terça-feira, 31 de maio de 2011

A família

A família de Tamires logo se viu em péssimos lençóis. Pior, alguns deles até com algumas marquinhas de sangue. Fabrício, o noivo, subitamente desaparecera, quando não faltava mais do que quinze dias para o tão sonhado casamento. Foi o tio Carlos, distraído, mas não desavisado, quem encontrou casualmente o moço na linha norte do metrô. Meio sem jeito, o ex quase sobrinho lhe contou sem graça o motivo da fuga. Ante as recusas outras da noiva, passou a furá-la na coxa com um alfinete de costura e lamber-lhe o filete de sangue. “Vampiro!”, esbravejou o velho, mas logo tratou de ouvi-lo. No início, Tamires relutou. Depois para manter as aparências, até deixava, meio a contragosto. Foi ficando triste e pálida, e mal podia ver o noivo, ainda que a mãe insistisse: “desça Tamires, Fabrício chegou!”. A compulsão aumentou no rapaz, e ele próprio, sentiu-se um desequilibrado. Optou, então, por sumir da vida da amada. Porém, confessou ao tio Carlos, a psicopatia não desaparecera. Com um alfinete na mão pediu licença, disse adeus e foi para o fundo do vagão, onde avistou uma linda moça morena.

segunda-feira, 30 de maio de 2011

Bradou aos quatro

Bradou aos quatro ventos a sua intenção de denunciar o dono do bar, que andou servindo uísque falso. Ninguém prestou atenção. Ninguém presta atenção. Quem é que se concentra na conversa do próximo? Já é assim na sobriedade da vida, imagine na embriaguez do bar? Então chegou à conclusão que o mundo só entende os atos, jamais as palavras. Subiu no balcão e atirou o copo à prateleira vítrea que expunha inúmeras garrafas. Foi um estrondo e um susto. O local parou para observá-lo tresloucado no alto. No ato, o dono tratou de chamar a polícia, enquanto ele continuava seu discurso corrosivo contra o veneno servido às doses naquele lugar metido a fino. Estava, enfim, no palanque que sonhara antes do gesto desvairado, e mesmo ao policial que o algemou para conduzi-lo à delegacia, falou alto e com desfaçatez: “o senhor está me levando para uma dor de cabeça menor do que aquela que eu teria se continuasse bebendo o uísque aqui desse bar”.

domingo, 29 de maio de 2011

Favor eu faço

Favor eu faço, mas me dê licença. Quando estou assim acabrunhado fico sem vontade. Enfronho em pensamentos e nem ligo. O senhor me pede pra lhe dar um tiro na testa, mas pra ser sincero, estou morto de preguiça. O revólver tá guardado lá numas malas empoeiradas, vai dar o maior trabalho para eu me lembrar onde o guardei. Se servir um empurrão aqui do barranco eu até dou, mas acho que não vai adiantar muito. De repente o senhor não morre, fica capenga de uma perna, de um braço, e ainda é capaz de vir me incomodar. Olha, vou ser sincero com o senhor, procure um caminhão pesado pra se jogar embaixo, um prédio bem alto pra pular, um andaime de construção, sei lá, um veneno forte. Até pra morrer o senhor vem me pedir favor? Tenha dó. Hoje eu quero é prostrar. Pro senhor não dizer que eu sou isso, sou aquilo, vamos combinar, amanhã se eu tiver bom eu lhe mato, mas não me apresse. Pra tudo tem hora.

sábado, 28 de maio de 2011

Fácil para

Fácil para o vício. Entre o futuro e o passado, era Homero e ponto. Quis passar desapercebido pelo presente. Fez força, planos e tal, mas não havia como esquecer-se daquilo: o ópio ou outras drogas que lhe motivavam a alma. Quis então encerrar aqui e agora seu propósito de novas buscas, sem êxito ante os pensamentos precavidos no planejamento dos êxtases que poderiam vir. Um extemporâneo, esse Homero. Acendeu outro defeito, cheirou muitas inclinações para o mal, injetou o desregramento habitual em suas veias calejadas, inalou deformações do caráter. Ainda se tocasse guitarra, escrevesse versos ou quem sabe pintasse uma obra, mas nada disso incrementava aquele sorriso amarelo. Nem a cada mil lágrimas lhe saía um milagre, como ouviu na música. Foi a conta e o encontro. Deu-se por morto, embora a vida insistisse em resguardar-lhe um próximo e imediato barato!

sexta-feira, 27 de maio de 2011

Ela pensa

Ela pensa como eu, e eu como ela. Dado aos trocadilhos, Duílio apaixonou-se por Clara, justificando assim aos amigos esse súbito amor depois do fora que levara de Lia. Frases e fases às tinha aos montes, e foi na recepção da clínica da nutricionista, em época que cismou com o regime, que encontrou a nova paixão. Logo viraram dois pombinhos, alimentados pelo milho alheio, que lhes era lançado pelas almas amigas de bom coração. Porque, não fossem esses infames estímulos, e não haveria a mínima chance daquilo dar certo. Duílio era aparência pura, Lia, o recato nato. Duílio, o próprio universo, Lia, compartilhares extremos. Mas o estímulo é um demônio quando oferecido em horas erradas e, como tal, sempre quer ver o circo pegar fogo. Custou a Duílo perceber que apenas tentava pensar como Lia, mas todos os conhecidos como ela. Alguma coisa não se encaixava em trocadilhos...

quinta-feira, 26 de maio de 2011

Daí vem

Daí vem a precariedade da gente. Acho que as doenças já habitam o cérebro, antes de se alojarem no corpo. Psicossomática é um palavrão pra elas. São pestes mesmo. Fiz que fiz e fabriquei uma gripe, direitinho. A bem da verdade, procurei ajuda externa. Ambientes fechados, preferencialmente postinhos de saúde da periferia. Uns ventos fora de hora, sopa quente com sorvete, caça de espirros nos ônibus. Não contava com a tosse, mas fazer o quê? Faz parte. Depois uma moleza de alma, uma coriza sem fim, um estardalhaço de umidades. Mandei o cérebro parar, antes de uma pneumonia. E parou! Estagnou ali, na dor nos ossos, uma febrinha controlada, um esplêndido mal estar. Gostei. O único peso de consciência foi o de ter roubado na regras propostas. Agora, por exemplo, que penso numa gastrite, meu estômago só pensa num chá de hortelã. Assim, não há cérebro que aguente.

quarta-feira, 25 de maio de 2011

Donde minha

Donde minha vontade de criar pardais começou. Sem viveiros ou gaiolas, mas nem por isso ecológica, só de distração. Melhor que a do Paulo, que queria amamentar na cadela de casa os filhotinhos de capivaras que recolheu na represa urbana. Com um olho nas crias roedoras e outro no Ibama, esfolou as tetas da Donzela, a tal cadela. E coitada, nada. No percurso os bichinhos se dizimavam, e mãe canina lá, triste feito mãe autêntica, feito gente sem recurso, sem salvação por falta de um plano de saúde. Com os pardais foi mais fácil: quirela de milho e água fresca. Juntavam para o sustento: deles e de meu intento. No fundo eu estava cheio de segundas intenções, é. Queria que eles comessem os todos pernilongos da dengue que baixaram por aqui. Da experiência extrai o óbvio: pardal é passarinho esperto! Acha? Trocar quirelas por pernilongos? Ficaram, engordaram, procriaram, e eu estou aqui, com essa doença que me deixa todo trêmulo e febril.

terça-feira, 24 de maio de 2011

Sempre palpitando

Sempre palpitando, Hipólito me dizia toda vez que eu iria me dar muito mal com essa mania de andar de bicicleta.

- Olha – disse Hipólito – você vai se dar muito mal com essa mania sua de andar de bicicleta.

Não disse? Subi no selim e me pus a pedalar a esmo. Já estava muito mal, mesmo. E acho que a bicicleta tem o poder oculto da serenidade, pelo esforço das subidas e o deleite das descidas. Deixa-me detido por uns instantes no espaço, para se fazer relembrar para sempre no tempo. Como as notícias boas da infância que, para chegarem mais rápidas, e as levava às pedaladas. Tal a superação de uma corrente desencaixada da coroa, que me fazia um solucionador do problema crucial para prosseguir na vida.

Só voltei mais tarde ao céu previsível onde estava Hipólito. Meio sem graça, disse apenas: “Não foi dessa vez, mas você vai se dar muito...”.

segunda-feira, 23 de maio de 2011

Velhinhas matracas

Velhinhas matracas, costumava defini-las Eliseo, o garçom do Café Esperança. Punham-se sentadas às três da tarde, com as bocas a postos. Houve um tempo falavam só de homens, para todos os gostos e nas várias posições. Também eram bem jovens. Depois comentavam do sexo, um pouco de política... e homens. Mais tarde quase não havia homens em suas conversas sobre as receitas e algumas artes. Hoje, comenta o velho Eliseo, “só falam de netos”. Esta na cara de cada uma que nenhuma tem o menor interesse pelos netos das outras, mas escutam atentas, para também poder falar dos seus próprios. Aí, despedem-se. Cada qual torcendo para que seu neto naquele dia dê sinais de inteligência superior e vivacidade exacerbada. Já não aguentam mais inventar histórias de superação!

domingo, 22 de maio de 2011

Gingando e andando

Gingando e andando praticava as suas. Por não dar-se ao trabalho, optou pelos fáceis furtos: uma casa descampada aqui, com acachapantes limpezas de objetos e coisas; um ganho ali, nas recepções de consultórios, balcões de bares, lares ou supermercados. Evoluiu ao roubo, quando os trocados de tão pouco já não lhe rendiam pequenas drogas das leves ou pesados amores fáceis. Especializou-se em roubar cabelos de crentes, às quais rendia e cortava-lhes os fios na altura da nuca, para depois os vender às peruqueirias. Ninguém lhe sabia o nome e virou vulgo, no jargão policial. “Maníaco da cabeça”, para os tiras. “Barbeiro do Ente”, para as crentes. Distraiu-se na fama das manchetes muitas. Propagou seus feitos aos chegados seus. E surpreendeu a cidade na primeira foto estampada na capa do matutino: Brédipite Jonedipe da Silva, 19, era careca.

sábado, 21 de maio de 2011

Montou a lojinha

Montou a lojinha e esperou no balcão. O primeiro a entrar nela queria saber onde ficava o ponto de ônibus mais próximo. Passou por lá o vigilante epidemológico, para espantar os pernilongos; a moça chique, pensando tratar-se de um salão de beleza; o velhinho vendendo o legítimo queijo de cabra. Fechou para o almoço. Comeu macarrão com almôndegas. Voltou alimentado e esperançoso. A tarde custa a passar. Cochilou e deu para visitar Bora Bora: mar transparente, Sol a pino. Acordou suado. O começo é assim, pensou assado.
Ao dar entrada no plantão policial confessou os tapões na bunda daquelas duas crianças que, naquele antipático e expatriado halloween lhe ameaçaram com a atrevida pergunta: “guloseimas ou travessuras?”. Mas ao escrivão pedante que lhe insinuou “vadio” à pergunta pela sua ocupação, respondeu de boca cheia: - comerciante!

sexta-feira, 20 de maio de 2011

Sofreu com

Sofreu com a fatura explícita. Uma fratura exposta para Dagoberto, sovina e ardiloso como um banco em dia de cobrança dos juros. Assim que o garçom trouxe a conta, o olhar de Dagoberto pôs a mão no bolso, sem raciocínio tremeu e a boca fez somas de maledicências. Penso no frango inteiro que compraria com o valor daquelas três coxinhas; na caixa de cerveja inteira mais barata que os quatro chopes; no jazz que ouviria em casa a ter que superar aos gritos aquele axé escrachado e ainda pagar couvert artístico. Somou, ressomou, somatizou com uma mordida no dedão direito dobrado na mão fechada, e entregou o dinheiro ao homem. Ao dar, pediu. Negou gorjeta e mandou que lhe trouxessem um copo com água da torneira: “do grátis”. Para reduzir seu prejuízo iminente ainda pegou dois palitos de dentes, jogou um punhadinho de sal com azeite na mão e lambeu. Só então deixou os amigos, para colocar seu ódio na cama.

quinta-feira, 19 de maio de 2011

Algo que inflama

Algo que inflama, acende um palito de fósforo. Bem ao contrário de um inverno rigoroso ou de uma pedra de gelo. Um facho, sabe? Que sai... Mas não é, assim, um archote ou brasa recoberta. Vibra! Uma lumeeira danada! Faz da gente uma espécie de matéria inflável. Incandesce o ar do entorno, arrebata os ímpetos do humor, deixa o coração candente. Provoca uma chispa na espinha, dá uma centelha na telha, uma fagulha já em forma de chama. Parece bobagem, mas contagia. Lança um ardor benévolo, um fogo nos dentes, um luzeiro no cérebro, mesmo que muito desatento. É, enfim, um compartilhar sem fim. Muitos nem sabem o porquê, o mote ou a graça, mas mesmo assim não se poupam. O riso de Argemiro é o máximo!

quarta-feira, 18 de maio de 2011

- Canta o mantra

- Canta o mantra ou se levanta - esbravejou o guru raivoso ao hesitante Raimundo, cuja busca em vasto mundo jamais lhe trouxe a seita certa ou a solução para a vida. Saiu do templo quites com sua concentração nenhuma, mas um jogo secreto usurpava-lhe mais uma vez a fé. Insistiu em titubear e voltou lá: - Sabe o que é, seo Guru, eu não sabia a letra! Desculpou-se. Ajeitando a bata, o homem fingiu falar em sânscrito, e Raimundo perante o papo torto, concordou por fim ao jejum de três dias à base de polenta; foi o que lhe pareceu querer dizer o som daquelas palavras do mestre. Voltou mais gordo e purificado, e soube que não era aquilo. Não houvera dica ou dieta na fala do guru. Com a placidez dos transcendentes, o mestre ajeitou-se em lótus, juntou as mãos à altura do peito e sentenciou a Raimundo um naco de sua sabedoria nirvânica: - Não comerás cozida a verdade nua e crua.

terça-feira, 17 de maio de 2011

Removeu o óbice

Removeu o óbice com uma chave de fenda. Na medida exata, tirou cada parafuso que lhe assediava o sonho. Apareceu o vidro com a função de desautorizar-lhe. Lenta e metodicamente sacou o diamante do bolso, sem conotação destrutiva ou maldade extra. Riscou, feriu simetricamente os cristais e anexou àquilo um velho desentupidor de pias, capaz de retirar a peça sem quebrá-la. Assistiu ao triunfo quando tocou suavemente na presilha do colar. Experimentou a sensação de tê-lo havido sempre tatuado à própria pele. Fechou os olhos, com o coração soprando. Retirou a peça com o altruísmo dos que se doam, colocou-a na sacolinha de veludo, costurada para o ato. Guardou a ansiedade no saco de ferramentas, se levantou sem escândalo e caminhou à entrada do museu: visitante privilegiado, quando tudo aquilo se encontrava fechado. Quando soou o alarme seus passos já ganhavam a rua, em comunhão máxima com a liberdade. Azar, de verdade, só percebeu quando sentiu a bala transpassar-lhe o peito. Tão estranha, tão doída, tão próxima ao colar idolatrado.

segunda-feira, 16 de maio de 2011

Fada madrinha

Fada madrinha não era para Irineu uma crença, mas uma verdade incontestável. A primeira vez que ela lhe apareceu, taxando-o de perdulário, ele até a tratou com certo desdém. Gostava de gastar muito dinheiro com balas, brincando de roleta russa. Convenceu-se, porém, do lídimo conselho daquela criaturinha alada. Os resquícios de seus tempos como alpinista valeram-lhe a segunda aparição. Pego em contrapé, sem base que pudesse apoiá-lo a mais um metro, já nos trezentos de altura, sentiu a fada fazendo-se de sustentáculo, feito rocha firme ou suporte planejado. Não caiu, e o gáudio à fada lhe cresceu. Passou mesmo a invocá-la, como a um deus ou santo milagroso. De tanto fitá-la aos nadas e às inconveniências, terminou por repeli-la. Deve ter se afugentado em algum Olímpo ou outro monte que o valha. Irineu abestalhou-se, desde que se transformou num caçador de fadas...

domingo, 15 de maio de 2011

O grilo não

O grilo não sabe que hoje é sábado. Empenha-se em cantar como numa segunda-feira, árduo no batente. Fosse terça, e seu cri-cri carregado de mais bem-aventurança e verdadeira singeleza se manteria inalterável, alheio aos conceitos e significações humanas desse mundo. Na quarta-feira, tampouco, seus olhos se dirigiriam a um vazio, prenhe de significações, como as gentes às vezes o têm. Cantaria, e apenas isso.
Como cordas tangidas de uma harpa, sempre no mesmo ponto, tateando as mesmas notas, cantaria na quinta, sem almejar alturas ou outras glórias. Na sexta-feira, com seus assaz parcos dotes intelectuais, perspicácia alguma, o que por dedução nos eximiria em falar de sensibilidade, o grilo cantaria de novo. Não sei por qual maravilha se opera essa chatice.

sábado, 14 de maio de 2011

Dado ao alto

Dado ao alto da hora Hudyson não hesitou, chamou Priscila na copa e lhe declarou seu ódio! Como não era de hoje que a moça percebera a ausência de balas de menta na boca do noivo, estranhou, sim, aquela repentina ira da madrugada, mas não muito. Sem palavra alguma se aproximou de Hudyson, olhou fixo em seus olhos e ergueu de supetão o joelho direito (ela era destra), na região central do espaço entre as pernas do rapaz. Também não disse nada ao olhá-lo dobrando-se ao nível do chão. Pareceu não ouvir os uivos, nem ver-lhe as lágrimas de dor. Voltou à sala e tomou suave e pausadamente outro gole do champanhe. Sem evitar o inevitável, esperou que ele se aproximasse na forma de um nó (cego e mudo) curvado. Então colocou a taça na mesinha, levantou-se altaneira e despediu-se indiferente: - Nenhum diálogo é eterno!

sexta-feira, 13 de maio de 2011

Era um tremor

Era um tremor, não havia dúvida. Além do ócio, porém, Ernesto nada teria a perder. Morava de favor, como os primeiros sábios; e seu capital resumia-se à roupa que usava, lambida pelo mau cheiro do alambique. No instante ficou feliz: “primeiro mundo”, gritou sorrindo! Já relatando os tremores recentes ocorridos nos países desenvolvidos. O que é que está havendo? – interveio o senhorio, amigo de Ernesto cuja lucidez carecia de alguns detalhes. “É o fim do subdesenvolvimento. O sinal do progresso. Um mostruário de nossa ascensão!”, retrucou Ernesto, equilibrando o copo de cachaça, salvo à custa da própria tremedeira involuntária de seu portador. Alguns passos até a sala reduziram a alegria desenvolvimentista do pobre bêbado. Dos escombros, um motorista atordoado espanava com os dedos pequenos cacos de vidro do para-brisa do caminhão, com o qual perdera a direção e invadira aquela casinha humilde, habitada por loucos.

quinta-feira, 12 de maio de 2011

Difícil distinguir

Difícil distinguir palavras no murmúrio daquele conferencista. O colóquio sobre o poder da simpatia ultrapassava a hora e meia, quando uma calorosa insolência subiu da platéia em direção ao palco. O embusteiro não parou a fala, prosseguiu aquilo, incompreensível e ardiloso. "Cale-se, pela amor de Deus!", atentou Gotardo. O burburinho prosseguiu. Som de muitas vozes, confuso e, vindo lá do alto ao microfone, quase plangente. Parecia que o sujeito almejava mesmo provocar a antipatia alheia, parecia estar esperando o que tardaria a raiar nas vozes tagarelas do público. Rapidamente o palestrante esfregou o microfone na nuca, provocando distorções zombeteiras. Foi a conta. Gotardo lançou-lhe a botina suja, deu-se aos palavrões desenfreados e convocou a massa ao delírio: "vamos linchar esse cara!". O homem sorriu, sem medo ou ironia, e sentenciou o final provocante: - Por hoje,é só. Na semana que vem discorrerei sobre a alegria de viver!

quarta-feira, 11 de maio de 2011

Retrovisor e cena

Retrovisor e cena. Por trás do que se vê naquele espelho houve um casal nas núpcias. Ele, natural de Onda Verde, solteiro, pequeno proprietário rural, filho do Seo Alberto com a dona Santinha. Ela, natural de Nova Granada, solteira, balconista da cooperativa agrícola, filha de dona Iracema. Uma beleza, aquele dia. Novilha na churrasqueira, cerveja e cachaça à vontade, modas tocando alto “no som” do Fabião, amigo do noivo. Ele, gel nos cabelos. Ela, sombras verdes nos olhos castanhos. Vestido branco rendado. Terno risca de giz. Muita labuta e festas soltas vieram depois. Certo progresso e herança, até esse retrovisor enquadrar a cena atual. Ele ao volante, celular e falas ininterruptas. Ela, silenciosa ao lado, com tédio nos olhos e expressão cansada. Engordaram bastante desde aquele dia do casamento. Mas nem notam...

terça-feira, 10 de maio de 2011

Gratificação

Gratificação mensal, horário fixo, escova de dentes e vários pares de meia. A vida seria perfeita, um relógio suíço, um pão de queijo mineiro, não fosse aquela coceira insana atrás do joelho esquerdo. Não chegava ao aleijão, Jurandir dobrava e andava. Mas, a inconveniência do disfarce quase contínuo para se curvar e chegar ao ponto do prurido era o que mais o atingia. Em pé, na fila do banco, e de repente Jurandir, no alto de seu metro e noventa, parecia um pinheiro decapitado quando se entortava para chegar com a mão àquele ponto. Sentado se dava melhor. Uma abaixadinha já lhe assegurava o acesso à comichão. Mesmo com a visão alto, perdeu o gol que deu a vitória ao seu time, ocorrido coincidentemente na hora da abaixadinha. Pior foi a privação de Paula, que ele tanto amava, mas que não se curvou àquele mistério do noivo. A vida seria perfeita...

segunda-feira, 9 de maio de 2011

Mirou o mastro

Mirou o mastro com desdém. Fosse cego e aquilo também lhe encantaria de maneira idêntica. Surdo também, e estaria perfeito. Dorival não era dado às solenidades, fossem cívicas, religiosas ou sociais. Quando muito aparecia assim, numa daquelas da qual não caberia ausência a frio ou desculpas. Aqueles sons descomunais, cálidos, ruidosos, o deixavam irritadiço e grosseiro, ao ponto de mais de uma vez mandar à merda os generais, religiosos ou políticos. Agora, estava ali. As baquetas ruflando sem piedade todos os tambores e a bandeira subindo. Seu olhar inexpressivo mandava ao cérebro paisagens distorcidas. Seus ouvidos agredidos cutucavam a irascível vontade de amassar o catálogo da programação e lançá-lo em forma de bola na orelha do soldado que puxava a corda. Pensou em Helena, e foi a salvação. Guardaria a raiva para tirar a desforra com aquela sem vergonha.

domingo, 8 de maio de 2011

Primeiro, a pedra

Primeiro, a pedra. Atirei quando Vanderlice citou versos bíblicos para se fazer de inocente. Havia fogo, porque havia fumaça. Vanderlice carola, oras bolas, só se eu visse o coração, já que na cara não havia fé. Recusei-me a trocar a fantasia de palerma, pagar o preço da obra, molhar de amor aquele chão enxuto. Que se transformasse em ferro aquele espeto de pau, para então tentar furar minha armadura de ferreiro. Vanderlice era mesmo uma metáfora, um sei lá, conjunto de provérbios. Nem mais uma ruga, nem menos uma lágrima. Lugar comum do tempo, obviedade à cata de espaço. Eu, heim? Às custas dos meus arredores fez carreira solo, zás-trás triunfal, armações de vésperas. Lá sou espectador de esperanças? Pilar de troças? Prosódia de impropérios? Vanderlice ainda quis estalar em cima de minha inspeção, estelar e garbosa. Foi o basta que eu procurava no baú de suas sinecuras.

sábado, 7 de maio de 2011

Não, não

- Não, não é o Ernesto, desculpe, a senhora ligou errado. Comprei este celular de segunda mão. Vou ligar para a companhia telefônica para saber o que está acontecendo.
- A Telegolpe agradece a sua ligação, senhor. Desculpe, mas sua comunicação não tem procedência, nossos sistemas são seguros e não há possibilidades técnicas de repetição de números. De qualquer maneira, já encaminhamos sua queixa. Caso queira anotar o número de seu protocolo é 3859574600013893473000047347384739478937.
- Não, não é o Ernesto, desculpe, o senhor se equivocou. Comprei este aparelho de segunda mão e várias pessoas têm ligado para esse Ernesto. Já estou tomando providências...
- A Telegolpe agradece a sua ligação, senhor. Verificamos o seu protocolo 3859574600013893473000047347384739478937, e ainda não há uma identificação do Departamento Técnico. Nossos sistemas são seguros e não há...
- Sei, “...possibilidades técnicas de repetição de números”.
- Exatamente.
- Sim, sim, é o Ernesto. Pode deixar que vou ao encontro com você com todos seus amigos que estão ligando aqui pra mim...

sexta-feira, 6 de maio de 2011

Em intenção



- Em intenção da minha irmã, Maria Aparecida, que é costureira e não move a palma da mão faz dezessete dias. Também quero pedir pelos meus amigos Seu Donato e Gumercindo, que foram pescar no Mato Grosso, faz dois meses, e ainda não voltaram. Um apelo especial, também, pelo Otinho, filho da minha vizinha Teodora, que anda mexendo com essas coisas de drogas. Pra ele parar de roubar a coitada e as casas dos vizinhos. Outro pedido é pela saúde da dona Dirce, a doceira, que perdeu o paladar e uns outros sentidos. Posso pedir pra mais um?
- Pode, minha filha.
Então. Eu peço também pra minha sobrinha Graziete, que o marido largou com uma filhinha de seis meses, e que anda enrabichada com um moço, lá da parte mais alta do morro, que falam por aí que não flor que se cheire...

quinta-feira, 5 de maio de 2011

Recebia aulas

Recebia aulas regulares de humildade. Na pequena Escola Bejamanos, para a formação de serviçais em nível de graduação, Jamil adotou o “sim, senhor” ou “sim, senhora” como uma espécie de “bom dia”, “boa tarde” e só, porque à noite se dormia cedo. Gostava daquilo, já que nunca deu nada vida mesmo, como lhe dizia constantemente a mãe. Entre os tantos outros alunos especialistas em coisa nenhuma, não havia quem se destacasse, e essa aura igualitária era, no fundo, a aspiração de todos. Jamil adorou o uniforme, marrom e sem moda, até pela dificuldade que tinha em escolher essa ou aquela roupa. Seu único senão era a falta de mais aulas sobre temáticas niilistas, e a repetida matéria em pauta que lhe fornecia a aprendizagem das várias entonações para as expressões “sim, senhor” ou “sim, senhora”, quase o transformara num ídolo de palco teatral da arte da submissão. Por via das habituais dúvidas, porém, optou por repetir de ano sempre. Nem espera, na verdade, obter o tão indiferente diploma da Bejamanos. Vai ficando...

quarta-feira, 4 de maio de 2011

Quando expôs

Quando expôs ao pai sua intenção mais íntima, Marquinho levou logo um pescoção. “Já que você quer tornar-se paraquedista é bom saber logo que as quedas são dolorosas”. Mas o rapazote era perseverante como formiga no açúcar. Deixou o hematoma baixar e voltou-se novamente ao velho, para receber um subseqüente soco no estômago. “Para ser lutador de sumô é preciso ter a musculatura da barriga bem forte”. Como não pode comer nos dias imediatos, dada a dor estomacal, desistiu do sumô, pela necessidade da gordura, mas tornou ao pai, e foi quando recebeu um pisão em cada pé, de tal força que provocou a quebra de seis, dos dez dedinhos. “Esquiador tem que ter pés firmes, e olhe só para os seus”, sentenciou-lhe o pai, para finalmente propor-lhe um rumo na vida: - Olhe aqui, Marquinho, o mundo está precisando é de grandes poetas!

terça-feira, 3 de maio de 2011

Dona Maria

Dona Maria insistia em não ficar para titia. – Engraçadinho, disse ao cronista. E prosseguiu raivosa: - Toda a vez que você está sem assunto parte para a perversão com meus sentimentos íntimos. Saiba que não me casei porque não quis. Pretendentes havia aos montes, mas foi minha natureza que se pôs a titubear, justamente para evitar suspeitas futuras, desilusões possíveis e ofensas generalizadas. Só não previ essa coisa que às vezes me dá por baixo, nem a existência de um cronista besta, capaz de botar a boca no mundo para alardear meus fracos de alma, ou os meus frascos de calma. Está vendo? Você é tão persuasivo que acabo entrando no mesmo ritmo. Por piedade, vá escrever sobre temas edificantes! Desqualificada, basta a vida!

segunda-feira, 2 de maio de 2011

Impeliu a faca

Impeliu a faca, impediu a fala e imperou sobre a mais simples brincadeira das crianças: o balanço dependurado ao galho da árvore. Saiu do fundo de seu apartamento em frente, feito cavalo picado por vespa no ápice da parada. Tinha uma camiseta como veste e uma calcinha à mostra, além de esplendorosos gritos, com nenhuma distinção ou tato. Pôs em susto a petiz em pé, que empurrava a outra, no vai e vem do ar. Girava contra o juízo de facão em punho. Cascavel e guizo no barril de pólvora. Circunstância que lhes colocaria em risco a existência, pensaram as meninas afônicas, em carreira. A dona da lâmina não lhes queria o coração, o fígado ou o escalpo, apenas tirar as crianças da frente de sua casa. Com a maestria de um carrasco laminou a corda do balanço. Colocou em prática a justiça da maldade. “Cada qual que brinque em frente à sua casa!”.

domingo, 1 de maio de 2011

Esquentou a pizza

Esquentou a pizza. Era vegetariana. As escarolas lançadas originariamente frescas sobre a massa, coitadas. Encaracolaram como rúculas loucas, meio apretejadas, além do natural e do ponto. Botou no fogo o chá da véspera, que padecia sôfrego na pia, há dias. De artemísia. O azeite orgânico já por si rançoso seria o “plus”, quase um toque gourmet na gororoba saudável de Alice, que era assim, de uma sustentabilidade atroz. Para esperar o líquido esquentar foi ler um panfleto de protesto contra a usina nuclear do Japão, que depois do tsunami vazou. Seria necessária uma medida urgente. Quem sabe um ato público ou um abaixo assinado virtual. Sim, elaboraria e-mail a todos os conhecidos. Putz, o chá ferveu, parcialmente esquecido no fogão. A artemísia perde as propriedades quando ferve, fazer o quê? Vai bebê-lo e comer aquela pizza, ambos assim mesmo, mas bom mesmo é restaurante natural do shopping. Mais tarde passará por lá, depois do protesto pela impassibilidade do governo do Haiti, do qual não pode faltar.