sexta-feira, 30 de setembro de 2011

Enguiço

Enguiço, pero, experiente. O vidreiro Hernandez sugeriu mosaico de santo a flores ou pássaros. Como se comportava assim, se o padre queria assado? Disse que sabia ver antes as perfeições do pedaço; santo fosse, e seria a curtição mor da paróquia. Imolaria o vidro, se São Sebastião; ou abriria concessão a um ou outro bicho, se Francisco. Com dor na cárie do molar, Frei Rogério malhou-o: “deixe os pássaros, tire o Francisco!”, disse taxativo. Mexeu com o garbo do teimoso Hernandez, que com fome, duro e pobre, aceitou o trampo, mas jurou de pés juntos um justiçamento das alturas. A quem buscasse a padroeira, deu arara amarela, azul e parideira, repleta de filhotes curvos com bicões aduncos, sem penas. Na cúpula avistava-se um urubu, até aceitável, não fosse a cara de sádico.

quinta-feira, 29 de setembro de 2011

Um céu

Um céu pregado com tabuinhas e o Sol feito com calota furtada do fiat do tio, sob o disfarce amarelo-ovo. A cascata descia aos pingos pelas conchas das três, depois de passar pelas escumadeiras, todas obtidas sorrateiramente da avó materna, da vizinha da direita e da mãe da amiga da irmã, respectivamente. Na parede lateral a almofada verde virou copa de uma árvore estranha, cujo tronco de cabo de rodinho e os frutos de bolas de jornal nem fizeram falta à cunhada, sempre entretida com as coisas das novelas. A bacia lagoa, a pá de lixo remo e o sofá barco causaram um pouco de surpresa à mãe, já um pouco habituada àquela esquisitice, mas desdenhosa. Só ele, Marco Pólo, sabia a grandeza exata daquele mundo, igual a todos os outros mundos na essência dos furtos e extravagâncias, mas mais pródigo em esquivança.


quarta-feira, 28 de setembro de 2011

Falácias flácidas

Falácias flácidas essas dos egos poucos lúcidos. Na dúvida, Fidélis endureceu. Quando Laurinda lhe chamou de analfabeto, procurou um terapeuta. Este, a exaustão, já não conseguia mais lhe pedir que contasse mais sobre si ou sobre isso ou sobre aquilo, então Fidélis considerou Freud um infame. Voltou à Laurinda enérgico e decido: - “Sou o que sou e você que se dane!”. Danou-se, ele. Em complô explícito com o terapeuta atônito, pôs-se a esparramar que Fidélis, agora, era mais que um egoísta besta, tomara-se como o centro de todo o interesse do mundo, lançando-o à solidão conspirada. Enxergando apenas a si, falando com ninguém, pois todos o impeliram para longe, e cansado de tanto se auto-ouvir, Fidélis mudou-se para uma cabana erma no morro mais distante do município. Andou feliz por uns tempos, porque tinha o Sol que lhe servia e a Lua que lhe escutava. Depois, ninguém mais soube dele; não interessava.

terça-feira, 27 de setembro de 2011

Ioiô girou

Ioiô girou, mas se deu à falha. Puxa, burra, puxa, ainda gritou descompassado Arcângelo Celestino. Um capeta, esse menino, resmungou a mãe da menina mandando que parasse. Índole dele, não apararia arestas. A coitada com corda enfiada no dedo não se conteve e armou berreiro. Cloacas da paz aparente, que se foi sem mais nem menos. A genitora deu lhufas para a filha, partiu com ferro e fogo para os costados de Arcângelo. Deu de ponta de tamanco fino, como se quisesse lhe perfurar pulmões e asas, se fosse o caso. O menino suspirou profundo e caiu à frente. Debateu-se convulsivo como se fosse morrer ou voar. Impessoal, olhou para céu. E só havia o Sol. Nenhuma nuvem foi capaz de encobrir a visão apavorada da mulher madura, quando deixou cair o tamanco sobre o asfalto quente. Há quem jure, depois daquela vozearia, ter visto o menino levitar.


segunda-feira, 26 de setembro de 2011

Inventem totens

Inventem totens e proclamem pensares. Dilua-los em convicções soltas. Seus troféus serão sobras de ilusões silentes, incoerentes na essência. De batas indianas, incenso e birras, os argumentos se foram despencando aos poucos. Fumaças cambaleantes, doidas de conceitos, que chegaram à merda dessa América crédula para lidar tupis capengas, mal falados. Mais tarde, a verdade, bem que nunca veio. E crenças e danças, forjas e fornicações. O acesso a isso nunca se deveu pleno. Promulguem mantras pra ver! Caem no ócio, no samba ou somem, feito sucessos fora de estação. Então percam seus movimentos e esperanças, porque os conheço um a um, mesmo ignorante. Acho que é por medo ou cordialidade. Uma certa brasa que nomeou meu pau ancestral: brasil. Deve ser...


domingo, 25 de setembro de 2011

Emitiu um beliscão

Emitiu um beliscão e, de pés juntos, aplicou um desses jogos de “nada com isso”. A negra de todas as perfeições fez-se de morta sem perder a cadência, como se o fogo não fosse com ela, fogueteira. Continuou no passo daquele ritmo torto, como se a gramática da coisa escrevesse torto por linhas perfeitas. Taquara rachada, a cara do cara, com cena de aceno ao comportamento tonto, como se o hímen a menos não lhe fizesse falta. Vão na história de conquistador barato. Além do parecer portátil, já não carregava mais nada o macho ex-triunfante, como se os caninos lhe tivessem sido arrancados – vampiro banguela. E a negra do comércio humano, pôs ao léu as cadeiras remeleixas, como se o sujeito, defunto fresco, pairasse insepulto naquele baile funk.


sábado, 24 de setembro de 2011

Só discurso

Só discurso e raspa de garganta. Cada percalço, alça pra segurar ou expensas comuns, que outros façam. Mas, como fala bonito! Convence nas trivialidades, persuade incautas almas, até choro sentido é capaz de esboçar, se for o caso. Exprime a máxima boa vontade no ponto certo, então delega... fanfarrão da sobriedade. Deixou que Shenia, vesga e torpe, desse um jeito no leito que tinha. Roqueroque, ufaufi, fiquefrio, tempestade a braços cruzados, peleja com plumas, nada, enfim, que pudesse representar esforço Fábio faria. Shenia, em oposição exausta, se contraía na peleja manca para obter sôfrego resultado. Foi morar com ele, mas nem se falam. Atravessa pontes e ruas olhando desvarios. Fábio sorri cretino daquele súbito desconcerto, na mesma ordem astuciosa das suas coisas.


sexta-feira, 23 de setembro de 2011

Cessada a cobiça

Cessada a cobiça de Odécio... os outros é que o digam. Perdeu a cabeça por uma flauta, na qual pratica truques, com sopros de viés. E a flauta é doce! E Odécio, diga-se, passou a levar a vida. Não dá ouvidos ao que não seja nota, nem supre pedidos dos que querem música. Bico no bocal, e pronto. Parece escrever epitáfios no ar e denominá-los free jazz. Epitáfios para aqueles outros, nós, que já o dizíamos. Odécio existe sem consistir. Está muito longe aqui na sala, e insiste no fio melódico inexistente aos próximos. Som de maus modos, teima que persiste. A contumaz conduta chega a sugerir um luxo ao melindre alheio, pelo dar pancas de Odécio a uma maestria pertinente. Os outros levamos vinhos, risadas e até a atriz do filme que ele idolatrava, a ver se a cobiça retorna a Odécio.



quinta-feira, 22 de setembro de 2011

Na piscadela

Na piscadela com a qual conquistou Evaristo havia um chiste de pálpebra e uma simulada movimentação de lábios. Pilhéria meio impune ao espírito da conquista fácil. Espécie de xixi na correnteza do óbvio, pronto a inundar corações alheios. Evaristo não viu. Nascido a termos, criado a sério, tinha um lapso na percepção à malandragem, mesmo à patente. Tendia ao estável e qualquer alteração em sua medida de segurança lhe era alheia. Não havia risco a Ema para persuadi-lo às caras e bocas. E o casamento fez-se rápido, fruto de uma distração e uma piscadela. Evaristo, sempre relapso, e ora acomodado, pouco reparou nos espasmos labiais públicos e nunca acompanhou a enorme movimentação das pálpebras de Ema.


quarta-feira, 21 de setembro de 2011

Dispendiar pessoas

Dispendiar pessoas e estatelar os dedos eram os hábitos de Hilda. Com argúcias múltiplas e honradez mínima criava histórias para as caras almas. Como aquela em que simulou o enfarto para que alguém lhe cedesse o dinheiro do táxi, após o chope. Hilda concernentemente à dor haveria de extrair o lucro. Um valor para a dor. Xis para uma coluna travada, ípsilon para um mal estar de estômago, zê para não sei o quê. Caso colasse, recebia, mas nunca caía caso o pequeno golpe não desse certo. Foi no mês setembro, se bem me lembro, que afundou no sofá soturna, lúgubre e mole, com o cálice de vinho em punho. Sonorizou galhardo gesto de indisposição explícita, e todos esperaram o próximo pedido de Hilda, único, na forma de trocados. Foram sumindo os ais, os sopros, nenhum gole até fôlego algum. E Hilda se foi, quando muitos já buscavam a carteira de notas.



terça-feira, 20 de setembro de 2011

Cada espécie

Cada espécie deixa claro o que quer. O Gonçalo, por exemplo, pleno de recursos, surta. Desmantela o tempo. É da espécie empinada, previsível e revisto como falsas palmas, beijo de bom dia, onomatopéias de gagos. O condão de sua varinha demonstra ter cãibra ou insurreição para não agir jamais. Claro que quer apenas se dar bem. Muda obtuso quando preciso. Vai assim como quem fica. A razão que emoldura depende dos olhos do espectador. Naquela gamela onde o cachorro come, ontem mijou. Dá pena de ver o bicho recusando a ração. Mas quem fica paga estadia; e Gonçalo sentiu a fera que andava às tontas no bicho. Mal dormiu na cadeira, sentiu nos pés a massa mole canina... quente. Era a outra espécie... deixando claro...



segunda-feira, 19 de setembro de 2011

Sondou e soldou

Sondou e soldou à veia a velha seringa, próxima à verruga cinza. Pretendia arrancá-la assim, revolto e sóbrio. Na nascença, torrou talentos atribuídos àquela saliência. Predisseram logo, à mãe ingênua, que a protuberância rugosa do rebento era sinal de boa agrura e fartura. “Boa agrura” foi o erro do agouro à quase obscênica coisa saltada. Conviveu, mas pouco se fartou. Então entrou na entranha dura do silêncio vergonhoso, agora, adolescente, sempre atrás das linhas de frente, no despiste. Os olhos dos outros, inoportunos, sugeriam uma visão nítida sob suas mangas compridas – traje igual, habitual. Era impressão do esgar alheio. Quem foi cínico engoliria seco, ele apenas puxaria o êmbolo.


domingo, 18 de setembro de 2011

Salvo melhor

Salvo melhor juízo o pato não caberia naquele copo. Se não me engano, nem o cachorro esconder-se-ia da chuva naquele dedal azulado. Nenhuma dúvida me faz desconfiar que o mosquito poderá viver dez dias na geladeira. Valha a falha, e não questionarei a possibilidade de criar crisântemos sobre os bicos acesos do fogão de cinco bocas. Aspas para insinuar que há galinhas poedeiras que voam quilômetros. Pudera, pensar que um leão pode acariciar um gato? Um gavião, um pintainho? Salta do real a perspectiva de se enxergar a olho nu as crateras cobertas no solo lunar. Até dá um asco imaginar que uma lombriga vive anos num cérebro. E um pinguim no Saara? Enfim, há considerações para tudo. Inclusive espremer soluções para a concepção de crônicas... eu não acredito.


sábado, 17 de setembro de 2011

De lascar

De lascar! Sugere luxo e enxerga ausência. No ápice do exemplo perde o prumo, espera que o destino a enfrente, mas foge da luta. Essa desgovernada decoradora estupra a estética, tosse glamour e engasga. E solta pitacos e pseudos. “O estado de aqui de ali ficará mais clean”, em declínio diz. O contra vende tudo, em êxtase descobriu. De qual altura se precipitou naquilo ninguém sabe, ela oculta culta. Então, tão inoportuna, pede para que se una o abajur ao giz, o gesso ao avesso. Espaço feito, ai que tédio, arquiteto. Que entrem os credores. Pelos tapetes, cavaletes, brocas e tintas frescas. Arabescos sem saídas. Penetrem os olhares que os ares são para serem vistos. A obra, enfim, inacabada!

sexta-feira, 16 de setembro de 2011

Desperto e aberto

Desperto e aberto ao dia, Aderaldo deu para duelar com o Sol pelo brilho daquela manhã. Ambos luminosos, embora Aderaldo parecesse cintilar mais. Espírito aguçado era o dele, depois do sonho com coisas de acidental criança, capaz de voar ao movimento dos braços e pernas como o de um mergulho. Sem simonias ou cismas, tendia a idolatrar momentos. O cujo ainda impingiu tamanho desprezo pelo Sol que se fez superior em calor e altura. Subiu ao pico da ponta da estrada e abriu os braços, contemplativo. Achava-se maior e impune, o tal das coisas, o forjo das nuvens e adorno do espaço. Quais indecisas quadrilhas extraterrestres haveriam de se aventurar? Já a tarde subia conferindo-lhe a sombra definida quando sentiu o primeiro sinal da ardência. Conta o médico que Aderaldo chegou a queimaduras de segundo grau, por tamanha exposição solar.


quinta-feira, 15 de setembro de 2011

Vigia e guardião

Vigia e guardião da memória do pai, guardava a fotografia da tatuagem que um dia o velho usara para espantar maus afetos. Sobra da solidão a que se impusera depois que o genitor morreu, doente sifilítico por tantos bons grados. Apesar do destino, cajado das muitas superstições, o filho cria no seu diferente, sem segundas intenções. Se não fez a foto à pele não foi por covardia ou receio, senão para ao invés de atrair amores, repulsá-los pelo fado que ao pai impingiram. Seu êxito no êxodo do isolamento calculado o tornava ao mesmo tempo afoito. Aliciador de adeptos à quase seita dos sozinhos. Ao seu lado, sempre o de lá, era mais difícil estar, feito cupim dentro do cajado. Tanto que quantos tentaram, voltaram. Renegaram a doutrina do infortúnio. Já mais dados às oportunidades do que aos perigos, contaram a história desse filho ensandecido de pai.

quarta-feira, 14 de setembro de 2011

Fiz péssima

Fiz péssima partida prática e um gol teórico. Naquela estréia no futebol, aos dez anos de idade, havia sonhos apesar da bola. E ainda que o velho tênis puído cinderelamente se transformasse na mais mágica chuteira, acertar o ângulo superior das traves onde inexistia o travessão mais elevado foi minha modesta e decisiva contribuição à partida, não tivessem anulado meu feito. A caixinha de surpresa revelou minha desescalação para a próxima partida, quando já pensava mesmo em tornar-me técnico do time. E teria sido um exímio articulador de jogadas, não fosse a sistemática desobediência dos moleques craques. Rememorando, agora, penso que meu grande mal foi ser duro, não de caráter, mas de dinheiro. Fosse o dono da bola e não haveria limites à minha graduação no escrete. Exceto por um fato: aquele time se desfez quando o centroavante e os dois zagueiros, todos irmãos, se mudaram com a família para a Araçatuba.

terça-feira, 13 de setembro de 2011

O vento faria

O vento faria volatear o pó que se instalou sobre os livros. Limpá-los, para Amadeu, era agredi-los com o excesso de zelo. Rato dos sebos, entendia a volúpia das traças, o amarelado dos anos e as dobras impossíveis de serem contrariadas. Tinha um quê pelo arcaico. Uma afeição ímpar pelos pares dos volumes enciclopédicos grudados pelo imenso tempo de desuso. Vivo ardor pelo bolor. Aquela essência mágica de naftalina vencida amalgamada à decrepitude insalubre dos fungos capazes de causar-lhe espirros e corizas múltiplas. Sagitta in caelum excussa in ferientem recidet (Quem cospe para o céu, no rosto lhe cai), leu sem entender uma palavra num velho livro em latim, comprado por uma ninharia. E tudo “muito prodigioso”. Menos o conteúdo... mas o cheiro.


segunda-feira, 12 de setembro de 2011

Bondade

Bondade de me acompanhar? Imagine! Sou raça de andorinhas migratórias, eco sem oco de ressonância, fato até já afastado. Não se trata de impedimento ou troça, é coisa da razão mesmo. Pra quê? Atingir-me no tecido da membrana cerebral, desfazer-me em pedacinhos mais sólidos ou esgueirar-me de males, você não conseguirá. Nem é por mim, é meu jeito. O planeta que habito é desabitado. Depois tem o seu tempo, diferente do meu. Não chamo tudo pelo nome, e perdem-se horas para se descobrir do que se trata. Tem mais: fico secreto! E esse detalhe eu não conto. Se eu tivesse dado margem: o senhor recua em alguma coisa? Precisa de sonhos? Vá lá. Os incomodados que se uivem, a máxima proximidade que lhe abri foi de levar meu nome para a lista dos precipitados. Então me desculpe, porque não era essa a intenção.

domingo, 11 de setembro de 2011

Usurpou o cheiro

Usurpou o cheiro do perfume da dona que passava e riu. Achava os gracejos gestuais o máximo: superiores, mesmo, às conquistas. A fala dos peidos, onomatopaicos arrotos, coço dos testículos e os indicadores garimpeiros nas narinas eram hábitos que não contavam para Paulo, sempre pronto a lustrar com impropérios e baixezas a vida e os modos daqueles que porventura convivessem às proximidades. Já bebê chorava alto, hábito e atuação que pratica com as palavras. Não fala, grita. E por cômoda consequência também não ouve ninguém. Seu passado lhe condensa. O transporta à inconveniência com a desqualificação dos tolos. Disso ao desterro nem existe tênue distância. Ninguém o suporta, exceto a esposa. Não muito dada ao trabalho ou à condução satisfatória da vida. Dizem que é porque bebe muito... muita vodca.


sábado, 10 de setembro de 2011

Ganhou em certeza

Ganhou em certeza o que o amor de Lola perdeu na distância. Longe era lindo. Havia e-mails e horas ao celular dispendioso. Colméias e outras construções de ninhos de felicidade remota. Pedro perdeu no erro. Assim que ela chegou, matéria prima, ele se pôs a esculpir Vênus de mil formas, desfraldes de alegrias, alumias para a vida. Não deu fé a pedestais e as estátuas, todas lolas, deram nos pés. Lola parecia que corria a mando de Almodóvar, supunha-se obra prima e dava um jeito de se parecer prenda em leilões da Sotheby’s. Bela bisca! Com tantos “vou ver se vejo Lola”, Pedro clareou a cega paixão virtual, ao ponto de lhe deletar as fotos íntimas e desaconselhar amigos sobre a amizade com ela. Lola, presente, pareceu nem ligar.

sexta-feira, 9 de setembro de 2011

Preguiçosa que só

Preguiçosa que só vendo! Extinguiram-se leis, baleias e cresceram matos onde havia jardins. Ela, lá. Presente de silêncios em lugares ausentes. Problema quântico ou de alguma matemática relapsa, lúdica hermenêutica das onomatopéias roncadoras. “Ih, não vai dar!”. Assim, esfacelada num sofá de brim puído no assento pelas tantas horas inertes de sua bunda ali. Um ar rarefeito de vontades, surdo de gestos, em busca dos ócios de todos os ofícios, intervalos de todas as lições, pausas aos plays da existência. Parou para pensar e gostou. Mais: amou. Mas nem tanto ao cérebro aquilo que pertence à contemplação, nem à jornada o que cabe às férias. Tempos incertos exigem certo tato e casacas viradas, pensava, mas não muito, entre uma espreguiçada e um bocejo. Amanhã, quem sabe, ela dará conta do recado.



quinta-feira, 8 de setembro de 2011

O louco

O louco do Lima disse que os sábios tiram mais ensinamentos dos doidos do que estes daqueles. Foi contra a glória dos ajuizados e imprimiu abjeção àqueles outros. Então, seu pensamento vagabundo para todos os lados, deu para a nacional bisbilhotice doméstica: viveu infeliz, morreu humilhado, mas deixou legado de pária amado. Esse tom que se tem, meio como dom, meio do jeito que vem, leva Lima a continuar aqui, desde quando chegou sua hora. Embora a troco de trôpego tato, truque de sem causa ou distraída trama, olha ele aí, todo íntegro, cidadão de Bruzundanga.



quarta-feira, 7 de setembro de 2011

Na falta

Na falta de meios para conhecer, Lara, a atriz, Dorival comprou ingressos para todas as noites do espetáculo no qual a moça atuava. Calculou que decorar-lhe as falas seria um princípio de sintonia ou forma de se aproximar da bela alma. Pulava as lágrimas, presentes na representação, por considerar que o seu amor seria uma felicidade só. Ofendia-se com os tabefes que a protagonista levava, quando o personagem marido a descobria infiel, mas passava com sua elucubração a postos na cena onde Lara orquestrava pulgas. Tal a trupe, Dorival ficou meses em cartaz na poltrona 5 da primeira fileira, aguardando um olhar furtivo da bela durante as palmas em agradecimento. Mas não veio de Laura os olhos fitos de contemplação, sim de Carlos, o marido da cena três. Mais que platônico, o ator o buscou a saída do teatro, e vivem felizes para sempre.

terça-feira, 6 de setembro de 2011

Performático feito

Performático feito pavão no cio, pastor Salvador, sob o patrocínio das Casas Cury, quis extrair a fórceps o diabo do corpo de Kelly Daiane. O pai da moça, mais dado ao vício que à virtude, não gostou daquilo. “Onde esse cramunhão desse do terno está a pondo mão na Kelly?”, disse à patroa, confuso, já levantando a faca e se dirigindo ao palco. Aos gritos de “outro demônio”, pastor Salvador iscou os assessores, todos ex-coisas ruins, que com habilidade de luta imobilizaram o pai nervoso. Sem tirar a mão da coisa de Kelly, insistindo no fórceps, Salvador disse muitas coisas em língua incompreensível, de espírito, e como ninguém foi capaz de decifrá-lo, ouviu pelo ponto eletrônico da orelha esquerda o recado do produtor: “fala da faca!”. Ao que pastor Salvador, levantando a lâmina tomada do homem, amaldiçoou sem pestanejar: “Viram, irmãos, não é uma legítima adaga das Casas Cury! Azar o do diabo. Amém?”.

segunda-feira, 5 de setembro de 2011

Duvide, meu

Duvide, meu caro hóspede, da gentileza abobalhada desse anfitrião. Esse riso que você enxerga despenca de alguma intenção. Parece. De graça essa piada espirituosa chega sinuosa, a sério há mistério. O brinde carrega nas taças um erguer de ombros, nem aí, do tipo que desempata a retidão esperada das ocasiões como essas. Um sagaz confrade notaria de estalo essa farsa que você, com sumária percepção, não a vê. Deplorável é reconhecer que até os minutos que correm à sua presença são contados, de maneira regressiva. Falta pouco para sua escassa presença pronunciar o lamentavelmente habitual “boa noite” e seguir sua direção. Os prazeres tidos em comum há muito foram engolidos pelo desagrado de alma. O que resta em convenção é só peso da vida em sociedade. Afinal, já bem pago.

domingo, 4 de setembro de 2011

Sem espaço

Sem espaço para a guimba, engoliu saliva, martelou injúrias às leis e enrolou aquele resto no plástico extraído da caixa dos cigarros, para guardá-la no bolso até o próximo lixo. Não havia lixo por ali e teve o plano. Para evitar desconfianças, retirou do vaso e cheirou a rosa, acomodou dissimulado o estorvo no cabo e retornou a flor à água. Logo Filomena achou lindo o gesto, e pôs-se ao seu lado para também cheirar uma flor. O plástico boiou, expondo a guimba envelopada. Ele tratou logo de dissipar o desconforto: “você acha? Que absurdo?”, disse à moça. “O senhor cheira a cigarro!”, ela retrucou meio conjeturando, meio acusando-o. Pasmo e cético, ele fez cara de indignação: “a senhora não está pensando...?”. Ela sorriu. “Não, a guimba que há dentro daquele guarda-chuvas, ao lado do cavalheiro à direita que lê jornal, é minha... também!”.


sábado, 3 de setembro de 2011

Provavelmente

Provavelmente provocaria o aniquilamento de meu perseguidor. Pregos, óleo ou mesmo um farol extremo na traseira do carro, nessa noite de Lua nova, seriam de boa utilidade. Frearia seco! Como opção paliativa. Os danos de média monta. Não. Preciso mais gás numa decisão desta. Quem sabe uma arma de grosso calibre instalada no pára-choque traseiro? E eu com as ilegalidades? Trânsito é efeito de caminhar, mas esse sujeito quer atropelar. Nem adiantou o sinalzinho “passa por cima”, o médio em riste, o ajuste no retrovisor para devolver-lhe a luz... alta. Sair do trajeto não saio. Dar passagem, nem pensar, cheguei antes dele nesse lugar aqui. Depois, há essa pressa que não passa, essa disputa incontrolável pelo lugar ao Sol (foi mau, está escuro). Vou reduzir a marcha e implantar-lhe o ódio, assim, aos poucos, 90, 80, 70, 60, 50 quilômetros por hora, e nem mais um segundo de reflexão.

sexta-feira, 2 de setembro de 2011

Fácil da primeira

Fácil da primeira orelha ao prefácio, Iolanda era assim exposta: escrita por muitos, vista, revista, tomada de si feito um livro aberto. Falsa na folha de rosto, repleta de dedicatórias, com epígrafe de cézares, robertos, carlos, louros, morenos e calos. Suas vestes sumárias, tatuagens de ilustrações, abreviaturas e siglas quase sempre abriam margens a agradecimentos. Havia em si um quê subentendido de introdução iminente. Já na página capitular viam-se as lentes azuis sobre os olhos castanhos. O fólio dava pistas para que chegassem a ela, já suas notas, de dinheiro fácil ou de rodapé, revelavam manias, vícios, gostos e desejos. No posfácio, um cigarro aceso, outro gole de champanhe. E Iolanda espalhava o glossário às amigas, todas íntimas. Sim, havia erratas, como em quase todas as coisas feitas com papéis.


quinta-feira, 1 de setembro de 2011

Não é sabida

Não é sabida a liberdade de Zeca. Ele, lancinante, que golpeia falas e rudezas para todos os lados. A priori seria seu livre arbítrio em ação, mas mais se parece determinismo. Portanto, a culpa por tanta bobice e inconveniência não seria dele, mas já teria nascido com ele. Desculpe-me, mas não seria possível a Deus planejar um ser assim: grosso e atacado. Sim, deve ser o livre arbítrio. Ainda outro dia, entre salpicar súplicas ou arrancar mudas dos vasos, optou pelas súplicas, porque as plantas eram daninhas. Foi a única vez, pela prospecção do mal, que o vi posando de humilde, pelo direito a não agir. O que perdeu em gesto ganhou em perversidade. E Zeca riu, o riso dos debochados.