segunda-feira, 31 de outubro de 2011

Refúgio sempre

Refúgio sempre havia naquele quartinho de fundos, sem iluminação ou vista. A panela enegrecida, alumínio barato, sempre foi capaz de produzir um arroz de terceira, ovo cozido ou água para o café ralo. Mesmo a chuva, adversária implacável na forma goteiras, era incapaz de expulsá-lo de vez do lugar. Os gigantescos edifícios adjacentes compunham um canyon a sua volta. Opressão nem se parecia um sinônimo. Mas, sem pânico, com a valentia dos conformados, lá ficava horas e noites, cafés e cigarros. Não havia nenhuma Maria, som de música ou imbecilidades (que fossem) televisivas. Não tinha televisão, nem infâmias. Computador ou cobertor. Vida besta a do Raul.


domingo, 30 de outubro de 2011

Na esquina

Na esquina cruzou – como vai? – o padeiro de anos. Sua loucura por pães cessara após o desgosto. Como água que se escapa dos dedos ziguezagueando – aqui está melhor – procurou a calçada na qual não havia gente. Somente o som dos saltos dos sapatos – que compasso! – ecoava na sua cabeça distante – ali mesmo. Nas narinas, sim, havia o cheiro do perfume ou do sangue – não pode ser – de Karina. Em êxtase repentino – mas esse soluço – notou que a verdade lhe era melancólica. Um assobio vinha logo atrás – que susto – mas não era a polícia, nem para ele. Seguiria a viagem dos seus sonhos – qual era mesmo o rumo? – ainda que solitário, criminoso. Entrou em casa aliviado – faço rápido essas malas – então partiu esbaforido. Ninguém deveria ter o direito de humilhar – principalmente Karina – a vida de outrem.


sábado, 29 de outubro de 2011

Eu tive notícia



Eu tive notícia da mistura transgênica daquela melancia. Não que me assustasse a falta de sementes. As sementes da maçã são pequenas, e isso não a desmerece em nada como fruta. Depois, tem cachorro que não morde. Só não valorizei muito a raça escolhida. Acho o pinscher uma coisinha neurótica. Muito distinto da farta melancia, com sua docilidade e abundância. Mas ciência é ciência, e às vezes acerta, às vezes erra. Depois que fez o homem ensinar o cão a ir buscar uma bolinha, pode ensinar a uma couve lições elementares de ginástica olímpica, tudo é possível. Temo que tal melancia morda-me os calcanhares ou torne-se indigesta. Não ao estômago, mas aos ouvidos, com um latidinho agudo. Na curta visão de leigo, imaginaria melancia mais próxima de um basset hound ou de um gato norueguês arredondado. Não sei, nunca foi bom geneticista.



sexta-feira, 28 de outubro de 2011

Ouvi de Janete

Ouvi de Janete, que ouviu de Mara, que ouviu de Jordão, que Olegário esteve na Praia das Perdizes naquele sábado. Li depois nos jornais, que Alberto disse ter lido na placa que o lugar era impróprio para banhos, o que não vinha ao caso, mas fez parte da entrevista da tal Betinha, que era conhecida, assim, de passagem, na barraca de milho verde do Jóca, sobrinho da mulher loira identificada como parceira do meliante Tonhãozinho 765. Ninguém, é verdade, mencionou alusão alguma à possível abordagem, que teria ocorrido antes do crime, mas que ela existiu não restam dúvidas. Tudo, diga-se, devido ao desejo de Olegário de imitar o surfista famoso, que estaria ali de passagem. Sabe como é? Essas histórias são sempre muito confusas.


quinta-feira, 27 de outubro de 2011

Vultos informes

Vultos informes se formavam lá pelos lados da lagoa escura. Permanecemos em silêncio, porque sabe-se lá... Quis formular ao Antero a pergunta crucial, mas segurei. Há anos não acredito em fantasmas. Não muitos deles, os anos, é verdade. Acho que foi desde que meu finado pai morreu, faz dez ou doze invernos. Naquela penumbra reconheci coisa rasteira: bicho do mato que movia a cabeça e parava. Não sabia se sentia medo ou vontade de escrever um poema. Como não sei fazer poema... Falei ao Antero: “vai ver!”. Eu eim? Ele disse. Com discrição absoluta assobiei um Bach, que não combinava muito com aquele brejo, mas dizem que acalma. Aquilo foi desaparecendo em transição entre luz e sombra. Sem alarde, sem barulho, sem explicação. Deve ser a tal harmonia da natureza. Agora, sim, eu sei que existe.


quarta-feira, 26 de outubro de 2011

Quer que eu

Quer que eu me aposse de suas portas? Saia. É um jeito assim de não deixá-la entrar novamente que me fará guardião de seus caminhos. Já tenho um turbilhão de poderes menores: seus jogos de armar, suas depressões, suas mandingas. Depois não pense que passará de uma melhor para essa. Que levará a mobília, quando quiser, ou as chaves que serão minhas, quando puder. Perder faz parte da sina, aprenda. Esses devaneios me fizeram enxergar as obviedades, desculpas e enxaquecas. Não vou tilintar taças pra dizer agora esqueçamos tudo. A calma que você nunca teve, nas questões e pendengas, agora me pertence. E se alguém vai tomar uma ducha mágica, esticar o corpo ou refazer a maquiagem, esse alguém, meu bem, sou eu.

terça-feira, 25 de outubro de 2011

Nunca consolou

Nunca consolou os aflitos, entretida com suas carolinas e mantecais. Para a tragédia alheia que se avizinhava, batia as caldas, untava as formas, moia o café. Fazendo doces ou novenas purificava a alma com palavras finas, elevadas como aquelas do espírito majestoso das rezas clássicas. Houvesse terra e houvesse céu pra tanta devoção. “Graças vos dou”, dizia a quem pedisse, servindo também na bandeja acepipes principescos ou fatias de manjares. Balancei a cabeça, estômago e paladar agradecidos, mas a mordacidade me beliscava a massa encefálica. “A senhora é uma das mulheres mais espertas que eu conheço, dona Lola!”. Ela adorou, como adorava coisas pequenas, e se fez de rogada: “aceita mais um pudim?”.

segunda-feira, 24 de outubro de 2011

Podre por dentro

Podre por dentro, a maçã não se dava o respeito. Fiquei olhando as vagas manchas, sentado ali naquela praia, apreciando os urubus no céu. Tinha mil maneiras de evitá-las, inclusive lançá-la inteira ao mar, sem sabor ou mordidas. Mas que dúvida entre fome ou crença? E talvez nem fosse maçã a fruta da árvore de Eva? Pareciam mitos sobrevoando, traçando círculos na compreensão perdida. Primórdios aos pedaços que agora não eram mais arrancados pela mãe, desejosa por limpar da fruta aquilo que não servia ao filho. Deu-me de serenar, porque o mal não entra pela boca, porque urubus não falam, porque havia entorno àquelas manchas pouco apetitosas. O ritmo de minha culpa poderia pairar como aqueles pontos pretos, já mais altos no céu, já alijados na polpa da maçã mordida.


domingo, 23 de outubro de 2011

Descorada de raiva

Descorada de raiva dona Alice bateu a porta, disse íntimos xingamentos e pisou firme na calçada e nem cumprimentou a vizinha que passava e entrou com uma admiração perplexa em sua casa amarela. O marido arriscou um olhar por trás do antúrio que regava, e só e silencioso. Lembrou-se dos idos tempos da tensão pré-menstrual de Alicinha, do qual se livrara há mais de dez anos, por Deus. “Como pode? Uma mulher tão maravilhosa!”. A água, que então entornou do vaso, sim, ela viu apesar da cólera. E já se preparava para ralhar com o velho, quando ele lhe tomou à frente: “Olha aqui, Alicinha, você está proibida de vender coxinhas praquela vizinha bruxa!” Dona Alice o fuzilou com o olhar, mas seus olhos foram perdendo ira, o rancor amoleceu, a expressão foi abrandando e dos cantos dos lábios já se notava um sutil sorrisinho monalísico e ela passou a mão no cabelo e já doce disse a ele: “ah, meu velho!”.

sábado, 22 de outubro de 2011

Tinha um caso

Tinha um caso de amor no Norte. Acho até que pelo Norte. Seu tédio bufava com nosso sotaque do Sudeste. Detestava o frio eventual, amaldiçoava as comidas, denunciava os times de futebol, caluniava a vida, sonhava sempre com a suposta volta, acompanhava o andar do carteiro, emissário das notícias de lá. A cada dois ou três meses ia ao banco transferir riquezas para “a pessoa”. No dia em que foi embora nem disse tchau, depois de dias o vi de novo. Mais aborrecido, com fastio explícito e um desgosto da dimensão de um ano. A cara redonda parecia refletir todas as desgraças do globo terrestre. Furtei-lhe uma conversa amena, quem sabe para descobrir o que se passava, respondeu monossilábico. Pedi-lhe um livro emprestado, disse que não: “questão pessoal”. Pelo muro baixo ouvi umas batidas surdas num tambor, que escapavam melancólicas... nem lembravam um carimbó.

sexta-feira, 21 de outubro de 2011

Todos disfarçavam

Todos disfarçavam a evidência que Murilo morreria a qualquer momento. Ali, ao lado do cara, bocas sorridentes falavam da chuva que não vinha há tempo ou do fulano que sarou daquilo, em estado idêntico ao do Murilo. Velas repousavam ocultas na gaveta do criado mudo, a empregada falante foi impedida de entrar no quarto e o papelzinho azul, preso ao imã da geladeira, dava na cara: entregam-se coroas fúnebres em uma hora. Murilo, lá, lidava com aquilo feito uma múmia egípcia – no cheiro, inclusive. Parecia querer dizer “faça-se luz” às eternas trevas. No devir do segundo mês, Inês, a irmã, percorreu uma linha progressiva de sensibilizada (cansada, prostrada) a encolerizada, e berrou aos presentes: “vão embora, gente, quando acontecer, eu ligo”. Embora mudo há meses, Murilo então sussurrou: “não se esqueça de mim, mana!”.

quinta-feira, 20 de outubro de 2011

Disse que Deus

Disse que Deus não devia ser tão bonito. Imagem e semelhança, nem todo o filho de Deus é belo. Há os feios, os horríveis. Dizia que nunca se apaixonara pelo estômago ninguém, para eliminar de vez a possibilidade de encontrar pessoas bonitas por dentro. Quando lhe coube selecionar os candidatos àquela vaga de vendedor, mediu as aparências da cabeça aos pés, e desdenhou os tortos e assimétricos. Àqueles que protestaram, por competência ou cultura, distribuiu cartões de cirurgiões plásticos. O desempenho das vendas não foi lá de ápices estatísticos, mas ele achou que estava ótimo. Melhor manter as aparências agradáveis do que enriquecer com vista para o inferno.


quarta-feira, 19 de outubro de 2011

Abra a boca

Abra a boca e feche os olhos! Rute obedeceu desconfiada, sobretudo porque aquela brincadeira, tão comum no tempo da avó para oferecer algo saboroso à obediência, jamais havia sido praticada por seu irmão Dario. Na dúvida, abriu, mas temeu fechar. Ele guardou o mimo atrás do corpo, com as mãos entrelaçadas nas costas. Ela titubeou. Fosse algum deboche e ele teria mostrado. Fechou. Ele passou-lhe algo nos lábios e tornou a ocultá-lo. Não vale, lhe valeu ouvir. De novo, pra valer, replicou pedindo a réplica do ritual. Ela desconfiou, mas abriu, fechou. E aquele gosto adocicado que sentiu pareceu-lhe um nostálgico êxtase, feito a cocada da avó nas tardes de sábado.


terça-feira, 18 de outubro de 2011

Sem abóbada

Sem abóbada cerebral significativa, Sinval surpreendeu num simples átimo o quadrilátero de entrevistadores com pareceres contrários. Em prol de um rol de benefícios aos carentes da vila, os quatro homens sugeriram que Sinval fosse o garoto propaganda da campanha publicitária: pela cara de pobre e as encurtadas ideias que tinha. Sinval aceitou, porém queria vestir-se de rico, “com grife e tudo”, como frisou. Os sujeitos discretamente apontaram-lhe a discrepância. Ao que Sinval, com moralismo idêntico, observou: “mas os senhores vestem essas camisas que querem dar aos pobres? Comem desse macarrão e se utilizam dessa marca de óleo?”. Entre sins e talvez, pode ser e eventualmente, o quarteto se entreolhou. Sinval foi expulso da campanha.



segunda-feira, 17 de outubro de 2011

Deu de ateu



Deu de ateu para ousar uma contemporaneidade da qual não dispunha. Falou falácias, entraves pouco tácitos e outras coisas sobre a fé. Gilberkeko tinha essas reviravoltas conjeturadas à moda científica do momento. Sim, ele era um cientista das humanidades. Bem mais dado ao visual que ao aprendido, objetava assim as leituras muito intrincadas, em prol de um bom videoclipe. Pouco ligado às antigas doutrinas, estava certo de reconhecer na fé o temor típico dos inseguros, porque assistiu a um filme neozelandês que assim se expressava. Com disposição mínima à discussão ortodoxa, achava que o mundo estava aqui e pronto. Entretanto, à beira da distração para a prática da vida, por pouco não tornou ao pó ao atravessar a avenida. Só Margarete escutou daquela boca assustada o “valha-me Deus”, à freada brusca do Porsche, a milímetros das pernas de Gilberkeko...


domingo, 16 de outubro de 2011

Badulaques

Badulaques e vassouras voltaram ao quartinho. Era um coração, primor, intimidade, qualquer coisa de bibelô, aquele espaço. Por quê, então, tais trecos couberam tão bem? Que fossem para onde as contas não batem ou corações não correspondem. Mas o que se sabe do sentimento de Dona Cora pelos penduricalhos, bazulaques e berloques? E o que dizer das vassouras? Do carinho fantasioso que inspiravam à velha? Do bom varrer? Decisão bem quista essa de guardar afetos. Há quem colecione joias ou santos, quem prefira orquídeas ou bibelôs. Dona Cora tinha aquilo por cabal. Contagiante adesão colecionadora de coisinhas. Se viessem depois acusações de despropósito, sairia ilesa. Nunca julgou ninguém que juntasse amores, fosse no espaço disponível que houvesse.



sábado, 15 de outubro de 2011

Ovacionado

Ovacionado se despediu das contempladas, distribuiu tchauzinhos. Desceu lépido pela escada de madeira do palanque. Pegaria o carro a poucos metros, não fosse Bala e Trombeta. Não gostaram do discurso insosso, pediram provas. O político lhes ofereceu desdém e adeus. Não levaram a sério e sacaram. O homem acelerou o passo. A primeira bala cruzou-lhe a testa e fincou no poste. A segunda foi perdida, mas houvera o êxito. Bala e Trombeta correram, rumo ao terreno baldio, como explicando: “vou ali, armo trincheira e já volto”. A polícia básica da segurança disse par, os dois optaram pelo ímpar. Ninguém levou a sério a ausência da autoridade na inauguração seguinte daquele outro conjunto de casas populares. Gente do povo, já estava acostumada às súbitas interrupções nas programações.

sexta-feira, 14 de outubro de 2011

Miséria inexistente

Miséria inexistente. Que boas picanhas, que vinhos distintos, que queijos saborosamente estranhos. Depois licores, certos satiricóns sem sexo, saladas de frutas exóticas sob sorvetes artesanais. A fartura indolente e fermentação iminente o que haveria de ser? Flatulências. Ri, porque estava rico, logo, ria à toa. Os sons prosseguiam intermitentes, a música era contínua e erudita, como devesse constar na cobertura jornalística da festa. E a anfitriã jamais daria um basta. O chef degustaria as essências propositadamente inutilizadas. O maître manteria a pose. O dono colheria impressões, com a esperança implícita que verdadeiras. Nos cantos, os cães olhavam piscando as pálpebras, fartos dos brindes dissimuladamente obtidos junto aos comensais. Cachorros e gentes então cochilavam saciados. Um aqui, outro ali, no balanço inerte das horas...

quinta-feira, 13 de outubro de 2011

Folhas arrancadas

Folhas arrancadas, falta explícita. Haveria naquele caderno um poema, narrativa interessante, quem sabe mesmo um personagem coadjuvante: secundário como a ausência. Um gemido em qual instância? Uma soleira cheia de passado? Assim, como quem esqueceu a chave ou soltou pum na reunião, a expressão de Eustáquio era obscura. Esforçava-se para olhar a todos, e estes logo viam que ele não enxergava ninguém. O turbilhão de ansiedades mal teve tempo para manifestar-se por palavras. Feito as tais páginas afastadas, mistérios sem descrição ou salvação, trataram todos de conciliar interrogação e curiosidades a um silêncio sinistro. Eustáquio fora autor de tantos e tão bons versos, que aquela inexistência subtraída doía no devir de todos, mesmo sem presente ou passado.


quarta-feira, 12 de outubro de 2011

Do parto

Do parto até o infarto pouco sabemos da vida de Hélio. Foi no leito da UTI que veio à luz sua encantadora mania de contar contos de fada. Esfregando-se aos primeiros lençóis disse da dama, que num ápice contra a bruxa, beijou o sapo sem jeito e deu-se príncipe. Meio manjada, mas suficientemente farta de empolgação para a vida. Não valiam nada os monstros, vampiros, ogros ou outros bichos imaginários capazes de retirar a generosidade de seus prazeres. Hélio era fabular. Meio Esopo, por trás dos olhos, entornados por aquela massa enorme de fartas banhas, sem que com isso fosse pegajoso ou tosco ou pedante ou lerdo. E não havia medos que lhe cortasse a fala. Simpatizei-me muito com ele, e nem seu ranger de dentes chegava a me incomodar. Pena que, sem os sedativos, mal soubesse onde estava.


terça-feira, 11 de outubro de 2011

Coincidiram

Coincidiram em planos, então foram viver juntos. O problema era o da compreensão, para dar cabo ao repertório que cada qual trazia consigo. Glória sonhava voar alto, Adalberto comprou passagem aérea. Depois foi a quebra de tabus, que ele resolveu contratando três amantes para morar em casa e legando a ela um boneco inflável. Quis perder-se pela cidade, e ele a vendou os olhos antes de empurrá-la do carro na mais distante periferia. À sugestão de abrir a mente para novas experiências, cedeu a mulher ao departamento de neurologia da escola de medicina. Com a ideia do fim àquela situação, Adalberto disparou seis tiros, anda foragido, e não sabe o porquê daquele pedido tão estúpido da mulher amada.

sexta-feira, 7 de outubro de 2011

Comadre...

Comadre... foi assim. Aí eu liguei pra ele e falei: olha Ernesto, não adianta você chegar pra mim e dizer: Marilda, eu vou ficar com você. Não, porque depois eu falei: fui lá, e ele perguntou: então por que você não me procurou? Ah, eu falei. Falei: pra quê? Te vi lá, contei pra ele. Fora os rodeios, né? Porque não, não, eu não sou melhor que ninguém, porque é assim, eu disse: o cara tem que ter respeito. É bom e eu gosto, eu falei. E se ele está pensando que eu vou passar a vida inteira esperando... que pode tirar o cavalo da chuva, ah, eu disse. Quando vem aqui em casa fala: Marilda, você precisava era casar comigo. Sei! Pensei, bom, não sei se pensei ou se também falei, mas eu disse: você vai lá em casa e diz que eu precisava era casar com você, né? Ah, comadre, chega, você não acha. O Ernesto parece um songomongo, não tem conversa. Homem pra mim, Marilda, tem que saber dizer as coisas. Sabe como?

quinta-feira, 6 de outubro de 2011

por sua vez

por sua vez cismou que autênticos eram os textos tradicionais do japonês que essencialmente dispensavam os sinais gráficos de pontuação das línguas ocidentais para expressarem apenas as verdadeiras intenções livres de vírgulas pontos exclamações interrogações ou parágrafos dissimuladores dos conteúdos implícitos até tentou por si só implantar nos recados à amada Marta Regina ou ofícios que tratassem de assuntos estritamente comerciais essa sua nova motivação na escrita vista como a salvação inclusive dos incultos porém foi alvo de chacota e recebeu a pecha imediata dos impacientes nem um pouco nipônicos de analfabeto

quarta-feira, 5 de outubro de 2011

Não, nunca

Não, nunca fiz isso! Dizer que fechava os olhos, fazia vistas grossas, é leviandade de sua pessoa. Você, sim, comeu e deve ter passado mal. Serviu-se aos pedacinhos, bem sei. Agora, quer estarrecer a opinião pública. Olhares curiosos cercam meus passos, vendem ingressos superfaturados para os shows no canto da sala nos quais estarei, pesquisam minha vida melhor do que a cura do câncer. Tudo bem, os intervalos coincidiram, a natureza não desmentiu e até o símbolo que sempre carreguei comigo, desde criança, parece quer dizer que fui eu mesmo: anjo barroco com cara diabólica. Sai da sessão por absoluta precisão... essas coisas, da natureza humana. Mas, imagine, se o motivo foi tão fisiológico, como pode dizer que comi todas aquelas coxinhas da festa?


terça-feira, 4 de outubro de 2011

Cara e buço

Cara e buço não se completavam. O provável erro de rumo ou simetria fazia-se charada sinalizada para a completa decifração de Sueli. Era aquela cara, sempre de tango ou tédio, preâmbulo de qualquer conversa. Mais para crase do que para acento agudo, tinha as sobrancelhas invertidas, compondo a expressão de demônio invertido. Mas a face era um relance. Sueli ocupava tempo e espaço. Esbanjava reclamações e farpas sempre a propósito de uma vantagem oculta. Qualquer que fosse o nível do benefício: uma folga, bala doce ou grana grossa. Seu nascedouro de piedades acabou por alagar as almas encharcadas de complacência. E como há tantas suelis, iguais em tudo na sina, que Sueli perdeu para a semântica sua matemática: era um problema irresolúvel.


segunda-feira, 3 de outubro de 2011

Já não

Já não se encontra mais internauta como antigamente. Todos se revelam e se superam, brincando de ser Deus. Precoce nas teclas, diluem-se na solidão múltipla da onipresença. Casados há três anos, Severino e Katja têm em comum a paixão pelo cinema. Assistem a filmes europeus, e comentam as cenas que mais lhes tocam. Então fazem sexo nas paradisíacas praias da Grécia, um êxtase. O jantar é em Paris, mais por questões gastronômicas do que românticas. Descem, aí, sim, com romantismo, pelas mau cheirosas gôndolas de Veneza; e não é raro encontrarem-se nas compras em Nova Iorque, onde tudo sai mais em conta. Planejam, agora, um filho, mas está difícil. Severino mora no Crato e Katja em Bento Gonçalves. Nunca conseguiram dinheiro para se conhecerem pessoalmente...



domingo, 2 de outubro de 2011

As caraminholas

As caraminholas que escrevia nos caules das árvores promissoras já contavam parte da história de Fred. Naquele ipê amarelo, ainda infante, foi ele quem gravou “pé de paisagem”, que hoje se lê com clareza nas alvoradas dos dias, quando contrasta o céu com seus cachos dourados. Enfronhado nesses arredores da antevisão, Fred entalhou “curva do cuidado”, na então pequena e atual frondosa mangueira da beira da pista, na qual aquela família inteira morreu depois do choque. Nunca repetiu palavras, talvez porque as árvores sejam únicas. Mas a aldeia acompanhou zelosa aquela breve palavra que Fred esculpiu lenta e hipnoticamente: “próximo”.

sábado, 1 de outubro de 2011

Vertigens

Vertigens, sempre que vertiam sobre Selma, a faziam narrar fatos desconexos. Contou que bateu os músculos glúteos na pedra pontuda existente no trajeto entre sua casa e a montanha. E não havia montanha naquela vila. Disse que, sim, houvera um homem em sua vida que recitava versos capazes de encantá-la, como a neve. E nunca houve neve no campo em que vivia. Relatou o livrou que lera no verão, falando do impossível amor entre a moça milionária e moço paupérrimo. E ninguém nunca soube qual das tantas histórias idênticas era essa, nem que Selma soubesse ler. Mencionou o dia em que os homens todos, no bar aberto à bebida, a levaram ao fundo do banheiro para fazer-lhe graças com as partes cobertas. E o silêncio pairou para sempre nos comentários sobre Selma, porque todos bebiam muito naquela insalubre povoação.