domingo, 31 de outubro de 2010

Mais magro

Mais magro, quieto, nenhum suspiro fora do tom. Foi amor, Cássio? Essas olheiras, veias saltadas, barba por fazer. Diga lá? Silêncio sibila, eu sei, com solução e paciência, mas não resolve tédios, Cássio. Vê se limpa essa cara empoeirada. Dá um tempo, um plus. Ontem vi Paulinha na praça, toda me ame. Foi ela, Cássio? Juliana não pode ser, nunca foi sua, você sabe. Monique, então, nem pensar: calça justa de cós baixo não combina com sua discrição de esquimó perdido. Ah! Percebi no seu olhar o nada a ver. Pelo menos deu sinal de vida, né Cássio? Ei, ei, onde você vai? Acha mais fácil fugir da raia do que ganhar a briga? Putz, acho que espantei o coitado do Cássio. Vou ali, até aquele poste. Também não fala, mas pelo menos não foge!

sábado, 30 de outubro de 2010

Da beirada ao nada

Da beirada ao nada era um passo. Do que me pareceu outrora, aquele abismo que se formava na encosta do trilho do trem tinha um quê de morte iminente. As alturas mudam com a idade. Os trens... passam. A sensação de magia encenada no passado vai se desvendando como uma comédia de equívocos. De modo muito mais engenhoso e diabólico do que seria um vulgar “sai daí que você vai morrer”, pensado moleque, surgem os frívolos sintomas de dores e efeitos físicos, com seus sorrisos perversos, que se põem a brincar em nossos lábios adultos. Nenhum músculo se move à frente ou para trás, no semblante apetitoso do fim. Nenhum perfume de flor do mal ou poema romântico, com suas lápides ou sepulturas. O que nos separa do precipício já não são passos ou medos de altura.

sexta-feira, 29 de outubro de 2010

Sofreu sanção

Sofreu sanção por desobrigação com o moleque. Jurara solenemente no bar que não cumpriria sua parte no acerto com a ex-mulher, mesmo com a sentença do juiz. Vossa excelência nunca morou com o peste, disse bêbado a Sandoval, aquilo que queria ter dito ao magistrado. Confiança infantil na lei que levava no peito, opostamente indisposta com a legislação vigente. Sob o grasnar de uma coletânea de palavrões, deu os punhos às algemas, sem acessos de autopunição, firme no propósito de não mover uma pena por aquele filho, que jurava bastardo. “Que de, que ene, que a, rapá? Tu és pai e cabô!”, conduziu-lhe o investigador da polícia, no momento que o lançava no porão do camburão. Lei é lei, ainda ressentenciou o delegado do distrito, num misto de pena e zombaria, quando a ex-mulher apareceu com o menino loirinho. E como ator canastrão, em peça teatral de quinta categoria, o chefe policial ordenou que trouxessem o pai: “o negão da cela três”.

quinta-feira, 28 de outubro de 2010

Os degraus banhados

Os degraus banhados pela garoa tiravam de Graciela a confiança infantil da subida de supetão. Seios flácidos, cabelos grisalhos e ressequidos, era a filha mais velha de Matheus, e recuou um passo. A luz solitária que mal iluminava a escada também lhe extorquia cuidados, apesar da atmosfera serena e trivial na qual sentia a casa, onde ficou para tia. O pai a fechara em cuidados e, ela, nunca abrira a porta da rua. As narinas já se dilatavam, com um estertor de desejos inconfessos. O moço do gás, o encanador de ombros largos, padeiro gentil, carteiro triunfal, cunhados indiferentes. Todos os homens que lhe percorreram os estremecimentos noturnos, agora eram lembranças subjugadas pelo tenente amigo, que um dia lá se hospedara. Assaz apetitoso, chegou a pensar culpada, como no erro da receita dos sequilhos para o casamento da última irmã. Seus dedos acariciavam a consciência, quando o pé direito pisou o primeiro degrau. No segundo, Graciela foi ao chão, e não havia três cavalheiros de chapéu na mão para acudi-la. Estendida no silêncio, retirou-se do tédio.

quarta-feira, 27 de outubro de 2010

O hábito idólatra

O hábito idólatra que Heitor tinha era o de dizer preces à uma câmera Leica. Pelo muito que lhe fez, explicava fiel, expurgando tecnologias digitais, que se lhe impuseram os novos tempos. Tinha a máquina sobre um aparador de santos, furtado de um velho São Benedito da cozinha da avó. Nele, acendia velas e lamentava em orações os poucos amigos que se entristeceram por ela, no dia em que chegou à casa uma “Madame Megapixels” (como se referia à câmera digital da irmã). Na parede da sala, “as filhas da Leica” enchiam as vistas dos visitantes. Paisagens, panorâmicas, detalhes de gente, coisas, naturezas vivas e mortas. Nítidas ou propositadamente desfocadas aqui e ali. A dor de Heitor só foi maior no dia em que a faxineira deixou a Leica cair de seu altar. Heitor, de súbito, virou fervoroso ateu.

terça-feira, 26 de outubro de 2010

Menina perturbada

Menina perturbada era de nascença. Foi envolta num xale preto, luto da avó, quando veio ao mundo, prematura. Brincou com besouros no berço, tomou leite de porca, comeu tijolos raspados, pôs os dedos nas tomadas, brincou com o fogo da velas, atiçou cachorros nas gentes, balançou em galhos altos, xingou freiras, foi banida da escola, cutucou narizes, bolinou amiguinhas e amiguinhos, lançou fogo na cozinha, mexeu com idosos, maltratou bichos, furtou coisinhas da loja, cheirou cola de sapateiro, arrancou cascas de feridas, fomentou discórdias, namorou maus elementos, engravidou quase criança, abortou sozinha, fez ponto da rodoviária, sumiu com caminhoneiros. A última notícia que chegou dava conta de sua presença em Katmandu. Passava um frio danado, mas vivia em paz com hinduísta. Seu mal, então, era de todos o menor: não decorava os mantras... e, às vezes, levantava a túnica.

segunda-feira, 25 de outubro de 2010

Garbosa e besta

Garbosa e besta a Iraci cansou, como diz, de “fazer vez de boazinha”. À uma da manhã não dá, reclama ao marido, no velório da sogra. Um acontecimento desses é uma trabalheira, e só por beijar parentes que nunca vejo já tive que retocar o batom dezenas de vezes. E esse café? Tenha dó, Antonio Carlos, assim, cowboy, sem um salzinho de frutas, só pra esses seus primos com estômago de cachaça. Flores, ah flores! Deveriam mandar só perfumes. Essas coisas fedem com as horas: “Saudade da Família Silva”. Quem tem saudade sou eu, do tempo em que não precisava passar por esses micos. E aquele ali, ó? Quem é? Vai ver sua mãe teve um amante oculto, Antonio Carlos. Como mortos duram pouco, o enterro enfim começou. Nas alamedas do cemitério Iraci ainda difamou as tumbas e o vestuário dos parentes convidados. Quando o caixão baixou, Antonio Carlos, mesmo com lágrimas nos olhos, deu o safanão necessário para que Iraci fosse parar no fundo da sepultura. “Enterre!”, pediu ao coveiro atônito. Mas a mulher deu pra gritar... gritos agudos e estridentes.

domingo, 24 de outubro de 2010

Novelo de vozes

Novelo de vozes, vida de lida. Cantavam em dupla, Deraldo e Orlando. Com o dinheiro do corte de cana deu pra comprar o iPod e cordas para a viola e violão, mais não dava. Cachaça? Ganhavam em troco do canto. Fossem a mesma pessoa e não seriam tão afinados. Mas o mal entrou pelos ouvidos, e a amizade deu pra feder, feito ovo choco. Quiçá abruptamente, Orlando arrancou os pequenos fones das orelhas de Deraldo. Sua vez de iPodar, disse sem leseira ou remorso. O outro achou estúrdio e vociferou com foco: - Dei vintão a mais pra comprar essa joça. Pra quê! Bofetadas tremendas cobriram-lhe cara e nuca. Arranharam-se às cegas, por desajustes de ideias. À medida que os gemidos de um tornavam-se ansiosos e harmônicos, os bofetes do outro marcavam o compasso. O barulho eriçado foi ganhando sonoridade. E deu-se que riram, arremedando com a boca o som da briga, enquanto pisoteavam em dueto, a quatro pés, aquele aparelhinho de gringo.

sábado, 23 de outubro de 2010

Por descer


Por descer não viu problema. Era até um alívio sair do tumulto para refugiar-se naquela pequena cidade, plantada no vale. Só lamentou deixar as perversões lá em cima. Tinha-as às dúzias: notadamente na forma de desvios de comportamento. Chegou tranqüilo lá embaixo, feito cidadão de bem. Pescou no riacho, colheu amoras, pediu pão com manteiga, no café da manhã. Incorporou-se aos hábitos e às paisagens. Já andava sem ser notado, quando as beatas deram alarde sobre o xixi da santa. O cheiro não deixava dúvidas. Depois foi São Sebastião, e até Jesus Cristo urinava, desde a umidade que desceu em poça, no pé da cruz. A polícia só foi convocada para ver as fezes de Santo Expedito. Armou campana na capela. Espreita. Deu com ele à meia noite e meia. Agachado, não conseguiu levantar-se à ordem de prisão. O cinto da calça prendera-se aos dentes do dragão que, coitado, já recebia uma lançada de São Jorge.

sexta-feira, 22 de outubro de 2010

O bando espavorido

O bando espavorido de quero-queros penetrava ouvidos, feito campainhas agudas em sinal de alerta. Naturalidade que acaba, quando a natureza começa a se levantar. Por certo havia risco ao ninho, captado por olhares altivos de fêmeas e machos em alerta pulsante. Aos passos largos, Odete e Heitor temeram um ataque aéreo, como se o perigo flutuasse. Por instinto idêntico, protegeram a cabeça com os braços cruzados e correram, procurando no nada do descampado um abrigo seguro. Viveram fantasias de agressões por pássaros, duelos etéreos, celestiais desavenças de princípios, pois não queriam mexer em ninho nenhum. Movidos pelo passageiro pânico riram de si próprios alguns metros adiante. Os quero-queros pousaram lá atrás, onde vidas novas haveriam de começar.

quinta-feira, 21 de outubro de 2010

Ponderou lívido

Ponderou lívido. Arrancar-lhe a máscara seria um gesto ousado, até para com ladrões, que se a utilizam é porque não fazem questão de revelar sua identidade. Melhor o diálogo, como a polícia sempre orientou. “Tá frio, né?”. Disse sem assunto. Numas horas dessas, nenhuma inspiração figura na ópera: trágica, nada cômica, diga-se. “O senhor tem mãe?”. Pra quê? Intimidade não se questiona. Coronhada e grito. “Burro que eu sou”, constata exasperado. Ridiculamente silencioso depois da pergunta grotesca. “Você acredita na vida depois da morte?”. Quer ir lá ver?, voltou-lhe o ladrão nervoso. Não havia solicitude a demonstrar, gentileza a expor, nada a fazer. O tempo contemplava apenas a visão da arma. De súbito, um adeus marcado pelo riso sarcástico do algoz. E uma história de medo e fraqueza, para contar aos amigos.

quarta-feira, 20 de outubro de 2010

A frágil muda

A frágil muda de pau-brasil chegou ainda no jardim da infância. Viu o mundo novo, entre as paredes de um apartamento urbano, pelas mãozinhas delicadas da filha que a entregou ao pai num saquinho preto. Presente de escola. Era o Dia da Árvore, mas não lhe haveria solo fértil num décimo segundo andar. Com a filha empunhando a tênue folhinha verde, seguiram juntos à margem solitária de um pequeno córrego próximo à cidade e, lá, a plantaram com o carinho da perpetuação. Crescida e no velho mundo, a filha percorreu Europa, conquistou penínsulas, visitou espécies. Chegou quando tinha que ser. Acabara de completar 23 anos, dezoito dos quais a separavam da esquecida muda. Mas, movendo a barba esbranquiçada o pai lembrou-lhe do riozinho, das mãos sujas de terra e daquela que seria agora uma árvore de pau-brasil. Como ambos, a planta já buscava o sonho possível de chegar ao céu.

terça-feira, 19 de outubro de 2010

Espartana e sonsa

Espartana e sonsa, Adelaide lançava amiúde confidências falsas. Reunia um aqui, outro ali, sempre em exíguos espaços com propósito de proximidade e discrição. Então dizia seus feitos e passagens, que sempre engendravam possibilidades de auxílios fáceis, diretos dos interlocutores ao seu bolso. Matou mães, padeceu de incuráveis males, atropelou-se às dezenas de vezes, foi roubada, furtada ou trapaceada às abundâncias. O mal são os outros, sartreava solerte. Aquele moço tímido, hospedado na pensão da vila, receberia certamente uma visita triste de Adelaide. E não tardou para que docemente ela o fizesse. Contou-lhe o trauma sofrido da rejeitada com cinco filhos pequenos. Jovial, o rapaz dispôs-se a auxiliá-la. Que lhe desse a chave de sua casa, para uma surpresa que pretendia revolucionária. Aguardasse Adelaide, e veria. Viu. Além do bilhete “otária”, e do sumiço da televisão da sala, ainda na terceira, das doze prestações acertadas, havia uma lambança sobre os móveis. Sem dúvidas, intestinais.

segunda-feira, 18 de outubro de 2010

Lágrimas na garganta

Lágrimas na garganta, sentiu ansioso, mas não poderia ser aquilo algo de comovido. Antes, desarranjo dos nervos, que o fazia fixar desesperadamente aquela cena de acidente à margem da rodovia. Debruçou-se no parapeito da passarela para contar corpos. Pusera-se a inspecioná-los, com desagradável curiosidade. Era de criança, sem dúvida, aquele perturbador saco amarelo que cobria a maca. Com um sorriso oculto e culpado pensou em seus filhos: brincavam, talvez, sobre a relva urbana da tela de um videogame. Um ligeiro tremor percorreu-lhe a espinha. Julgou reconhecer os bonés laranja de outros dois feridos que aguardavam a próxima chegada da ambulância de resgate. Com uma irritação que lhe pareceu desmensurada, desceu à pista. “O que há com você?”, afastou-o um policial. Ele sorriu radiante: “não são, não, da escola de meus filhos, seu guarda. Só os bonés são parecidos!”.

domingo, 17 de outubro de 2010

Para ler

Para ler tranquilo o jornal tendencioso, Arthur sentou-se no Café Ficção, torcendo-se em caretas. O mundo se aquece. Na Europa, o juiz condenou milicianos que mataram imigrantes. Coitada, pensou, quando leu que Iracema Diniz perdeu sua carteira de identidade. Achou bom que o ladrão Roberval Silva tivesse sido esfaqueado pela sexagenária Erundina Rosa, a quem tentava assaltar. A lenta agonia da adolescente atingida por bala perdida, no Rio, não lhe agradou. Considerou injusta a explosão do carro-bomba naquela sorveteria do Paquistão: 21 mortos. Enxotou o cão que se aproximou. Sofreu com a derrota do Corínthians por 3 a 0. O timinho era fraco. O café já estava frio. Nem chegou muito quente. Achou demais à empreiteira utilizar carro forte para transportar propinas. Exaltado em sua tranquilidade, Arthur melhorou com a conjunção entre mercúrio e marte. Seu signo, enfim, prometia um dia de harmonia.

sábado, 16 de outubro de 2010

Telefone toca

Telefone toca. Vicente põe a orelha à escuta. Sorte ser só xará e não próprio Van Gogh, ele pensa, enquanto encaixa o aparelho no ouvido. A mulher. Aquela que definiu como um cometa em sua vida: rabo enorme que passou. Num lapso faz novos planos. Saírem, sim. Velha mania romântica de procurar desilusões. “Isso não foi nada”, ameniza, quando ela se lembra do trauma. Entre parênteses íntimos completa: “mas doeu muito, maldita”. E concorda com tudo, como se nada tivesse lhe solapado a alma. Adversidades ocorrem, imprevistos acontecem e o perdão é o mais sublime dos sentimentos de um homem de bem. Ele, Vicente, fenômeno burocrático do escritório, segue para o bar, na hora marcada. O celular estridula. “Não vai dar? Tudo bem”, fala manso. Mas a raiva cega atinge-lhe os neurônios. Com rancor e ódio, saca o canivete suíço do bolso, e decepa inclemente sua orelha esquerda.

sexta-feira, 15 de outubro de 2010

Braço estranho

Braço estranho aquele que pousou ao ombro de Clara. Estava escuro, na penumbra ensurdecedora da boate, mas havia algo de confortante. Macio, até, como os felpos do sofá escarlate, às vezes preto, outras vezes sombras, na luz intermitente do batuque eletrônico. Que a mão não chegasse aos seus seios ou colo, pensou ela, com pudor extemporâneo, tamanha a sua inexistência. O pescoço passou a receber ternura irradiada em seguida. Seguidas vezes. Fonte de calor interno (ou externo?), não sabia, virou aquilo. Carícia sobre o colar barato. Brincadeira de gravata, nos pontos das contas. Que pareciam crescer com o aperto. Haverão de marcá-la, pensou tarde, quando não havia brecha nem chispa de fuga para aquele esganar mutante. Tesão ou sufoco? Esgoelava muda, sem som que se sobrepusesse ao ritmo frenético, sem testemunhas ou ar disponíveis. Só pela manhã viram seu corpo, o sofá e o colar quebrado. Parecia sorrir, apaziguada com um final de noite.

quinta-feira, 14 de outubro de 2010

Fragmentos vadios

Fragmentos vadios de pensamentos doces projetavam-se horas afora, sob o agasalho sombreado da mangueira fabulosa e taças finas de vinho branco. Dali, Adriano pensou, náufrago das ideais, em verter mais suor na malhação do corpo. Aclarar abdominais às contas certas, respirar caminhadas de quilômetros extras, desarticular folgas, aumentar os pesos puxados para a musculatura dos braços, contornar pernas nos saltos. Saudável como aquela fruta já quase madura, que o olhava dos galhos, envergados por tantas outras. Bocejou o tempo, alongou os braços, relaxou súbito, solto à cadeira confortável. Então lembrou Goto, nos aforismos de Brás Cubas: “navegar é impreciso; viver é inavegável”.

quarta-feira, 13 de outubro de 2010

Lençóis indiferentes

Lençóis indiferentes já desinteressavam o Jaguar. Procurar onde e no quê, pelas pernas morenas de Gláucia? Pouco havia dela. Nunca uns dedos, sequer um braço. Um pedacinho de prazer que fosse para aquele ócio. Presume-se que foi quando esteve com a Adriana, pelas primeiras e segundas vezes. Porque ela, pouca importância dava às suas ausências. Nem de longe fazia exigências para tê-lo por perto. Descia as pálpebras por ele, capaz até de sair à rua, e procurá-lo, procurá-lo mais, muito, onde estivesse. Ela era afagos sem preços ou impertinências. Doce, sem o melado do grude. E tanto melhor, guardava-lhe uma fidelidade de espécie, quê de quem sente falta, afeto incondicional. Jaguar parece ter pressentido que finalmente haveria um lar. Aos poucos as suas desconfianças se dissiparam. Deixou à rua os demais viralatas e virou membro oficial daquela casa pequena. Conhecedor dos cheiros e dos costumes. De guarda...

terça-feira, 12 de outubro de 2010

Outro trâmite

Outro trâmite de bom tamanho seria. Espiar a claridade apenas por aquela fresta cansa néscios e sãos. Chega à violação deixar presa na ausência a criança indefesa. Ela fica pela falta de força, incapaz que é de romper mesmo as tênues tábuas da casa pobre. A mãe, doméstica na vila, luta contra si própria antes de atar ao trinco o cadeado torpe. O pai não vive ali: apenas recolhe ossos nas proximidades do lugar, para vendê-los aos estudantes de medicina, lá na ala rica da urbe. Sobreviver é uma pena. Todos a cumprem, mas só a criança em regime semi-aberto. Depois que deu no jornal o transtornou virou tormento. Acocorada no distrito policial, a mãe lavou as mãos. O pai não se sabe. A menina, 6, geme a sede de ternura nos lençóis da assistência. Tem saudade da mãe, que lhe dava breves surras e farinha umedecida na água quente, às vezes, até com açúcar cristal. Gosta do número que lhe penduraram no colar de barbante, brinca com ele, mas lá fundo sente falta do camundongo... parceiro de solidão.

segunda-feira, 11 de outubro de 2010

Rômântico era

Romântico se queria como bandido. Leitor voraz das biografias de seus pares que sem tiro, sangue ou agressão entraram para a história dos crimes, pôs-se a praticá-los, inicialmente, por meio dos furtos. Não os pretendia pequenos, afinal não era punguista, e sim artista. Tratou logo de conhecer jóias, mas sua consciência, um tanto acanhada, lhe pedia bijuterias. Com acanhamento também se furta, mas com bijuterias não se qualifica o criminoso, pensou, enquanto planejava o próximo passo para o domingo. Haveria festa na associação comercial da cidade. Analisou. Vigilância, nenhuma. Bingo. Arma em punho, máscara negra e revólveres na mão. No palco, interrompeu “Smoke gets in your eyes”, tomando a batuta do maestro, e ordenou ao microfone que todas as damas deveriam depositar suas jóias na sacolinha aos seus pés. A quinta dona chegou chorando: “era da vovó”. Emotivo, consentiu anistia ampla e geral às vítimas. E cedeu, como o fez durante toda a vida, às ordens dos patrões.

domingo, 10 de outubro de 2010

Má influência

Má influência esse Nelson. Ah, é. No início era um rabicho. Todo sólido pra cima da Silvana líquida. Língua inventada e abajur lilás. Um juramento de gente! Casou como quis. Falo, porque meu outro filho, o Cleber Carlos, era de um ciúme que só vendo da irmã, mas logo achou o cunhado o máximo. Lábia de anjo, o Nelson. Até tia Zica, que o nome já diz, virou toda risada pro gajo. Café, biscoitos de nata. Mas então... cadê o Nelson? Busca às cegas. Aparecia como se não estivesse. Humor de lobo e Cleber Carlos lá. Só nas histórias do bruxo. Deu-se, que o meu menino trouxe Dorinha. Depois Dalva e Ediclêine. E tantos nomes que eu nem sei. Lembro só as alegrias delas. Vai ver o Nelson ensinou pra ele algum truque de bulir com as moças. Meu Cleber Carlos anda fartinho. Pó de gente. Vamos ver, disse que, finalmente, vai se casar com a Roberta.

sábado, 9 de outubro de 2010

Das impertinências

Das impertinências que no vaso surgem a pior é a falta de um papel, do higiênico. Depois. No trânsito, não. Não há papel que nos prive, nem há como limpar as distrações alheias. Então o que se carece é de humor: papel de otário. Riso, talvez, para o espetáculo dos palhaços paralelos ou transversais. Há a inconveniência do prolixo à frente na fila, qualquer delas, que se equipara àquelas de vizinhos falantes nas poltronas traseiras dos cinemas.
Secretárias cheias de papéis são de igual insolência ante nosso papel de um ser presente, ainda que a sua frente, como se fossemos um daqueles que ela carimba e muda de montinho. Vale o exemplo para caixas de lojas de conveniência, supermercados ou qualquer ponto, no qual nosso papel espevita o jogo de cena. Todos tão imediatos quanto o papelão, ao qual nos expomos nesses segundos coadjuvantes.

sexta-feira, 8 de outubro de 2010

O hábito de desenhar

O hábito de desenhar anjos cumpria uma quarentena oculta. Um tempo a esmo, no qual parecia pensar através dos olhos das pessoas, quando conversava. E este quando era raro, pois quase não falava. Poliano calibrava a simetria das vistas alheias com a imaginação em asas. Teria trocado os anjos pelas gentes? Todos se indagaram, até surgir no homem um amuo súbito. Cara fechada, como se rugisse intimamente à tênue troca de olhares alheios. Então aquele artista de estranhos gestos passou a procurar soleiras. Sentava e rabiscava. Parecia um giz, mas era pincel branco aquilo que dançava em pelos dedos do doido. O indicador inscrevendo nas pedras, mármores ou tijolos o que as falas e olhares já não diziam. De porta em porta seguia obsessivo. De perto em perto alguém se aproximou de um dos traços. “São anjos!”. E Poliano ergueu-se súbito. Desembestou rua afora rumo ao arco de um céu que só via ao longe. Longe dali pouco vale dizer que já lhe viram. Ali, com sua sisudez ou anjos, nunca mais apareceu.

quinta-feira, 7 de outubro de 2010

Assentiu alegre

Assentiu alegre duas vezes com a cabeça. Aquiesceu, puxando os cantinhos da boca para baixo. Sim, falavam bem dele, isso era evidente. E não havia bêbado na platéia capaz de, chula e oportunamente, demonstrar que as verdades não estavam em nenhuma das palavras farfalhadas às farras das páginas daquele dicionário verborrágico ao palanque. Sorriu consentido, sem alegria, quando o locutor contratado, num ventre de quentura, disse que a oposição havia lhe imposto rudes infâmias, mas o homem, como um trem, estrondou cada acusação para fora dos trilhos, pesadamente, vagão por vagão. Então chegara a vez o homem discursar, cortês e maciamente. Agradecimentos. Diachos e orabolas. Pragas mudas rogadas em gestos. Pensativos olhos castanho-esverdeados abaixo da careca que lhe chegava à testa. Fragmentos mudos, cegos e surdos de soluções para todo o povo. “Política, meus conterrâneos, se faz com vergonha na cara!”, concluiu, para os óbvios aplausos ensaiados.

quarta-feira, 6 de outubro de 2010

À medida

À medida que os gemidos se tornavam ansiosos e rápidos acreditou que o fim estava próximo. Naquela cama, sabe Deus desde quando, o cavalheiro que pelos anos passou e passou por ali a olhá-la, com aparente indiferença, agora era um som confuso, tomado por murmúrios e sussurros inventados. Não resistiria. Ninguém resiste. Esta experiência de Kamila é coisa que vem da aptidão inata, de delicadeza incomparável, cujas muitas horas vividas no hospital público como enfermeira dos gravíssimos pode contribuir para o maior aumento da sensibilidade. Antes mesmo de ser loura, encurtar a saia e aumentar o salto. Naquela situação não há macho no mundo que retorne. O orgasmo, sem dúvida, está por fio, e ela finalmente poderá livrar-se dele para atender ao próximo velhinho, que espera pacientemente pela sua vez de ser feliz.

terça-feira, 5 de outubro de 2010

Seu olhar

Seu olhar passeou sobre as jabuticabas. À mesa havia um assado também. Não conseguiu comer suas dúvidas com os olhos. Queria saber como é carne de cachorro poodle. Por que é que o peixe de água salgada não é salgado ou o porco não tem gosto nojento de lama? Não que fosse, assim, uma meninota espirituosa. Era até grosseira. Uma voz de baixo soprano lhe saia pela mesma boca por onde entrava os ingredientes de um apetite de leoa. Um copo sem fundos quando cocacolava. Rosto ensebado e rebrilhante, como que carregando o receito de que fosse chover, girava curioso em paralelo aos olhos: rumo a rumo das misturas, transpassando arrozes e feijões eventuais. Foi ao precipitar-se sobre a coxa tostada que levou um tapa seco na mão carnuda. A mãe, com altiva cortesia pedagógica, desculpou-se com os donos da casa: “comam vocês, por favor. Ela vai conhecer a ração, que tenho em casa”.

segunda-feira, 4 de outubro de 2010

Solavancos e falta

Solavancos e falta de solicitude marcavam o acesso àquela cachoeira. Bem previa algo mais indócil do que o ruidozinho dos insetos e seus ferrões pouco amistosos. Nem o pânico da morte sobrepujava, ali, as inconveniências da vida. Suava calores da alma no encontro entre a testa e o ridículo chapéu de lona com camuflagem de selva. O cansaço esquecido pela fome presente apontava na percepção para a gravidade imponderável: haveria um regresso, e seria idêntico, agravado pela prática iminente de inúmeras e heróicas atividades físicas. Havia a trilha de tropeços para pedra alta, a ser escalada para fotografias panorâmicas; o frio insuportável daquela água cristalina; a falta de toalhas de banho; lama grudada à pele; areia entre os dedos; cargas de coisinhas poucas para se carregar às costas; banquete de sementes; e... o jipe. O mesmo que nos aproximara daquilo. No ápice da ação havia também uma constatação premente: turismo ecológico, nunca mais.

domingo, 3 de outubro de 2010

Pediu à mãe

Pediu à mãe que assinasse seu nome na lista de presença do velório do tio. Tinha compromisso naquela tarde, explicou, com iluminado ferrão do desdém. Na verdade, marcara com pastor, seu sócio nos negócios, de irem juntos à Vila das Relíquias, para realizarem o “Culto da Fartura”: evento que reuniria os miseráveis residentes do lugar em torno da água azeda de um vaso de flor, para orarem por prosperidade coletiva. Trabalho é trabalho, justificou à velha, enquanto dobrava uma fatia de pão pra dentro da boca. Sob as pálpebras abaixadas seus olhos dissimulados vislumbravam o lucro iminente, minguado, mas certo e fácil. Saiu superveniente. Só não contava com as imprudências da vida. Zezão BC, o traficante do lugar, ordenou a dois dos soldados de seu exército que “dessem um ganho” na sacolinha dos bíblias. Houve resistência, houve o fim. Mal enterrou o irmão, a pobre mãe retornaria àquele cemitério pobre: transtornada e ruim dos nervos.

sábado, 2 de outubro de 2010

Deu pra épico

Deu pra épico, depois da homérica cachaçada. Que deus provoca a ressaca? Foi o ápice da reflexão altaneira. Seria Hera, dos alvos braços? Mas o nome dela era Josicleide Kelly. Quem sabe Febo Apolo, irado com a falta de sacrifício? Mas a maldita gordura de carneiro na brasa era o que lhe estocava a bílis. O impoluto e velho, vizinho adivinho, pareceu vociferar Homero ao seu pé de ouvido: - Homem voraz, vestido de vergonha, como irá qualquer um obedecer de boa vontade tuas ordens? Mas nem Zeus nem os seus; nem ungüentos reparadores de fígado ou alívios efervescentes, foram capazes de lhe revelar a égide, aqui na Terra ou no Olimpo. Sem harpa ou Ilíada que desse liga, optou pelo indicador certeiro, de inspiração usual. E levou tal dedo até o fundo da garganta, na ânsia de deleitar-se, após os trovões.

sexta-feira, 1 de outubro de 2010

Orla tola

Orla tola, aquela da Prainha dos Prazeres. Olívia não via a hora de voltar à terra firme, irritada. Os glóbulos de seus olhos, feito moluscos ofuscados, nadavam de lá para cá na lente garrafal de seus óculos embaçados, como se buscassem uma saída. Não, não havia barco àquela hora. Olívia andava na areia escura, mas parecia dançar tango em lépida caricatura. Ziguezagueava como uma pipa no ar, quando avistou Evaristo. Vinha sem pressa, coçando vagaroso o sovaco.
- Moço, moço, a que horas passa a embarcação nesse fim de mundo? Esquecendo o ócio ele olhou solícito: - Quando Deus quiser, senhora! Olívia empalideceu, ainda mais lívida, lembrou de beliscar o braço. Infalível antídoto para pesadelos torpes.