quinta-feira, 31 de março de 2011

Danada da pressa


Danada da pressa que fez Tárcio perder Paulina, pelos minutos que se antecipou ao fim do baile de formatura, no qual ela esperava que enfim, depois de quatro anos cursando juntos administração de empresas, ele pudesse redimir-se do descuido de mal tê-la percebido afim, ainda que se sentasse próxima a ele nos poucos minutos em que o rapaz permanecia em sala de aula, antes de arrumar uma outra pressa, dessas de um telefonema urgente ou tia doente, para ausentar-se correndo, como se sua ausência, no suposto outro episódio que motivara a correria, fosse tão imprescindível quanto aquela coisa que crescia platônica no peito de Paulina, levando-a a cometer o descuido de deixar todos saberem de seu interesse urgente por Tárcio, o que motivou incontáveis gozações, especialmente da parte dos colegas homens, que com ela brincavam sem piedade: - Esse Tárcio é um ligeirinho relapso!

quarta-feira, 30 de março de 2011

Primeiro, o burburinho

Primeiro, o burburinho. Segundo ouvi eu não engulo. Terceiro homem a morrer de picada de abelhas, em lugares distintos, no mesmo dia, é demais. Quarto vazio põe a gente a pensar nas histórias que dizem. Quinto dos infernos, nada pra fazer: só chão e paredes. Sexto sentido ó, nem tchum. Parece sina de família. Sétimo dos irmãos, meu avó dizem que ficou louco do nada. Oitavo dia e adeus; foi ter com outros parentes que há muito enlouqueceram na história de nossas gentes. Nono era um bom velhinho, falador de coisa com coisa, retidão em dia, deslize algum. Décimo terceiro guardava para o futuro, numa caixinha amarelada que apelidou do modo como chamava a avó: meu tesouro! Como se passou faz tempo, jamais imaginei que um dia me colocariam aqui, nesse manicômio. Uns doutores aí dizem que é só obsessão. Outros acham que é mais grave.

terça-feira, 29 de março de 2011

O discurso morreu

O discurso morreu de velho. Sobre a postura do compadre, que decidiu abandonar o velho aquário para não ter mais que comprar ração aos peixinhos ornamentais, Adelino sentiu o prato cheio. Sapecou que o homem era um sovina ao cubo, uma progressão geométrica da pãodurice, mas bem sabia que há dias ele próprio não levava carne para casa, sob a desculpa das maravilhas de se viver os vegetais. Um naco de nabo, pé de alface e três batatas médias, pra semana. Foi a velha Matilde, tia, numa nefasta fala, quem corrigiu o dito cujo. “Você fala contra, mas faz tal prol”. Adelino especificou, qualificou, prontificou e nada justificou. Exceto que compadre era aquilo – sóbrio sarcasmo. Quando já batia o vento no rumo da Lua, o compadre apareceu do nada, com a camisa molhada nas mangas: “trouxe aqui uns peixes, pra vocês não passarem fome!”.

segunda-feira, 28 de março de 2011

Distinto entre tantos

Distinto entre tantos, tanto fez que já não se distingue. E se o que fez foi bom ou erros movidos a bafo, qual o fulano o apontou antes para que miúdo se tornasse? Os rios continuam lá, roendo pedras. O cão distraído, mijando onde não deve. A balança pendendo para a gravidade do furto. Enfim, nenhum sotaque equipara-se à língua nativa, nenhum azeite é áspero ou açoite leve. Pouparam-lhe aplausos sem notar o engodo essencial que o motivou às imediações dos gestos, ao solavanco das falas, às goelas abaixo. Botaram-no no ar em esquadrilha de abominações e agora nem têm dúvidas, incertezas ou clemência, têm uma espécie de peste sobre a qual a indiferença arromba a razão. Seguem os sampaios, santos e silvas. Cismam oliveiras, faíscam figueiredos. E ele lá, cabisbaixo, como quem não quer ter o bastante.

domingo, 27 de março de 2011

Escapava à razão

Escapava à razão. Havia em algum daqueles fundos da alma uma dízima psicótica com labirínticos coaxares de sapos mágicos. Constrangeria Lewis Carroll, atordoaria os irmãos Grimm, quem sabe até conversaria de igual para igual com Jorge Luis Borges. Palidamente incógnito, soltava às tontas altos impropérios, sempre que o assunto exigisse seriedade. Seus vastíssimos desígnios à inconveniência palpitavam corações desavisados, levando os interlocutores incautos à beira de surtos nervosos. Leviandade e inconsequência, por circunstância, vestiam-lhe como as águas de uma piscina nos vestem quando entramos dentro dela. Só tão louca, quanto ele próprio, era Adélia, sua amada e companheira. Não por solidarizar-se ou vislumbrar-se com as insanidades que dizia, mas quase sempre por não entendê-las e, sem fingimento ou reverência, perguntar o porquê das falas. E olha que esse amor já dura cinco anos...

sábado, 26 de março de 2011

Cometeu o desplante

Cometeu o desplante de continuar respirando. Por acaso teria pensado que era uma flor, um naco de açafrão, borboleta ou qualquer uma dessas coisas que têm cor? Por sorte o assédio assemelhou-se a um olhar. Fosse um diagnóstico médico e o matariam. Não previu, nem preveniu que o fingimento deveria ser autêntico, sem intempéries ou azares livres. Elementar, caro Heitor. Os carinhas tinham facas, tralhas e crack na cabeça. Frases bestas e um sacrário de pedras loucas nos bolsos puídos: tesouro do vazio que já os habitava antes do golpe. Encher a vida de acidentes seria outro mero acaso. Faltou-lhe sensibilidade, Heitor. Geléia no gingar, exagero no convir, jogo de tintura. Urgia tornar-lhe um cadáver, para arrancar rápido tuas luvas ou carteira gorda. Obstou-lhes a obsessão iminente, agora agüente. Putz, Heitor, até rima fica ruim diante de você assim, todo cicatriz, todo torto. É tarde para ser esse déspota esclarecido, lamentavelmente, você perdeu a vez... e o senso.

sexta-feira, 25 de março de 2011

Tremula a chama

Tremula a chama ao lado do dinheiro arrecadado. Convocações às pressas, dores e miudezas. Tudo tão inoportuno quanto viver. Suscitou que Ciro se foi assim, entre perdizes e faíscas, no mato sem expensas onde se fanatizou caçador e só. Lá bem longe da vila mais próxima, no errado das caças. Farta pouca fartura. Autoridade a ninguém. Pelo bem também escravo ou empregado de ninguém. Contestação explícita do nada. Noites adentro de mistérios solos, mal dormidas fomes. Pego de bruços não movimentou uma palavra. Na metamorfose pra vila teimou pelo peso, mas o carregaram assim mesmo, já morto. Chovia ralo na cabana, que como uma nau a pique, palpitava inquietações. A vaquinha pro velório, pinga e coisas leves em voz baixa. Finalmente parado, só esperando, ele não encafifava mais nenhuma fuga. Paradão deitado. Agora parece que está tudo em ordem... vão enterrá-lo, com reza e tudo.

quinta-feira, 24 de março de 2011

Além do cão

Além do cão pastor, José Maria tinha fixação pelo alemão. Não foi com a vontade da patroa que registrou Kassel, como nome de seu primogênito. Mal acostumou com o nome do primeiro filho, a grávida já advertiu ao marido: - essa será Maria, tá? A pobre ainda se recuperava da cesariana quando José Maria apareceu com os documentos: Dusseldorf da Silva. Foi um menino, justificou-se. A mulher não desistiu. Mesmo depois quarto rebento, Stuttgart da Silva, que sucedeu Hannover da Silva, quis tentar uma menina, depois de uma noitada de cachaça, na qual José Maria colaborou com a participação apenas necessária à prenhes, e dormiu como um anjo de Albrecht Dürer. Passados os regulares nove meses a criança nasceu, linda, apesar da beleza relativa de José Maria. Como havia prometido, ele a registrou Maria. Maria Munique Colônia da Silva.

quarta-feira, 23 de março de 2011

Diz ter apreço

Diz ter apreço, o homem de roxo. Nunca demonstrou porque não lhe exigiram. A mulher de amarelo também, mas nenhum comentário. O rapaz de cinza, então, exacerba! Enfim, nunca acreditei mesmo nessa estima toda, exagerada consideração. Por certo são dessas cenas, que nunca passam duas vezes no mesmo filme. Também durante, não só diante, desconfiei das intenções torpes, das parabólicas bondades, declarações precoces. Todo esse turbilhão de desvarios, de julgamentos pelo benquerer, desvios em desvãos só podem ser rodeios aos precipícios nos quais pretendem me empurrar. Eu, eim? Frases afiadas, afinal, sempre me foram dúbias. Confortabilíssimas tergiversações para a ocultação dos princípios. Neguinho que faz questão de frisar que gosta de você, meu velho, é problema!

terça-feira, 22 de março de 2011

Ciclo simples

Ciclo simples de ser traçado, esse aí. No primeiro período, atitudes dignas. No segundo, a proximidade. Depois, a luz das palavras sábias, atitudes românticas. Então a economia intelectual e estética. Do quarto em diante, o entusiasmo limitado. Veio o mau humor e a tristeza antecedendo o tédio. Orlando já não suportava aqueles cabeços oxigenados, as minissaias cintilantes ou aquelas calças coladas às fendas e saliências. Foi involuntária a audição do monólogo no qual ela tentava explicar a si própria o porquê de se ter com ele. Então juntou aquele monte de motivos. A indiferença oscilante entre aquela voz e os estridentes sons da música que ela ouvia, abatida nas batidas, meio junk, meio minimalista. Adolescente buscando o domínio no mundo dos adultos só pelos gestos, sem os compromissos. Aliás, o último gesto de Orlando fez o pelo sinal, antes de dar partida no carro e ligar uma valsa vienense...

segunda-feira, 21 de março de 2011

Brando e dissonante


Brando e dissonante, se personagem de desenho animado seria uma espécie do disneyano Touro Ferdinando, não fosse o desdém pelo asseio. Juvêncio era forte e até bom, mas fedia. Melindrado com qualquer palavra que lhe denotasse o cheiro, quase sempre ficava na sua, olhando conversas ou desfrutando a brisa do vento. Por dádiva ou acaso, conheceu Isabela, alma gêmea. A fetidez do casal tornou-lhe escasso o convívio. Mesmo com instrução mediana, que garantiria a quaisquer outros um trabalho menos insalubre, os dois foram carregar carnes bovinas no frigorífico da vila. Toneladas de traseiros, picanhas, filés e alcatras passavam-lhes pelas mãos cotidianamente, para seguirem aos açougues. Curiosamente, a procura pela marca daquela carne no comércio local começou a crescer. Houve filas por uma maminha. Brigas pela fraudinha. Empurrões para se comprar o medalhão. Juvêncio e Isabela dão um duro danado para darem conta do serviço. Chegam a suar bem mais do que suavam sobre as carnes.

domingo, 20 de março de 2011

Porque cismou

Porque cismou em conferir o número de vagões nos comboios nunca saía da margem dos trilhos. Passava horas com um pequeno bloco de anotações na mão, olhando nada, olhando os trens. Estava no trigésimo quinto quando ouviu o estampido. O lápis lhe fugiu das mãos, precipitando o grafite sobre as rodas pesadas, logo esmigalhado. O destino viera pelas costas, se deu conta, quando a condensada mancha de sangue cobriu-lhe o abdômen, depois de sentir uma espécie de picada nas costas. Bala perdida. Transfigurou-se aflito com a turva visão de policiais que perseguiam um homem e o medo iminente de perder a conta. Havia uma espécie de eco no oco da cabeça, tralhetando-tralhetando com o som contínuo do barulho metálico. Quarenta e oito, quarenta e nove. Moribundo pânico. Sessenta e dois, suspirou derradeiro. Encontraram um sorriso preciso em seu cadáver.

sábado, 19 de março de 2011

Engorda assim

Engorda assim a que horas? Era irônica, sem dúvida, a pergunta que Oduvaldo fez a Arlete, logo depois da arrogante dizer que há dias não comia nada, andava indisposta. As damas presentes já esperavam uma resposta atravessada da amiga gordinha, quando o misterioso Fúlvio tocou a campainha do pequeno apartamento. Ninguém o conhecia, mas todos pensaram tratar-se de um amigo de outrem, foi ficando. Elogiou as formas de Arlete, intuindo inclusive que seria oportuna a colocação “você está um pouco abatida”. Pronto! A robusta derreteu-se. Como se nem reparasse na bandeja de kibes que passava, deu-se à prosa com o moço. Logo tratou de elogiá-lo, “porque Fúlvio é isso e aquilo”, “porque Fúlvio é demais e sacado”, “porque Fúlvio tem o equilíbrio dos lordes”. O fastio tomava conta da festa quando Fúlvio sacou o revólver que ocultou todo o tempo no casaco. “Isso aqui é um assalto, otários!”. Todos, menos Arlete, prestaram queixas no distrito.

sexta-feira, 18 de março de 2011

Olhou no fundo

Olhou no fundo da mentira, quis mais. Achava que aquilo era de nascença, então pouco se lixava. Era um vinagre em tonel de carvalho. Um filé de lagosta no meio do pão amanhecido. Quando Evavilma argumentou que avó sofria de gota, e naqueles dias mal andava, Toledo receitou barbas de milho, porque sim. Fora há anos ao velório da velha, então avó de Celsinho, primo irmão de Evavilma. Mortas não sofrem de gota, pensou faceiro, mas deu corda. Faria um suco de cebola para mostrar à moça como haveria ela de fazer à avó. – Beba tudo! Insistiu matreiro. Evavilma relutou, porque não. Foi a deixa pra Toledo. Melhor que aquilo só alho mordido; alfafa ou grama, mesmo, ambas bem batidas. Já às lágrimas, a moça confessou o embuste. Toledo disse que sim, a perdoaria. De cena fez-lhe um aceno e se foi, com um oceano de glórias.

quinta-feira, 17 de março de 2011

O pacto do pato

O pacto do pato era com os jogos de videogame. Não ganhava nunca. Nas diversões solitárias jamais conheceu uma segunda fase. E tentava... Sonhando que desse liga, virava a noite naquilo, entre estridentes sons metálicos e infalíveis telas negras de game over. Betinho nunca entendera bem porque Normando era aquilo. Bons conselhos, dicas certas e até narrações em tempo real sobre os procedimentos que o amigo deveria adotar para não errar, Betinho os dava. Chegou mesmo a propor-lhe um segundo pacto: lerem juntos um romance sobre as Cruzados; quem sabe Normando pudesse enfim absorver o quanto é ruim ser ruim em alguma coisa? Mas nada, Normando deu play e prosseguiu sua sina derrotista. Já está na fase adulta, mas sabe bem que o jogo terá uma terceira fase, ante do game over.

quarta-feira, 16 de março de 2011

Por conta

Por conta de um desentupidor da infância, Adolfo adulto teimava que o diabo era verde, jamais vermelho. Dizia que o cão era duro com um metal, que uma vez exposto ao fogo durante um longo período acaba se tornando esverdeado, até enveredar pelo verde puro. Depois havia a possibilidade a existência de florestas em parte do inferno, que ao contrário do Sol, a luz, poderia não ser quente por todos os lados. Desde que o mundo é mundo o diabo estaria exposto à clorofila parcial, e você sabe, depois de muita clorofila... Adolfo não poupava argumentos extemporâneos. Em roda no bar, chegou mesmo a comprovar que o tal seria torcedor do Palmeiras e, o tal como tal, logicamente teria sua predileta definida em si. Para não dizer que era uma coisa “verde de inveja”, “verde raiva”, “verde de maldade”. Não tardou instigar Zé da Tica a entrar no assunto. Coçando um pouco cabeça, virou-se para Adolfo: “irmão, você tá doidão de absinto!”.

terça-feira, 15 de março de 2011

Máquina de baile

Máquina de baile, Cleonora dançava sozinha, acompanhada ou sonhando. Sicrano ou beltrano, só precisavam de um piscar de dois lumes. Lá bailavam. Encantavam-se pela leveza do ar cúmplice. Ar venal e ritual, que se dispensava do fardo de propiciar espaços. Cleonora conduzia um inventário de passos, aplicava um acervo de movimentos, abstraia-se no ar, sem pausa ou enfado. Raros eram os fulanos que se arriscavam por sessões inteiras. Horas de círculos e suores expostos. Quando havia um deles Cleonora alava. Parecia voar solta e devota. Nunca tinha nada a perguntar, exceto pelos sussurros, pouco falava ou via. Foi num dia assim, meio em silêncio, que se surpreendeu com o som daquela valsa besta! A pensar sozinha, um impróprio desses, mal conteve os pés acima dos saltos. Sem êxtase, foi ao chão.

segunda-feira, 14 de março de 2011

Fiz bem

Fiz bem o gênero proposto. Li Baudelaire quando queria ler, sei lá, um Drummond qualquer. Sabia dos russos, desconstruia americanos, acompanhava alemães, ousava outros franceses e mal me dava aos próximos portugueses, até o tédio. Então, indiano, não sei se moçambicano, amazonense ou catalão. Obras e autores, críticas e desconfianças. De óbvio, bastava a mídia literária. De contrato, já nem os Campos. Putrefação arbitrária a rotina acadêmica, criativa como a aranha que, por notório saber, sabe fazer teias. Então a necessidade daquele conhecimento e a contradição. O desejo e o desprezo. Ainda se na sina houvesse luz, quem sabe o percurso seria menos obscuro. Não sei se melhor, mas seguramente Cortazar é mais perceptivo do que Borges, e o viralatas do que o poodle toy.

domingo, 13 de março de 2011

Rei relutante

Rei relutante. Bailarina virgem. Alpinista autista. Mocinho viciadinho. Dragão apagado. Santo pecador. Policial corrupto. Ceguinho sórdido. Detetive burlesco. Piloto inseguro. Lutador capenga. Intrépido trôpego. Assaltante honesto. Nadador afogado. Monge mentiroso. Alienígena bonzinho. Mafioso sentimental. Karateca engessado. Carteiro enxerido. Diva virtuosa. Cachorro covarde. Palhaço triste. Jornalista inocente. Fazendeiro desonrado. Nerd cabeça. Gostosa digna. Lixeiro extraordinário. Bombeiro devasso. Soldado manco. General imparcial.
Joãozinho sério, sem sarcasmo ou ironia, disse enfim à professora: - Os heróis de nossos filmes estão parecendo gente!

sábado, 12 de março de 2011

Foram extenuantes

Foram extenuantes os estudos para que aqueles dois jornalistas policiais finalmente conseguissem redigir o horóscopo. Pior para os nativos do signo de Áries, porque a dupla ainda não tinha muita experiência. Os leitores taurinos viraram feras: lhes foi recomendado que não se separassem de seus cônjuges no período da tarde, à noite, tudo bem. Mas foi uma nativa de Gêmeos, indócil, quem se dignou a telefonar ao jornal pedindo explicações. Noite propícia para abandonar o lar, maridos (esposas) e filhos; era de uma insensatez sem limite! – Mas quem está falando, perguntou-lhe um dos autores. Não importa, quero saber quem é o cretino que responde pelo horóscopo. Qual é seu signo?, o argüidor ainda insistiu. Diante da intransigência da geminiana, foi obrigado a encerrar ali a conversa: - Desculpe, não falamos com ninguém que não pertença a pelo menos um dos doze signos.

sexta-feira, 11 de março de 2011

Trecho à toa

Trecho à toa aquele da carta. Conta que Odélio se viu morto de gripe ao olhar no espelho retangular do lavabo de Grazieli. A consternação e o vaso sanitário entupido pouco tinham a calhar, mas um momento daquele, de resignação à vida e dor de barriga, só quem viveu conhece a complexidade. No instante em que a porta se abriu, então, foi o ápice. O ser afligido e a calça arriada era tudo o que Grazieli não precisava ver, mas viu. Odélio, para desprender-se da desonra, gritou por cansaço e humilhação: “minha vida por um pouco de paz!”. Como não morreu, a paz não veio. No lugar dela, Grazieli, esboço de grande problema para a continuidade da existência. Foi ela o efeito público daquele vexatório drama. Quando leram a íntegra da carta póstuma de Odélio, poucos duvidaram da causa mortis.

quinta-feira, 10 de março de 2011

Esperaram por decoro

Esperaram por decoro, foram embora coléricos. Os jornais se extasiaram, como morcegos no escuro. Quiseram instaurar-lhes um processo, que fosse por maus tratos aos animais. A comissão da favela não merecia ser ignorada, depois do longo trajeto até o prefeito. Os porretes adestrados dos guardas do gabinete, tal encouraçados no furor da batalha, foi exagero desmedido. A arma única que Tião da Glória levou foi o canivete das laranjas, que nem chegou a usar, porque não imaginava àquilo outra finalidade que não fosse a de descascar a fruta. Galo na nuca, hematoma fresco e arranhões esparsos somaram-se às dores recém nascidas da surpresa que a causa lhes reservara. Anete sequer estendeu a faixa pela paz na vila. Rosecleine não pediu segurança. Idalina omitiu seus queixumes por melhor iluminação. Olegário calou seu pedido por polícia. O pequeno Lucas, coitado, pensou que iria apenas passear no Centro.

quarta-feira, 9 de março de 2011

Olhou bem

Olhou bem para encontrar na carta todo aquele destino de amor partido e vida solitária que a cigana enxergava. Era uma dama de copas, de um baralho já puído. O que viu foi uma espécie de monalisa mal pintada, quatro corações espalhados sobre o quadro e um misterioso “Q”, assim, maiúsculo. A máxima antevisão dos símbolos coincidia com a mínima percepção de todos aqueles supostos conteúdos. Enxergar o escândalo onde o que havia era apenas estampa achou um pouco demais. O que tinha a dizer então já não disse, calou perguntas e deixou à pitonisa a função antropofágica de engolir suas próprias palavras e conclusões. Se havia na procura pelo oculto uma fantasia ingênua de felicidade, morreria pagão e desencontrado. A mulher falou em Quely, porque o displicente cliente mencionara o nome na consulta anterior. Ele sorriu, com o alívio dos sábios, “minha Keli era com ka”.

terça-feira, 8 de março de 2011

O computador

O computador deve passar por aqui a qualquer momento. Devo-lhe um texto, e ele é obsessivo nessas cobranças cotidianas. Primeiro coloca as teclas na minha cola. Elas vão se aproximando dos meus dez dedos, que se transformam em nove ou oito realmente ativos e dispostos a tocá-las. Cobram as letras, palavras e frases, sem as quais asseguram que a vida não vale a pena ser vivida. Depois é a vez da voz muda. O monitor sem animação, e parece até que sem esperança, a me olhar com sua luminosidade indefectível, deixando piscar o cursor ininterruptamente, como se eu estivesse cometendo uma infração de segundos sem abastecer-lhe de conteúdo. Perpassa o enredo feito um velho conhecido. Tem intimidade no ritual, ao ponto de impor seu rumo à história contada, cheio de vontades. Destemidos todos eles, porque jamais atribuem possibilidade à dúvida quanto à direção de meu indicador direito, se para a letra jota, ou para o botão de liga e desliga.

segunda-feira, 7 de março de 2011

Querendo

Querendo o Homero entrega. Pode pedir sem receio, ele não liga. Já rodou mais de cem quilômetros só pra levar ao viajante. Naquela altura, se precipitando, não deixou o alpinista na mão. Homero é um mito dos bons serviços. Exerce o dever. Para levar ao tratador do zoológico não se intimidou na jaula dos hipopótamos. E ao burocrata do guichê da prefeitura? Pegou uma fila de mais de duas horas, mas foi batata! Ficou louco de fome quando sentiu o cheiro daquele pão chegando ao ponto, mas foi batuta na encomenda do padeiro. Nado de peito, nado de costas, nado crawl, e lá estava ele, com o pacote do capitão do navio. Seria capaz de percorrer o inferno para não decepcionar o diabo, ou subir aos céus, se o destinatário fosse Deus. A fama de Homero já cruzou montanhas. E é justa. Muito justa.

domingo, 6 de março de 2011

Grossidão

Grossidão elevada, o indicador embuçado no nariz e a mão esquerda lutando com a pelinha solta no dedão do pé. Ernesto fundamentava lapsos no seu ócio tosco ante todos os ofícios. Era um erro, mas tinha o lado benemérito. Quando chegava ao hospital tratava de entregar logo as dúzias de crisântemos que levava aos mais aflitos, sempre aos domingos. Entre um arroto oculto, uma flatulência disfarçada e a imperecível meleca nasal, doava-se aos outros, distinto como uma caixa de chocolates embrulhados em tons brilhantes. Depois ia dali à linha da infâmia, importunando as enfermeiras com gracejos indecentes e a inadequação de um boneco de plástico em loja de cristais. Então voltava pra casa, ao sombreado alpendre com a cadeira de balanço, para as sessões contínuas de maus hábitos pessoais. Pouco se importava quando as velhas vizinhas passavam aos papos altos de “lá está o porco”. No fundo até gostava da intolerância suína que herdou naquela pocilga de vida.

sábado, 5 de março de 2011

A dificuldade

A dificuldade começa no momento em que a onça, depois de dominada por meu tio e seus dois compadres (matutos sacudidos de braços fortes), insiste em fazer valer seu direito a morar no mato. Meu tio diz que é preciso ter influência sobre a bicha, palpitar na realeza, mas só eu sei. Pra mais de ano perdeu o mindinho, e não era das grandes. Depois foi numa dessas vontades da felina que ganhou aquele apelido feio: meia bunda. Foi um nhoc e um grito, mas ele conservou o hábito. Agora mesmo anda lá pelos lados do Brejo do Cintra, fundão esquerdo desse pantanal sem começo nem fim. Ele mais os dois. Todos cheios de falhas, carentes de pedaços da perfeição da espécie humana. Às vezes leva dias, mas eles enfrentam, palpitam. Fazem o arremedo de cria e a tigrona aparece. Muda de ideia quando vê que são eles, pensa em comida, acho. E o loucos esperam ela chegar pra dar o bote antes. Daqui a pouco voltam, sem sei lá o quê.

sexta-feira, 4 de março de 2011

Arranca as patinhas

Arranca as patinhas da rã e assusta os outros. Prende o peito do escorpião com pinça e atiça o cachorro. Leva uma cobra mansa, mas que ninguém sabe mansa, na bolsa. Seu pit-bull não tem coleira. Da coleção de aranhas, solta apenas a caranguejeira para os visitantes. Pelo asco, não pelo veneno. Traz nos bolsos minhocas gordas, que parecem eletrizadas com seus pulos assimétricos. O lagarto gordo só liberta na mesa do restaurante na hora da sobremesa. A barata costuma vir antes. Ratos brancos nos teatros cheios, cansou de soltá-los. Tem optado pelas tarântulas, seguidas pelo planejado grito de alerta. Nos sapos já não vê mais graça e o aquário com baiacus depende de muita estratégia para levar alguém ao pânico. Deu pra aplicar sanguessugas nos passageiros à sua frente nos ônibus lotados. No âmago de si, porém, planeja tomar juízo. Fará um bom curso de zootecnia, e pronto.

quinta-feira, 3 de março de 2011

Concordou com o mérito

Concordou com o mérito, mas recusou a oferta. De fato, ele ficaria rico se aceitasse a proposta de se mudar para Roraima e trabalhar para a ong americana de preservação das fontes de perfumes da floresta. Aquilo era de uma riqueza quase inesgotável, e havia proteção dos índios e a colaboração da lei, o que facilitava as coisas. Nem pedágio teria que pagar às tribos, porque estava a serviço do interesse comum ao lugar e à ong. Nem precisaria dizer-se estrangeiro em seu país, porque utilizaria um salvo conduto emitido pelos próprios cobradores. Nem teria que providenciar casa e comida, porque tudo já estava previamente providenciado. Depois, conhecia botânica como poucos, graças ao seu doutorado em famosa universidade pública brasileira. No fundo, chegou a sentir-se um idiota por recusar a oferta, a coisa parecia não cheirar e nem feder. Só que achou estranho tanto dinheiro. Vaticinou, por lógica ou intuição, uma vida tranquila para os seus filhos e até netos, mas, aí sim, cheirando mal...

quarta-feira, 2 de março de 2011

No complicado

No complicado da intriga pediu outras duas doses. Esperava que aparecessem para esclarecer. A renda da corrente seria revertida aos amigos do bar, uma entidade informal, com fins dionisíacos. Menos assíduo nisso, Nico Pança queria seus vinte paus de volta, ainda que para reinvesti-los no aqui e agora que era servido de mesa em mesa. Com o corpo balançando às tontas e alguma simetria na voz, foi Capacho, com o vocabulário em petição a milímetros da miséria quem deu o veredicto: “ninguém some nessa hora despropósita”. Todos lhe olharam feio, porque Vicente não vinha. Entre achaques e lorotas, acusavam o pobre de lídimo causador daquela encrenca. Passa mão, tapa na nuca, cutucões nos cálculos biliares, e Capacho espanou: - Apalpe bando de nulos. Quando a bolada vier talho seus tocos com as garrafas de cinqüenta e um!”. Vicente surpreendeu a todos com um tropel e uma mala preta. Abriu-a, e deixou que todos a olhassem. Haveria verba de sobra, até que a noite faltasse.

terça-feira, 1 de março de 2011

Olhou para as nuvens

Olhou para as nuvens e não enxergou nenhuma esperança. Talvez ela estivesse caída ao pé da mangueira, na forma e cor de Helenice. Sim, aquela era a sua paixão e Edgard, por timidez ou displicência, olhava para o céu. Tudo era tão claro que a luz da incerteza piscava no coração do rapaz. No seu entender, o silêncio da moça evaporava ao vento, porque a mãe lhe corrigira errado, ao repreendê-lo: “quando chega, o amor é um estrondo”. Helenice já se tornava branca àquela sombra. Pálida ermitã da espera. Tristeza de cena naquela ária à beira da turbulência, de um ridículo palpável. Sem assunto e sem conversa, a bela escalou árvore acima, para apanhar no galho mais alto o fruto da obviedade. Desceu de mau jeito. Escorrega aqui, rebola ali, joga o cabelo pra trás para tirar uma abelha grudenta e chegou ao chão. Toda pose. Edgard meio titubeante, meio desejoso, enfim mordeu a manga.