segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

No cocuruto

No cocuruto, oito ou nove fios de cabelo davam conta do destino que o esperava. Já lhe doía o doce, o imponderável da vida de artista. Hesitar perante o fato passou a ser-lhe rotina. De pintor exótico e abstrato a palerma líquido e caudaloso foi uma passagem quase imperceptível, porque os anos de glória (que nunca existiram) eram bancados com a herança do pai, cujo montante também acompanhou à evolução de seus cabelos. O erro e o eco da esbórnia haviam lhe edificado uma arrogância intrínseca, um saber além das coisas desse mundo, um dom dos tolos e seus segredeiros de sabedoria apressada. Por via das dúvidas regressaria à arte, voltaria a criar os seus tons de texturas: um lado verde, outro vermelho, em moldura de mais de metro. Um vagalume esmagado na limonada, talvez trouxesse explícito o título, à margem dos pontos e da linha quase reta. O que nunca entendeu direito foi o porquê dos amigos lhe escaparem.

domingo, 27 de fevereiro de 2011

Balançando as pernas

Balançando as pernas, na extremidade da proa, Gilberto quis ser canoeiro depois de ler Guimarães Rosa. Era a sério, mas já não havia mais pau de vinhático para a confecção da embarcação. Comprou-a pronta, em três pagamentos iguais, sem juros. Jurou ao pai que iria buscar a terceira margem do rio. A mãe lhe conhecia os fogos de palha. “Cê vai, ocê volte, você nunca resiste!”. Cuidando de que o vissem no adeus, soltou rojão de despedida. Aquilo era tão insólito, pensou Lara, amiga de afeto e leituras. Gilberto encalçou o boné nike e colocou a tralha no barco. Foi a remo, sem pressa. Deu um dia, dois, daria o terceiro quando apontou no horizonte. Parecia abatido, estranho homem. O pequeno motor que levara por via das dúvidas tinha o destino em dois tempos de rumar para a margem dos parentes. A certeza de Gilberto era o vento na face, e a hipnótica frustração de não ter conseguido sequer tornar-se um personagem de Guimarães Rosa.

sábado, 26 de fevereiro de 2011

Foi no bairro

Foi no bairro Renascença e casa simples, com uma corda. Antonio Mariano, trinta e oito anos. Poucos se surpreenderam muito. Alguns amigos distantes choraram com a ausência e indignação. Tição, que morava no bairro, foi nesse final de tarde tomar umas e outras e estava do caralho (segundo relatou depois à viúva Lourdes). Entre ferramentas, todas com A.M. gravado nos cabos, havia também três promissórias vencidas a meses e uma carta de amor de ano atrás, com sinal de pouco manuseio. Nunca ninguém ousou deduzir se foi pelas dívidas ou pela paixão, aparentemente jamais concretizada. Na lápide de azulejos azuis mal assentados, hoje, lê-se apenas descanse em paz.

sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

Deus irá

Deus irá saber, mas acho até que já sabe, pela sua onisciência. Sempre fui apreciador dos bons jogos de xadrez. Estava em Leningrado, quando Boris Spassky perdeu para Anatoly Karpov. Parecia impossível, mas segundos antes do xeque mate, pensei em doar a Spassky um filhote do Petrosian, meu cachorro perdigueiro. Em 1974, fui ver Mequinho jogar com Korchnoi, e já match inicial, curiosamente, durante a partida, imaginei que ele gostaria também de um filhote de Petrosian. Pronto, o coitado perdeu logo depois. Aquilo me intrigou, será que meu pensamento era irmão da predestinação, ou seria o Petrosian um agourento? Por via das dúvidas, voltei ao estádio em 77, e meio sem querer, nos voltas do pensamento durante o jogo, quis homenager Mequinho com outro filhote do Petrosian. Confirmou-se minha suspeita, logo depois Lev Polugaevsky levou a melhor. Nunca tive a superstição de um rei, que se cerca de peões, torres, cavalos, bispos e até da rainha para se proteger, mas dei um xeque mate nos cruzamentos de Petrosian. Daquele cachorro nunca mais saiu filhotes.

quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

Os dados foram

Os dados foram enviados. Foram lançados, na verdade, para o sistema e para sorte. Na busca virtual de um emprego fixo, Galhardino teclou no computador a noite inteira, sob os olhares imprecisos de Darla, a siamesa. Encontrou um cadastro às quatro horas da manhã. Caprichou na performance: habilidoso, dedicado, cumpridor, saúde perfeita. Compôs seu perfil para além do necessário, mas aquele sono... Nunca dormiu direito, e essa foi a razão da noite. Muitas, inúmeras, sempre alerta. O dia claro jamais teria as mesmas maravilhas. Nem observou o asterisco da página, que pedia para vaga um sujeito madrugador. Por via das dúvidas, enviou à empresa um e-mail complentar, depois de inscrever-se: “acabo de acordar!”.

quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

A gotinha foi



A gotinha foi crescendo na quina da janela. Engordava aos milímetros, com balanço sutil e sinais de êxtase. Era nada no todo da paisagem. Só se podia vê-la em primeiríssimo plano. No segundo, era o esquadro todo que definia a forma. Ao longe, nuvens carregadas, despejando água com a impiedade de um carrasco em delírio. Enchente em composição na enxurrada ligeira que levava os galhos, latas e coisas. A gotinha era um contraponto do tempo. Trêmula à réstia de vento e luz opaca, equilibrista de pernas para o ar, oscilante no trapézio à beira de um salto mortal. Pra lá, pra cá, cai, não cai. O desespero da gotinha ante a vida por um fio era evidente. Hamletiana criatura que já não sabia se era ou não, sem nenhuma questão. Impossível suportar o pânico da gotinha da quina da janela. Melhor virar a vista para dentro da casa. Na manhã seguinte, com certeza, não haverá gotinha alguma, só o recorte da janela, em primeiríssimo plano.

terça-feira, 22 de fevereiro de 2011

Confesso, mas

Confesso, mas tire a mão de minha perna. Foi assim... ela lá. Com cautela, cheguei borbulhante, feito as bolas explosivas do sal de fruta. Na hora, ela nem reparou. Sabe a avenida dos Girassóis? Então, lá perto. Parecia que ela estava em Amsterdam, a holandesa. Pensei assim, holandesa. Nem era loira pra tanto, mas a gente tem essa mania de inventar amores e nacionalidades. Búlgara, já acho nome feio. No pensamento pode tudo. E tenho essas grandezas importadas, vai ver foi minha fissura pela Brigitte Bardot quando criança. Ou o ray-ban que não ganhei, sei lá. Não mexi, aproximei-me para pedir as horas. Já era tarde. Ela mal me olhou antes de subir no ônibus. Subi atrás. Sentamos juntos, assim, com a gente agora. Não aconteceu nada demais. Quer fazer a gentileza de tirar a mão da minha perna.

segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

Peso nas pálpebras

Peso nas pálpebras e de quebra outra garrafa de vinho. Enjôo iminente e o balanço da cortina com o vento. Verde tontura, amarelo tédio. Impossível emplacar outra taça com a confiança do primeiro gole. Fosse homem feito e talvez nem mal fizesse. Demônios adolescentes não têm papas na língua, invadem ouvidos com conselhos avessos. Ao lado da mesinha Guto fala. Matraca o loquaz compulsivo, agora amigo de copo. Mas, inexpressivo. O vinho que já subiu à compreensão. E se Guto fala, se fala, Guto, se não se esforça mais por compreendê-lo, amargo. Incompreensíveis frases de histórias e feitos. Compridas, infinitas. Herói ou vítima. Vinho, embora... sim, precisava ir embora agora. Alternativa incorreta. A mãe dirá que assim nunca entrará em medicina. Querer, quer, mas esse atordoado cinema distorcido vai colocá-lo nas artes. Guto não para nunca mais de falar.

domingo, 20 de fevereiro de 2011

Melequem-se

Melequem-se! Gritou o vulto eqüidistante entre os meninos no barro e o desespero das mães dondocas, que viam aquilo como uma vilania. A festa em ziguezigue de pompas e baixarias triunfantes dava-se plena. Duas da tarde. Homens aumentavam o volume das vozes – uísque com cerveja; mulheres lhes falavam mal. Todas. Cada qual desmerecendo seu par e desejando o da outra. A sonoridade sem paciência, o arbítrio do ninguém vai embora, a obrigação da vida em sociedade, dava a dimensão do escracho. O vulto volveu com “podres!”. E ninguém ouviu direito, ou não atentou, ou cantou a repetição da palavra, pensando tratar-se parte da letra da música que tocava ensurdecedora. Repleto de terra e umidade, o mais novinho grudou no short branco da mãe, que deixou cair a empada. “Cacete, Tiago, você quer me deixar pelada?”. A criança chorou. “Só pra irritar”. Do vulto, a advertência sonorizou o ar: “Sodoma!”.

sábado, 19 de fevereiro de 2011

A pressa específica

A pressa específica de Fúlvia devia-se ao horário do dentista. A agitação, a um dilema que devia ser de nascença: engordava ou não a cada hora? Havia mais cheinhas, mas Fúlvia via as pitadas de suas proeminências como monstros lilases que lhe saltavam da pele. Era como se ouvisse acordes de clarins a cada mordida no palito de aipo, ou luzes de advertência em cada gole de chá verde. Comia pela obrigação tirana de manter-se viva. Tamanho enjoamento deixou Mário, seu marido, com a indigestão dos calados forçados. Dissesse que Fúlvia deveria tentar outra mordida, e sofreria o golpe da má educação da moça: “quer que eu arredonde?”. Falasse que não comesse, e viria a máxima redundante: “quer que eu morra?”. Nem gordo, nem magro, o coitado do Mário se foi primeiro. Morreu de enfarto numa sexta-feira, em plena crise de nervos após uma festa em que tinham ido juntos, na qual os salgadinhos estavam deliciosos.

sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

Terapeuta notório

Terapeuta notório, Tiago era só consultas. Deite-se, relaxe, fale-me mais sobre isso, e então você fez quê? Conduzia a conversa com os pacientes, cooperando com o propício ócio do doente. Até que Beatriz reclamou-se uma “sem cartões”, o que lhe tirava a ânsia de viver. Não dos cartões de crédito, mas daqueles que falassem de amor. Tiago a recomendou que postasse a si própria um belo cartão dourado, onde pudesse ler: “você é a pessoa mais viva do mundo!”. Foi batata! Beatriz revigorou-se, linda e dinâmica, queria dançar, cheirar flores, dar-se ao ar livre. De felicidade, enviou um cartão ao doutor Tiago: “você é a pessoa mais viva do mundo!”. Tiago recebeu o mimo e caiu em depressão. Não soube bem se auto diagnosticar. Sabe apenas que perdeu a ânsia de viver.

quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

Dois umbigos

Dois umbigos foram marca e exagero de Deus com Jaqueline. Espécie de proibição implícita para que a pobre não usasse biquíni, blusa curta ou tomasse banho à vista das amigas e namorado. Feito olhos aferrolhados à barriga tanquinho, a beira da aberração era escondida a quatorze chaves – sete para cada orifício. Jaqueline julgou que fora siamesa no útero, e aquela segunda depressão na pele, sem que soubesse ao certo qual das duas era a primeira, só poderia ser uma irmã morta no ninho: um cordão umbilical que deu em nada. Mas ela, afinal, no quê dera? Cova oculta na vida. Buraco a mais na existência? Na falta de compreensão e excesso de vaidade foi ao cirurgião plástico. “Simples ou completo?”, perguntou o douto. Por economia e benevolência Jaqueline optou pelo primeiro. Não queria levar para a sepultura a culpa de ter assassinado a irmã.

quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

Polenta por meses

Polenta por meses, e deu-se periquito. Incorreção era a fome, depois do bicho retirado do ninho. As pálpebras quase nulas pouco cobriam aqueles olhos assustados, sobre o biquinho débil e monstruoso. Exercitado o gosto, a tarefa era encher o papo. “Mãe, mãe, mãe”, queriam ensinar ao bicho, entre os olhares profanos e entrecruzados das raças distintas. Que periquitês sofrível, naquela raspa grudenta de papa e palavras. Abafada a fábula, a charla do periquito dá sinais do som. Charleia, parla coisas como “mãe, mãe, mãe”, com o sentido do óbvio sem faculdades. Remota lembrança dos demais grunhidos, tritinos, roncos ou pios do homem professor de um áudio só e desafinado. De frente para o infinito, o periquito olha em comunhão para o céu. Confisca os raios solares em desprezo as outras vistas, mas no fundo espera a papa... de polenta.

terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

Fósforo molhado

Fósforo molhado, tocos de velas e uma indefectível toalha de crochê vermelho, já um tanto desbotada. Joel criara ali o memorial de seus cachorros mortos, e pelejava inglórias tentativas de acender uma vela para Raia, sua cadela morta há pouco mais de uma semana. A fotografia era a mais recente, entre outras trinta, quarenta, desde aquela amarelada do centro, na qual um garrancho de tinteiro estampava enes e as em letras trêmulas: Naná, talvez existente há outros trinta, quarenta anos. O altar era uma espécie de companheiro íntimo de Joel, que agora vivia sozinho, e que jurou a si mesmo jamais ter outro cachorro, como sempre jurava quando um deles morria. E foi dona Cleide, viúva que tinha lá seus encantos por Joel, quem lhe quebrou o juramento, ao chegar com a cadela Judy. Mórbido, porém, Joel primeiro a fotografou...

segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

Estercou a terra

Estercou a terra e plantou dálias estendidas. De certa maneira, ali cultivou seu mundo emoldurado por uma cerca baixa de madeira branca, onde guardava intenções metodicamente regadas todas as manhãs. Minuta da vida com um punhado de sentidos. Ali a hostilidade era o bolor, se muito forte, o Sol era empecilho. Administrava paradoxos com a lógica dos criadores. Quando não dá, muda. Crescerem, as dálias cresciam estateladas de metáforas. Miudezas que não eram dos outros, ninguém as via nem interferia. Interveio o verão sem licença certa vez, mas ele as cobriu com rendas. Sabida sutileza da continuidade perene. Quem passou logo viu que ele já não estava mais ali. Havia dálias abismadas clamando água e clemência.

domingo, 13 de fevereiro de 2011

Cantou vivas

Cantou vivas numa língua morta. Parecia um sapeca moleque a comemorar vitórias vãs de uma corrida à esquina ou jogo de futebol de botão. Nem tchum ao ano de década cheia a si, em que comemoraria seus oitenta. Com a verve pueril de um palhaço em cena desatou a fivela do cinto e o levou ao contorno da cabeça: “sou Rock, um lutador”. Demente como um Stallone, isso sim, devolveu-lhe a filha já senhora séria. Então César, com ares de imperador romano, modos de gigolô da Augusta e hábitos de cão perdigueiro disse, paulista quatrocentão estereotipado: “ôrra, meu, ‘cê quer tirar o açícar do meu formigueiro?”. Deu de trêmulos ombros, virou a cara e saiu tenor, cantando a patativa de Vicente Celestino.

sábado, 12 de fevereiro de 2011

Molhou o espelho

Molhou o espelho para que embaçasse depois. Era frio, calor, mormaço, nem sabia direito daquele fogo que sentia por trás do peito e antes das costas. Coisa enovelada, meio ardência, desejo ou falta de enlaço. Era sábado. Amigas dilatadas foram às farras. Outras, nem sabia, oravam, cantavam, namoravam os seus, sabe-se lá. Empossada de um certo espanto só sobrevivia. Porque leveza que era bom; asas, então, nem precisava dizer; não as tinha. Finita naquela casa piorou lendo Hilda Hilst. Sem reposição de águas, com a secura de uma danação e a aridez de um ódio, tomou a si as dores das décadas. Trinta anos e austera. Cadência de nadas. Nenhuma armadilha ou traição de amor: um minotaurozinho que fosse naquele labirinto. Melhor deixar para o domingo, porque na segunda volta ao trabalho. E a figura de seu rosto, já está mesmo toda distorcida no reflexo opaco daquela fumaça do banheiro.

sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011

Conhecê-lo no terreno

Conhecê-lo no terreno dos malefícios, Sofia não o conhecia. Depois foi um tal de benzinho pra aqui, benzinho pra ali. Enigmática essa imperfeição. Uma vastidão de me toques deixou Sofia no máximo da amplitude. Era capaz de duvidar das perversões que falavam, enquanto traçava o mapa geográfico dos pontos de Guilherme. Erro e eco, que fossem os outros. Berro que deixassem a ela, solto nas intensas paixões que com ele fez por merecer, palerma. Um quê que confunda as regras, uma Lua que não trouxe à mostra. Grávida, a Sofia. E aqueles quatorze bem vividos anos deram-se a ré sem razão: sem despedida, uma barriga aos crescer os dias. O remoto cortejo inexistiu então dali em diante, e Sofia só pensava em extrair da vida tudo o que dela tomou sem percepção ou eixo. Jôndipe nasceu depois dos nove regulares meses: parecia um pirata do Caribe, ela dizia orgulhosa e indiferente.

quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011

Onde e quando

Onde e quando não poderia, Divanete, a faxineira, punha-se a limpar. Com a sutileza de um domingo de ramos, punha-se de rodinhos e baldes no corredor central da paróquia, lançando águas, puxando-as e cantando no exato momento em que o padre fazia a consagração da hóstia, e o coroinha tocava o sininho. O vigário a dispensou. Mas Divanete era trabalhadeira, e não tardou conseguir emprego no escritório de advocacia. O dono atendia ao casal que ajustava o divórcio, definindo quem ficaria com as panelas, quando ela, Divanete, soltou seu balde no chão da salinha, feito um juiz batendo o martelo. Dali à sossegada residência do escritor, localizada no alto de um morro, foram apenas alguns dias, após a nova demissão. O homem centrava-se em seu computador, com o silêncio dos raros pássaros e os pensamentos no labirinto das palavras quando ela, Divanete, dá partida num ensurdecedor aspirador de pó. Não foi demitida, mas mudou para sempre o texto nunca escrito do autor.

quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011

Desvarios déspotas

Desvarios déspotas, então, Honorina os tinha aos montes. De bater na cara alheia ou dar com a bunda no chão. Não dialogava, assediava. Deitava parábolas que a colocavam na condição de divina ante as quinquilharias do mundo daqui. À guisa de superior, não admitia contestações em nada: da decisão de se ir ao mercado à opinião sobre os valores musicais de uma canção. E, cá entre nós, era cafona e deselegante. E, mais cá entre nós mesmos ainda, tinha uma idiotia intrínseca e um mau hálito de parar interlocuções. Agora, tinha quem gostava! O Paulão, por exemplo, sempre quites com as vontades da louca, lembrava um leão de chácara daquele patrimônio de humanidade duvidosa. Por ela, era capaz de por em risco os limites da vida, sem se importar com os constantes desafiadores. Dizem que aquele olhar de soslaio que ambos se ofereciam tinha um quê de recôndita paixão. Não sei. Duvido até que Honorina era capaz de amar alguém.

terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

Vestido verde

Vestido verde. Tem que esperar esfriar, disse minha mãe. A casa dos avós tinha fachada rosa. Três degraus de acesso, banquinhos. No cimentado vermelho cera brilhante e escovão pesado. Goiabas com pontinhos de ferrugem, boas mesmo assim. No final, já tomava o ar o cheiro do pão doce. Havia antes do fim o ritual do caldeirão de tampa alaranjada, para onde iam todos os pães depois de frios, bem depois de saírem do forno, muito depois da manteiga derretida na boca. Perfume de sabonete, short de tergal, de elástico, de sobra da calça do pai, de passeio quando novo, de mergulho no poção do riozinho abaixo. Arroz temperado e aprendi a ler. Parecia um sonho viajar pelo mundo: oitenta dias em uma semana. Verne também, mas era infância.

segunda-feira, 7 de fevereiro de 2011

Desafronta ligeira

Desafronta ligeira Catatau sabia como fazer. Homem de bateu, levou; de cantou? agora dance; ajoelhou tem que rezar. Era um estalar, uma faísca, uma explosão a qualquer chiste. Não conhecia morais de histórias que no final conferissem derrota ao valentão. Não. Catatau era predestinado mesmo à vitória seca, sem nuances ou paralelices. Ao crivo de perguntas que o delegado desferia-lhe sem piedade, dava respostas quase agressivas, que lhe conferiam variações insólitas de legítimas defesas. Um pensamento desbloqueado, à beira do pueril. Catatau só falava verdades, que às vezes doíam como os próprios fatos (notadamente nas faces e nádegas de seus adversários). Sem ter como sentenciar Catatau, o delegado decidiu dispensá-lo, mas sugeriu-lhe que tomasse um calmante antes de sair à rua. “Mais um, doutor?”, esbravejou o homem. E foi embora.

domingo, 6 de fevereiro de 2011

Resignei-me a ser

Resignei-me a ser o único errado. Comi a galinha morta, manga com leite, olhei-me no espelho depois do almoço. Houve gozo de felicidade sem limite, quase tão curto quanto o tempo de um orgasmo, mas quantos já se sentiram assim? E todas as seduções de uma vida metódica deixaram-me um pouco incrédulo. Esperar a morte, nem pensar, muito menos apressá-la. Antes surdo do que espichar o rabo pelos cochichos, pensei, quando dei aos cotovelos o que falar. Toda essa íntima ousadia nunca teve por mote indignar a ninguém, pelo contrário. É preciso validar quimeras para escapar das circunstâncias úteis, ou não há medíocres que se apossam de poderes a partir de niilidades e despautérios? Não que eu pense como esses tipos, mas aprecio pastel de faisão ou pizza de brie, sem moderação.

sábado, 5 de fevereiro de 2011

Naquele momento

Naquele momento de hesitação mútua, o menino puxou o elástico. A menina fez cara de quero, mas guardava num short vitalício a noção de arte da infância. Bravo, caçador, desbravador, explorador, conquistador, triunfante, o menino. Ansiosa, perplexa, excitada, confiante, duvidosa, suspeita, indecisa, a menina. Perturbações comuns, culpas iminentes. No afã daquilo que em instantes poderia ocorrer, a indecisão. Como um franco atirador a poucos metros da vítima, o menino alçou mira. Não haveria, para a menina, a culpabilidade plena, quiçá nem pena, apenas a cumplicidade. Uma pedra de toque. O menino atirou. O passarinho voou. Sorte do bichinho, aquela imprecisão toda do menino ao estilingue. A menina sorriu, no fundo, aliviada.

sexta-feira, 4 de fevereiro de 2011

Em outra ocasião

Em outra ocasião. Acabo de me lembrar que na última vez que tomei fiquei um dia inteiro de cama. Deixe-me ficar com meu silêncio, porque a lembrança exclui em si outro desejo. Sou parente próximo de minhas recordações, consangüíneo. Essa coisa anula o entendimento e tudo vira um imenso nepotismo de sensações. Não sustento as curvas ou adversidades, nem tenho confiança em minha idoneidade para o sofrimento repentino. Posso vacilar. Levar cano da razão, desleixar os restos, provar venenos, usurpar consciências. Estigma humano, talvez, meio animal que é.

quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

Ela era doce

Ela era doce e voluntariosa. Nada a satisfazia plenamente, mas não recusava nenhuma oferta, fosse de comer ou de lazer. Obrigações, não as tinha. E, vontades alheias, também nunca as aceitou, ainda que lhes fossem convenientes. Mais atenta do que o macho idêntico, tinha a percepção das nuances para um gesto ou fato ínfimo. Feminina intuição. Provavelmente despediu-se dos donos sem que os próprios o percebessem. Provavelmente diagnosticou sua moléstia incurável assim que o primeiro sintoma tocou-lhe o corpo. Provavelmente fez dengo para enganar o tempo, mas a morte não se deixou levar só pelo seu charme. Às turras, ordenou severa à cachorrinha que, enfim, cumprisse uma determinação. Ainda que uma única.

quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011

Grasnou elogios

Grasnou elogios a rodo. Varreu da sala qualquer dúvida sobre sua desconfiança em relação ao doutor Heitor. Homem direito, nem um pouco dado à comédia de equívocos que se apresentava como de sua autoria. Ele, doutor Heitor, jamais teria dito que dona Anabela era uma cadela. Nem passaria por sua cabeça julgar o filho dela um pervertido, a irmã uma adúltera, o marido corno ou a mãe uma cafetina. Não, doutor Heitor não era homem desses vulgares engenhos diabólicos. Que a teria visto às rodas com moços, isso sim, mas jamais se soube a intenção destes moços. Que o filho tinha por hábito levar os amiguinhos para sessões de filmes lascivos, até poderia ser verdade, mas daí à perversão... Depois, não haveria como julgar-lhe a irmã, só porque num deslize, em má fase do casamento, andou saindo com Toledo. Que Anabela revidou a traição do marido, é notório, mas isso é irrelevante. Já a mãe, coitada, que Deus a tenha, sempre lutou para que as filhas se casassem com homens ricos... mas daí à cafetina, não. E encerrou a conversa.

terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

Depois não

Depois não haveria mais como contar. Então se preparou. Era preciso salvar a coisa maior. Um final com requinte exigia antes respirar fundo. Jácomo foi ao litro de groselha e mergulhou a ponta do florete, retirou-a devagar e observou os pingos. Agora, sim, iria à sala. Foi. Era metódico como um daqueles guardas da rainha. Tomou o rumo do sofá. Tobe, a cadela de Janice, quase nunca saía de lá. Armou a pose de ataque e desferiu uma única pontada no coração da bichinha. Retornou à cozinha a apanhou a sobra do doce líquido. Entornou o que havia, junto ao sangue do animal, e aguardou paciente a chegada da noiva. Um grito eclodiu da moça. E meu Deus. Minha pobre Tobe. Jácomo se encheu de meus sentimentos, de que tragédia, de não é possível. Então levantou o litro de groselha com o disfarce e a certeza de um grande detetive criminal: “Veja, Janice, a coitadinha engoliu todo o líquido... pobre diabética!”.