguém que lhes distinguisse dos vasos, dragões, esculturas ou das galinhas d’angola...

segunda-feira, 21 de novembro de 2011

O contraponto

O contraponto do sax, em clima sentimental, soprava pela milésima vez nas caixas acústicas da sala. Não era Ellington ou Coltrane o motivo, mas Márcia, a balconista da farmácia, que se alguma vez ouvira um jazz nunca soube. E Lélo, lá. Desmanchando-se nos acordes de In a sentimental mood, entre aspirinas e emplastos para a enxaqueca, paixão platônica e sequilhos de nata. Haveria que doer mais, para dar razão ao retorno à farmácia. Sucumbiu então (e novamente) à dor. Foi. Márcia entreolhou o colega farmacêutico, quando Lélo atravessou a porta. Estava abatido de uma noite inteira de jazz, marcado pela fumaça dos cigarros e diarréico das natas. Pediu mal e tímido um fortificante bom, e a ouvir a voz de Márcia, tudo o que pode ouvir foi um zumbido, com o solo de Coltrane... longínquo e inacabado.

domingo, 20 de novembro de 2011

So-be-ra-na!

So-be-ra-na! A doidivana Elza Maria gritou à elegante Cleuza Silva e Sá, que pairava na pista da moda como gaivota em êxtase ou urubu em pausa. A passarela iluminada agregava algo de brega àquela tarde de senhoras, doadoras de dós aos pobres, carentes, doentes & deficientes. De difícil, exceto as horas de maquiagem, apenas os pedidos aos avaros maridos, aos novos enriquecidos ou, e principalmente, aos falidos. “Para fazer o bem pouco importa nossa vida, nossos problemas com os psicólogos, nossa dificuldade em conseguir uma boa faxineira, nossas limitações no crédito do cartão. A gratificação é sublime”, declarou sublime Elza Maria, à colunista social que, também colaboradora, oferecia desconto para veiculações beneficentes. A única mentira que ouviu ali, saiu da boca da própria Cleuza Silva e Sá, ao descer do palco: - “Men-ti-ro-sa”, desmanchou-se dissimulada à amiga que lhe chamara de soberana.

sábado, 19 de novembro de 2011

Um corre

Um corre atrás, cerca daqui, cutuca ali, bate de lá, marcou a luta entre Eliseu e a barata. Contrário a ele, homem reto e claro, o inseto ziguezagueava pelos cantos obscuros. Só se via a sombra de Eliseu projetada nas paredes, de chinelo em punho e nada do bicho. Depois, o spray, que envenenava o ar. Mas tarde, o agastamento do homem, estirado à poltrona com o enfado dos derrotados, entregue à barata. Ninguém nunca soube o fim do suplício ou sequer quem sofreu mais entre aqueles dois. A barata nunca conhecera Gregor Samsa, e Eliseu que, sim, o conhecia há tempo, conseguiu o subterfúgio que precisava para desistir de vez dessas missões domésticas.

quinta-feira, 17 de novembro de 2011

Boiando na bacia

Boiando na bacia o barquinho de papel seguia o rumo do vento lento. À noite não se podia vê-lo, mas estava ali, restrito às encostas de alumínio, sem destino outro ou praia próxima. A esquadrilha inimiga surgiu pela manhã, formada por dois pardais vulgares como piratas, ávidos por sorver às gotas aquele oceano. Cada bicada afoita na água mansa era um maremoto ao plácido barco, que se inclinava de proa à popa, como se compartilhando com as aves, pudesse bicar a bebida líquida. Um jogo de vida e de morte, vida e morte, vida e morte até que a água lhe adentrasse. Úmido, tênue, desmanchando em suas dobras emborcou e naufragou, lentamente. Virou uma folha de caderno, que boiava com a frase escrita em letras tortas: “aproveite e faça um barquinho”.

quarta-feira, 16 de novembro de 2011

Água na boca

Água na boca bem que sentiu. E não era afogamento, era fome. Boquiaberta quem ficou foi a moça do caixa, ao ver-lhe as babas escorrer pelas laterais do queixo. Dava certa repulsa, mas pena também. Tudo ali era tão caro – ao estômago e ao bolso, que àquele rapaz faminto só caberia olhar e babar mesmo. Educada, porém sarcástica, a jovem olhou para aquele homem parado defronte a vitrine de salgados finos: - Você vai querer alguma coisa? Sim, era evidente que ele queria. Não, seria óbvia sua resposta. Ele deu com os ombros: - Precisaria de dinheiro para querer... “É”, disse a caixa. O rapaz virou-se e seguiu o rumo da rua. Precisou ajustar as calças, ajeitando o cinto puído.


terça-feira, 15 de novembro de 2011

Tanto chovia

Tanto chovia, que Lourival nem levou a sogra. Disse à enfermeira que não combinava sogra com barro, nem com hora marcada. “Aquilo é um atraso só”, falou à moça, que havia perguntado primeiro da velha. Do sítio à cidade nem era muito longe, mas Lourival quis sentir sozinho aquele perfume adocicado e sutil da água nas folhas, sem ouvir reclamações quanto ao vidro dianteiro do fusca, que há anos não fechava. Seguiu inclinado à natureza da vida, “de tocar em frente”, deixando as questões outras para serem revistas com mais calma. Que se danassem os pretextos, quando urgia o prazer. Bem encafifou-se ao chegar ao doutor, porque a paciente era de fato a mãe da esposa, mas de palpites e cabelos brancos, já andava cheio.


sexta-feira, 11 de novembro de 2011

Ler romances

Ler romances e dirigir empresas eram as atividades de Horácia. “Também, com um nome desses, só pode estar de gozação quando manda a gente dobrar os turnos”, dizia a operária aflita. “Também, com um nome desses, só poderia ficar lá no quarto, isolada, mergulhada nos seus livros”, argumentavam as amigas, ante as consecutivas recusas para um passeio ou chope. Todos, no entanto, retorceram os olhos naquela semana na qual Horácia passou a vestir-se estranha. De súbito, dispensou as funcionárias para que descansassem. Foi à matriz da empresa e desancou os chefes. Celebrou com as amigas suas rimas péssimas e louvores à honra. “Coitada, com um nome desses, é lógico que não entenderia direito o Dom Quixote”, disse alguém.

quinta-feira, 10 de novembro de 2011

Viu Vilma

Viu Vilma se aninhar na cama e pensou besteira. O cheiro vinha da caixa de sabonetes, não de Vilma, mas com os olhos no ponteiro de minutos do relógio rosa imaginou um tempo suficiente, sob perfume agradável. Passou os dedos no rosto firme e imóvel da amiga, feito seda farsante ou veludo transgressor. Havia é óbvio, abaixo da face, um corpo de contornos fáceis. Debaixo do insignificante lençol, prováveis delícias. Além do estático, uma infinidade de movimentos possíveis. Algo lhe dizia da insensatez do gesto, afluentes pecados marchavam em direção à sua ética. A solidão até (ou talvez) lhe seria maravilhosa, não fosse a visita de Vilma justamente naquela hora. “Que bonitinho! Zelando por mim”, ela ainda lhe disse, antes de sucumbir aos sonhos.


quarta-feira, 9 de novembro de 2011

Bancário oficial

Bancário oficial do Brasil há mais de década, tinha veia vampiresca. Não que gostasse de sangue, não. Tinha horror, especialmente porque quase sempre incidentes com sangue o impingiriam algum trabalho. Adorava, sim, sugar as paciências dos clientes do banco onde atendia. Concursado, sua garantia de emprego era o infortúnio das vítimas. Com absoluta verve burocrática, abundava criatividade nas filigranas da lei, e fazia velhas voltarem depois que obtivessem um carimbo tal (em cartório), no óbvio documento; jovens, depois que trouxessem certidões com firmas reconhecidas de seus responsáveis; mulheres, homens e gays, depois que refizessem a carteira de identidade, cuja fotografia já estava antiga. E não era nada aleatória a sua meta: ouvir dez desaforos ao dia. No nono, já exalava felicidade, esperando a próxima vítima. Coitado de quem não lhe xingasse... há muitas filigranas e ótimas leis para punir os distraídos.




terça-feira, 8 de novembro de 2011

Só a vila

Só a vila Santa Providência tinha sido atingida. Tudo o que havia de bom tremeu na hora da chuva. O alagamento foi lento. Feito o ritmo da bebida daquela hora, que tomavam Zé Tirso e Manuelzinho, na venda do Tônio... foi subindo, junto com o descrédito de todos os que assistiam. Em horas, havia um rio sobre as secas toras dos fogões à lenha. A menina bebê morreu e se foi, nas águas, pra um céu. Os horrores se perderam naquele espelho de moldura alaranjada, que se manteve dependurado durante anos na parede do bar, refletindo apenas o presente, sempre.


segunda-feira, 7 de novembro de 2011

Assim fiquei

Assim fiquei depois do cuspe daquele cachorro marrom. Deve ter inoculado raiva em mim. Se bem que, às vezes, penso na possibilidade de autoria daquele mexilhão alaranjado que comi na praia, nas férias fervescentes de dois anos atrás. Claro que não descarto o dardo que Augusta jogou fora do alvo, bem aqui, no bico de minha omoplata. É... tem aquela vacina anti qualquer coisa do postinho público, a baba de Adélia, a buchada de bode gastronomicamente contemporânea brasileira, o cisco no olho da queima da cana, a radiação que vazou no terremoto do Japão. Descartei o papel higiênico da padaria porque nada ficou provado contra ele. Situação idêntica a da bicada da andorinha migratória, cuja saúde continua imaculada depois de seu regresso ao Canadá. Mas o médico já me receitou esse anti-histamínico, e minha serotonina está melhorzinha. Anda altíssima.

domingo, 6 de novembro de 2011

Queria viver

Queria viver consigo próprio, sem testemunhas, livre do amor, do ciúme, ódio esperança ou temor. Assim mesmo, feito o Frei Luis de León, humanista e poeta espanhol. Quiçá, compor odes! Até que apareceu Odete, feito a de Tatit, toda enigmática. Completamente diversa, conversa vai, vem, muda o rumo da prosa. E ama, enciumado, raivoso, esperançoso, medroso. Pensou compor a dor do cotovelo esquerdo, ao ritmo pop dos cornos urbanos sobre a cabeça, feito os aviões de Veloso. Escondeu-se na fumaça do incenso e mergulhou no aquário, feito o da Era que um dia foi. Grande escritor! Com todas as frases para serem escritas, feito um monumento na praça moldado por um escultor farsante, sob a encomenda de um prefeito corrupto. Muito distante de León...