segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

Dedou descarado

Dedou descarado o falso latim do professor. A contratio sensu, ainda massacrou, esse homem é um improbus. Então fiat lux, para não haver mais panem et circenses. A galera acompanhou admirada. De que culto google Aderbal haveria sacado aquelas expressões, justo ele, o mais displicente aluno da sala. O professor pareceu não se ofender, prosseguiu com aula e uso do tal latim denunciado. Tollitur quaestio, finalizou a questão, lembrando que Aderbal para babar faltava pouco. Num dialeto inacessível, contou uma longa história, que resumia-se no roto rindo do rasgado, ainda que não confessasse a culpa pela animus laedendi, sua expressa intenção de ferir. Se fazer-se de rogado, Aderbal orquestrou o apoio dos amigos, quando de maneira ambígua disse o mestre tinha essas falhas, como bem revelara dona Glória, antiga namorada do catedrático. Dura lex, sed lex, pensou o professor, e num arrombo de vulgaridade, estalou o brado: “vá se f...., Aderbal!”.

domingo, 30 de janeiro de 2011

Correndo pelas veias

Correndo pelas veias de pedra daquele desfiladeiro a água chegou fresca à bica, que criaram ao pé do monte. Era cristalina como os olhos do cão weimaraner, que acompanhava Estela naqueles passeios pela Chapada dos Veadeiros. Há poucos quilômetros dali, na urbe a qual vivia, Estela mal tinha tempo para comprar uma garrafa de água envasilhada. Água e vinho, costumava comparar, sendo o último o primeiro aqui mencionado. Seu mal, entretanto, era manter-se sóbria quase sempre. E dava-se às filas e aos cartões de crédito, ao trânsito caótico e aos horários fixos, aos telefonemas ininterruptos e aos prazos estabelecidos. Então lhe surgiu a recaída, espécie de indiferença budista, espécie de lapso zen. Vendeu o carro do ano, alugou o apartamento, desfez-se dos excessos do consumo e montou pousada bucólica. O silêncio, a vida em alfa, o encontro consigo mesma. E Estela nunca mais conseguiu dormir.

sábado, 29 de janeiro de 2011

Despontou para

Despontou para o bem mal nascera. Sorriu, antes de chorar, e caia fevereiro. De lambuja dormia muito, criando um misto de sossego e desespero na mãe, logo superado, pelo bem bom da rotina leve. “Filho que não dá trabalho”. Fez um, fez dois, fez dez anos, sempre em paz, com gestos doces e perguntas fáceis. Bom menino, bom aluno, bom companheiro. Aos quinze se assemelhava a um santo. Olhos de paisagem, messiânicos, fala pausada, edificante. Não era bobo nem nada, era assim. Sem problema de vergonha para fazer cerimônia; sem ousadia além da dose, para causar constrangimentos. Só pode ter sido aquela tia. Desde que chegou, o menino mudou de expressão. Aos poucos foi se dissolvendo em rancores miúdos, fúrias amiúde, agressões homogêneas. Então confessou o matricídio.

sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

Além dos altos

Além dos altos e baixos, Túlio foi declarado psicologicamente compatível com a função de porteiro. Seu dever: abrir e fechar as travas para moradores e visitantes do antigo prédio. Tudo iria bem não fosse a escala! Madrugada. Túlio se comovia nas noites de Lua cheia. Uma conjunção planetária de nascença. Não que virasse vampiro, lobisomem ou qualquer coisa afeita a lobos ou morcegos, era uma sensação pura, de alma. Coçando em silêncio o cotovelo direito, punha-se a imaginar paisagens bucólicas, a ponto de não segurar o choro miúdo e algumas flatulências involuntárias. Naquele 19 de janeiro, Lua em êxtase, o síndico voltou de uma festa, nervoso e embriagado. Gritava do lado de fora, Túlio emocionava-se do de dentro da cabine, entre lágrimas e inatividade de movimentos. Foi o prenúncio de sua última noite de trabalho. Acabou demitido, por atentado à saúde privada.

quinta-feira, 27 de janeiro de 2011

Impressão danada

Impressão danada essa primeira. Não queria que ficasse, porque o soslaio dos olhares enviesava as aparências. Mas é a que fica. Antonia ficou assim, eu assado. Depois dava pra ver que haveria sequelas. A amplitude dos intervalos era de raiva. Pequenas pausas para a formação de faíscas, aprontadas para um novo olhar. A frieza é fogo. Incomodados que se cuidem. Então, de novo, o viés do desequilíbrio. Perdoem damas presentes, mas hei de mandar Antonia à merda. As fagulhas inquietas já não respeitavam o gatilho dos breves espaços de tempo, ativaram-se involuntárias. Antonia era um desses acidentes históricos: tinha que estar lá naquela exata hora na qual eu também estava. Nenhum afazer que impedisse sua presença. Nenhum compromisso. Nenhuma obrigação. Antonia é mesmo uma a toa. Vagal... coisa ruim.

quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

Havia uma

Havia uma chuva de anos. A escuridão do dia era ilimitada. Assim, de um nublar sem fim. Então, só as plantas aquáticas sobreviveram. Muitos peixes; ninguém pescava com aquele tempo. Quase nenhum pássaro e gentes enrugadas pelo tédio. O mofo matava. A inocência se dizimava na medida da clausura a que todos se impuseram. Não havia estoque de naftalina que desse conta: era o cheiro oficial dos interiores. A energia chegava às falhas, como se tivesse medo dos raios, mas não havia raios, só uma forte e contínua garoa ininterrupta. Ninguém se mudava para outras partes ensolaradas do mundo porque não havia meio. Aos poucos, ódios gratuitos pelejavam. Trancafiados em trevas e umidade, acusavam-se mutuamente. Ninguém nem se lembrava da liquidez amniótica, porque não havia mãe.

terça-feira, 25 de janeiro de 2011

Lago enxuto

Lago enxuto, secas marcas. Parecia um poema a fala de Garcia, mas ele era assim, homem de poucos artigos. Maus lençóis, vida dura. Previa o devir, com os olhos de quem há muito vivia naquele fundo de mapa. Céu aberto, todo núpcias. Advertia então para a impossibilidade de umidade próxima, probabilidade de bons tempos, sem a precipitação dos afoitos. Vamos embora, chances nulas. Foi só conselho àqueles que o rodeavam, na vastidão do desejo de um túnel no final daquela luz intensa. Fim do fermento, ninguém cresce nesse firmamento. Por fim sentenciou, como se nem todo o ser tivesse direito à vida. Quem sabe à volta, um dia todos o teriam. Antes, porém, era preciso chuva: uma chuva, a chuva. Todas ou única, mas Garcia não dispunha-se, nem assim, aos artigos. Melhor morrer, substantivo concreto.

segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

Pastas e gavetas

Pastas e gavetas borbulhavam papéis. Deixavam ponta para cima, de coisas, quando abertas. Não eram elas que necessitavam organização, era a vida de Gláucia. Desde que Heitor se foi não assentava suas bases. Absoluta adúltera, achava melhor assim. A vida aos gozos, o tempo em movimento de trocas, uma ou outra paixão de semana inteira. No salão de beleza trabalhava bem as vaidades alheias. Transformou feias em belas, tortas em retas, agônicas em alegres. Quilinhos a mais os tirava na esteira, os repunha na cerveja e o saldo era quase sempre positivo para a gostosura exuberante, que dispunha às tantas. A pior fase da vida, entretanto, era sempre aquela, quando tinha que reunir papéis para o imposto de renda. Burocracia nunca foi parceira do prazer. Mas Gláucia seguia em frente, por vezes, sonegadora.

domingo, 23 de janeiro de 2011

Colhe brisa

Colhe brisa e se molha. Tobias é assim. Tem o calor do pastel frito da barraca do japonês, a alusão do assado diário, o cálido de um deserto com proporções imensas, que parecem não ter fim. Sua, abrasador, quando anda. Dá-se ao sorvete ou aos profundos goles de coca-cola. Adoça-se com paçoquinhas de amendoim, por vezes, quindim, sem jamais perder o desejo do ciclo: gula e quentura. Então não raramente se avaranda ao vento, quando invariavelmente encharca-se com os jatos fracos da mangueira retorcida. Tobias retira as lentes de grau, lento, e se posta depois no espichado banco de madeira reforçada. Com sonhos de criança, ronca o ronco dos velhos. Já beira os quarenta, mas entende que a vida não pode ser medida aos anos, quiçá aos quilos. Quando o doutor utilizou a palavra morbidez, levou um susto porque a associou à pouca comida. Para a cura, existe afinal a brisa.






sábado, 22 de janeiro de 2011

Aí, seguinte

Aí, seguinte! Espero que você não vá amarelar outra vez na hora que tiver que contar, entendeu? É como se diz, se você não falar mal dele, de quem vai falar? Olha pro beiço, Beatriz. Sente o inchadão do murro. Se faltar coragem, baixe as calças. Claro que não precisa ser daquele jeito todo me chupa que você às vezes tem. Não é mico, não. Mostre a cicatriz nas coxas. A centopéia enorme que te custou uns cinqüenta pontos no postinho da vila. Pensa que isso não te faz feliz. Fecha os olhos, Beatriz. Putz, rimou. Sacanagem. Não, não. Fecha os olhos e pensa na raiva de depois da briga. Aí, Beatriz, pelo amor de Deus, abra a boca e fale. Fale, Beatriz. Conta da promessa, da vizinha a toa, do primo bandido, do bafão no trabalho, e, se eu fosse você, até da parada em que pôs de laranja eu contava. Vê se não dá uma tonta, eim Beatriz? Depois não vai dizer que eu não avisei...

sexta-feira, 21 de janeiro de 2011

Colagens invisíveis

Colagens invisíveis mudam tons. Televisão de pizza que não há como ser ligada às jurisdições de canapés. Pedacinhos de anões cantando uvas eletrônicas. A eternidade do fuxico medida ao estilete do ator. Então João, na clausura de sua alma, descobria sempre a porta secreta para as suas falas, e dizia no compasso binário de uma cavalaria, levitações de sentidos. Dava fecho às lembranças com um requinte gastronômico nas frases. Sanava conversas ou salvava discussões com usufruto das partes envolvidas, porque se dava a paz dada à falta de bom senso. Por cuidado mínimo e um resquício de precaução, demorava a se expressar, sempre. Há quem diga que elaborava asnices, para dar retaguarda à confusão do mundo. Ubíquo e óbvio na parlapatice, era unanimidade: João era do bem.

quinta-feira, 20 de janeiro de 2011

Banana, o homem.

Banana, o homem. Jaca, a vizinha. Maracujá, a velha síndica. E Cecília tinha o hábito de frutificar pessoas. Era uma lavoura de impropérios, um pomar de adjetivos, uma cultura de vegetais até às raias das crianças hortaliças, que brincavam no playground. As caras até tinham lá suas semelhanças, mas Cecília as forçava nos seres e seus pareceres, com acenos espasmódicos e afetados, como se a Sra. Jaca fosse apenas aquela coisa redonda, revestida por uma casca grossa coberta de acnes. A amiga Adélia, a pêra, ainda por cima macrobiótica, reforçava a mania de Cecília, dada à notória exclusão de qualquer espécie animal nos apelidos, mas a advertia sobre a possibilidade de um dia se dar mal. E se deu! Mais para animais do que para vegetais, os moradores trataram logo de devolver à Cecília as alcunhas que recebiam, e: piranha, vaca, porca, cadela, onça, égua, mula, corça, cabrita e lebre foram apenas algumas, entre as inúmeras fêmeas pelas quais ela passou a ser conhecida no lugar. Riu, mas foi um rizinho verde...

quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

Nos abstratos

Nos abstratos desenhos do reboco figurado vi imaginárias formas de coisas do mundo. Era um rosto, cujas lágrimas rolavam só depois das chuvas. Uma lagoa que se enchia de garças e alguns peixes, pela qual às vezes passava um trem de carga, às vezes um ou outro passageiro, às vezes nem trem. Era uma fúria levada da breca que assolava uma cidade secreta, onde habitavam besouros, às vezes lesmas. Por que o galope? Porque às vezes era um cavalo branco e amarelo da última caiação desbotada, levando um saco ou menino. Dependia só do ângulo. Mas quando havia marca de tristeza nos olhos ralhados pelo pai, era, às vezes, um monstro irresoluto de muitas barbas, às vezes, cabelos de cobra meio Medéia macho, meio tiranossauro, às vezes era. Um muro velho olhado com a visão dos íntimos, às vezes é assim.

terça-feira, 18 de janeiro de 2011

Nunca duvide

Nunca duvide. A carapuça cabe com folga em sua cabeça sonsa. Abelarda abaterá sua empáfia a tapas e é ponto pacífico. Abelinda falava assim ao sobrinho, que depois de rico queria desfazer aos berros as pedras em seu caminho. Desperto em acessos contra todos os contrários; já quase um trintão ficou fértil em fantasmas. Virou besta cênica àqueles que lhe indicavam isso ao invés daquilo. Cheio de gestos aos estalos. Ódios distraídos. Era um barril de paradoxos com pavio sempre aceso às margens de circunstâncias. Deu-se mal com mãe, como previra a tia, quando se recusou ao xarope de folha de guaco para a tosse seca que nunca expelia. Foram tabefes múltiplos, até que desse sinal de vida honrada. Estalos que lhe atingiam a riqueza súbita obtida no ramo de carros usados. Chegou a franzir o cérebro, com dúvidas malandras. E jamais se curou da esperteza fácil, mas sarou da tosse.

segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

Fechava os olhos

Fechava os olhos até obter a tonalidade das trevas. Um grude de pálpebras que praticava amiúde. Buscava espasmos de espanto com aquelas visões do medo de si mesmo, quebrado em pedacinhos luminosos no negrume do nada. Era uma prática infantil, remota como o frango com polenta, o ócio ao Sol ou o macarrão dominical. Para que serve tanta indolência? Subserviência à inutilidade? E esticava os cantos da vista para mudar as formas do enfrentamento com o escuro. Mais bolinhas de luminosidade disforme, outras possibilidades de medo, outros mundos. Queria estarrecer a consciência com as próprias drogas que tinha na alma. Extrair ao máximo a amplitude dos intervalos do cérebro, no horário de recreio das aulas. Até que um gaiato amigo lhe propusesse a safanão, uma brincadeira qualquer pelo pátio afora. Então via o mundo assim, óbvio como ele é.

domingo, 16 de janeiro de 2011

Jogou com cuidado

Jogou com cuidado um naco de pipocas ao chimpanzé. Ao leão ofereceu pão, sem êxito. Na jaula dos javalis cravou a salsicha do cachorro quente. Uma meleca de maçã do amor foi o que lançou às desatentas girafas. Conferiu ao rinoceronte os churros. Atordoou os patos com o restinho de vinho barato e foi às compras. Queria outras guloseimas para outros bichos. O bar do zoológico era limitado e breve. Talvez elmas chipes caíssem bem aos búfalos. Quem sabe amendoim aos pelicanos? Só lhe faltava o óbvio, então comeu com gula, gana, sozinho e inteiro o sanduíche pronto de pernil com queijo. O tratador que via aquilo e que por vezes (inúmeras) já o tinha advertido, finalmente abriu um sorriso prazeroso. “Agora, sem exceção, todos os animais terão diarréia!”.

sábado, 15 de janeiro de 2011

À contraluz seduz

À contraluz seduz, feito um anagrama na hora certa. Ruim é quando se vê, sem roupa e sem rima. Coisa do tipo “meninos, eu vi!”. Sábio espanto do mais velho, maravilhando os novos com ilusões indecentes. Era como era e pronto. E crer todos criam. Fantasias de meninos rapazes, com a visão voltada à luz vermelha das casinhas e às anáguas curtas das mulheres e seus muros. Rastro de vampiras ou sedutoras prosas ouvidas na desordem. A primeira vez! Não vale. Nem onde, nem quando, puro apenas. Impuro porque tocou em partes pudicas. Recatada maravilha. Luxuria casta. Então o dia: o seguinte. É o seguinte: “fomos lá”. Vaidosa conversa, cheia de vanglórias e embustes pomposos, erguidos. E no exílio das horas a lembrança da verdade, que à contraluz é linda.

sexta-feira, 14 de janeiro de 2011

O assassino era

O assassino era o pastor. Só no final do filme Doralice acreditou no que via, porque além de espectadora era crente, e não queria abalar sua credibilidade com arte pagã. No complicado da intriga chegou a pensar em desligar a televisão, como o seu pastor, que não o do filme, havia sugerido mil vezes, em tom culto, no culto. Porque televisão era o precipício, meio perigo aziago, rumo ao inferno, se houvesse inferno. O pastor, não o do filme, dizia que não. Inferno era coisa do capeta, assim como a televisão, seus astros e estrelas. Então Doralice esconjurou o mal pela raiz, no caso, a tomada. Pediu clemência e puxou o fio. Fagulha inquieta do pecado nunca mais. Porta voz da danação, nem pensaria. Nem pensaria... nem pensaria, nem pensaria nas oito prestações que ainda faltavam para pagar aquilo.

quinta-feira, 13 de janeiro de 2011

Esperando prosa

Esperando prosa boa deixou para ela o assento da janela. Conseguiu apenas perder a paisagem e ganhar silêncio. Dali, logo viu, não sairiam palavras. Todas, talvez, presas naquela boca comprimida na vidraça, que embaçava com o bafo todo céu límpido que aparecesse à vista. Parecia estar achando bonito tudo aquilo. Parecia olhar o mundo o interesse dos descobridores. Nenhum comentário. Parecia guardar aquelas visões na memória, armazená-las para depois, quando necessárias à felicidade, entretanto, quieta. Passavam coisas muito depressa, logo substituídas por outras: casas, pastos, bois, cidades, cercas, plantações e terras aradas. Mal as via e elas já escapavam, como a própria moça à frente, entre as paisagens e a janela. Então pediu ao motorista que parasse o ônibus. Mostrou o bilhete e exigiu que se cumprisse o contrato: “a minha poltrona é a da janela, meu senhor”. A moça, atônita, não abriu a boca.

quarta-feira, 12 de janeiro de 2011

Admitindo a existência

Admitindo a existência de um cérebro guerreiro nas aranhas, Godalberto vislumbrou, por suposto homogêneo, que sua sogra tinha traços aracnídeos. Voltou-se à densa pesquisa para justificar sua hipótese, se apegando não raramente às percepções aguçadas que mantinha sobre a velha. Tal ácaros e carrapatos, descreveu-lhe as patas verbais utilizadas para capturar as presas, e sugar-lhes a vida. No adiantado dos estudos, constatou a existência de glândulas de veneno, utilizadas para paralisar suas vítimas, quase sempre digeridas fora do corpo, naturalmente, depois de lançar sobre elas certas enzimas, capazes de propiciar uma espécie de pré-digestão. Nunca pode provar que a tal tivesse quatro pares de pernas, apesar da distância e velocidade com as quais aparecia em todos os lugares, mas manteve sua suspeição até o fim, quando a esposa enfadada com seus relatos lhe propôs imperativamente que parasse com aqueles estudos. Godalberto entristeceu-se profundamente, não por questão pessoal, mas pela ciência.

terça-feira, 11 de janeiro de 2011

Dom para nada

Dom para nada planejar Júlio tinha de sobra, por acaso, naturalmente. Deu pela falta dos pés de porco e do feijão preto quando os convidados para a feijoada começaram a chegar, alegres e esperançosos. Por serem quase íntimos, não se incomodaram, chupariam as laranjas, já que foram convidados a sentarem-se sob a laranjeira, carregada e decana. O constrangido Júlio gesticulou nervoso, mas nem precisava. Ninguém lhe cobrou a falta de farofa, a ausência da couve ou do limão para a caipirinha. E como não havia paio, mas um pedaço de charque já cozinhava na panela há algum tempo, salgaram a boca com o possível, acompanhado de linguiças até razoáveis no sabor. Perguntaram-se então sobre o porquê da amizade com Júlio, que lhes esquecia os aniversários e mal cumpria os encontros combinados. Chegaram à conclusão óbvia: Júlio não é amigo, é coisa que acontece.

segunda-feira, 10 de janeiro de 2011

A renda líquida

A renda líquida era disputada a sólidos bofetões. Salário para cinco, ganhado por apenas um, logo era investido em soluções apocalípticas. A mais velha, com seu olho gordo, queria sua parte para o rímel e os batons. O do meio daria o reino por um bigmac. Ao mais novo cabiam sobras, excetuado um ou outro paparico da mãe. Aliás, Rosa Margarida, a mãe, não era flor que se cheirasse. Infiel de nascença casou-se com Eládio no golpe de barriga, coisa esta que na época não tinha, mas que lhe sobrava agora, sobre as laterais do cinto cintilante. Tudo iria bem para todos não fosse a súbita desconfiança de Eládio. Mais novinho emporcalhado, o do meio lambuzado de mostarda, a mais velha no espelho do banheiro dos fundos. Cadê Rosa Margarida? Quando voltou suada e satisfeita, o homem mirou seu coração e acertou no tormento: “Fui! Vá se virar pra arranjar o seu!”.

domingo, 9 de janeiro de 2011

Tira esse


- Tira esse dinossaurinho do meu tricô, Manoel. A avó não podia ver as lagartixas, que o avó amava. Bicho asqueroso. Não se mata uma lagartixa. Tem cara de diabo. Não olhe pra cara dela. Só serve pra assustar a gente, metida no meu tricô, nos jornais e atrás das portas. Serve pra comer bichos peçonhentos. É gelada e grudenta. Você nunca tocou numa delas. Se é tão boa quanto você diz, por que corre da gente? Ara, Maria, o que você tem a oferecer a uma lagartixa para que ela se aproxime de você? Quer dizer que você é contra mim e a favor da lagartixa? Sou a favorável ao bom senso. Então quem tem bom senso vira criador de lagartixa? Por favor, Maria, não seja ridícula. Eu? Daqui a pouco você irá proteger as baratas. Cada coisa é uma coisa. Mas eu é que sempre levo a pior, Manoel. Pior que quem leva não é você, com esse inseticida enorme na mão. Pelo jeito você quer que eu tome veneno? Maria, vá fazer tricô onde não tem lagartixa!

sábado, 8 de janeiro de 2011

Roendo as pedras

Roendo as pedras o riozinho que passava era de água mineral. Pergunte a cem, todos dirão que sim. O povo se acostumou a beber ali e nem pensa que é diferente. O líquido lhe pesa na consciência, mas a verdade é potável. Às voltas com tudo isso houve a usina, que de bom da cachaça a todos no Natal. Embriaga as coisas. E disse o moço dos verdes que confunde os equilíbrios. Ninguém bebe pinga aos montes e sai no prumo. O que se fala é sopro, palavras de dois gumes. O veneno, por exemplo, dilui-se naquele curso que não pára, porque a água é sem dúvida boa. Foi o avô quem disse que o pai dele disse, então tempo não se discute. O riozinho, aliás, não passava, passa, porque a sede do povo continua vindo. Vai, mas volta. Ninguém duvida que a água é mineral, só uns falastrões que aparecem de vez em quando, doidinhos para adulterarem utopias.

sexta-feira, 7 de janeiro de 2011

Morto veloz

Morto veloz, né? O velho Nelson era de frases curtas, vida lenta e tinha um quê de perplexidade com a agitação da modernidade. Quando viu passar o enterro, com o esquife numa van e vários carros atrás, lembrou-se que acompanhava féretros a passos pausados por dores e respeitos. Não havia gestos largos na intimidade das mortes. Quem cheio de vida apenas visse o cortejo tratava de baixar a cabeça, tirar o chapéu, reverenciar seu próprio futuro. Mas era passado, mortos passavam e a comoção que havia vinha das entranhas. Então o velho Nelson entristecido lembrou-se do neto: o vivo. Da vida bandida que o rapazola levava por um fio, com revólver na cinta e dedo frouxo, ávido por apertar o gatilho. Besta humana, Nelson disse a si em frase curta, enquanto tirava o baralho engordurado do bolso de trás, para mais uma partida solitária do jogo de paciência.

quinta-feira, 6 de janeiro de 2011

O dia de Sol

O dia de Sol radiante, e rosas muito mais vermelhas, pouco interferiu no ritmo metálico daquela sorveteria, de frisos de alumínio e plásticos monótonos. E o casal lambia o gelado para se vingar do calor, como se o amor tivesse pressa para não se dissolver em pingos doces e grudentos. Incomodado com o suor, descontrolado na libido e sem se lembrar da assepsia branca do lugar, o homem passou a língua na mão da mulher sobre a mesa, e bordejou o tampo com sua baba marrom de chocolate trufado. Foi a conta e o inferno. E aturdida com a indelicadeza a mulher tirou os dedos com a dissonância das chuvas de verão, ligeiras e quase sempre às pancadas. Disse que não, desarticulada. E levantou-se às tontas, rompeu o rotineiro tédio, arremessou a sobra na face do cidadão e rebolou embora rumo à rua fumegante. Fim de romance, no verão, é fogo!

quarta-feira, 5 de janeiro de 2011

Maricas acirravam

Maricas acirravam lutas com aleijados, que xingavam velhos pela vaga mais próxima à pista, no desfile de modas. Veadão num prêt-à-porter óbvio como lhe causaria o lilás das gozações, trajava preto, e o coxo ria da discriminação do caquético velhaco que arremedava o riso lascivo do moço da passarela. Hímen da mais vagabunda fêmea, a coisa do politicamente correto rompera-se desde a entrada. Porque, iguais nos direitos, todos se gabavam do assado ser assim, meio além do olhar na alma de cada um, meio imodesto. À revelia da lei derem-se farpas. Chinfras de poderosos bateram chifres. Batalha sem piedade entre um exército brancaleônico e a guarda municipal de Adis-Abeba, capital da Etiópia. O fiasco-fashion quase nada comercializou de seus lançamentos. Não havia meios nem modas que agradassem a todos.

terça-feira, 4 de janeiro de 2011

Sentia tanto

Sentia tanto frio que se pudesse deitaria numa fogueira. Então, foi estudar filosofia. Seu erro e seu eco, na busca das questões fundamentais da existência. O conhecimento, concluiu que era uma vastidão perdida. A verdade, um capacho dos mentirosos. O valores morais, máfia de conveniências. Estética era a forma pela qual os feios guardavam alguma chance de beleza. A mente, uma linha reta ao infinito. A linguagem, espécie de comunhão dos seres tão distintos. Argumentos, auspícios para desejos egoístas. Tempo, a passarela rumo ao fim. Espaço, cavidades entre as separações. Realidade, vontade de ausências. Liberdade, sinopse das impossibilidades. Arte, custódia de mitos. Natureza, veneração intangível. Felicidade nem tentou definir porque, de fato, o frio já não deixava o infeliz sequer pensar...

segunda-feira, 3 de janeiro de 2011

Na vastidão

Na vastidão do quarto olhou pro teto e viu a sombra da arandela transformar-se em lança. Um ataque surpresa do velho mundo? Nenhuma arma digital ou teleguiada, apenas aquela, velha, e sua ponta, a se lançar estática em imaginações móveis, apontando o céu que dali nunca se via. Agora já seria impossível movimentar os indiozinhos de seus sonhos, os cavaleiros cruzados de sua nostalgia infantil, arqueiros ou catapultadores de lembranças. Naquela cama, imóvel na meta do médico, só olhos e cérebro poderiam atuar livremente. E se apagassem a luz extinguiriam a lança, porque já não dependia dele a vitória dessa ou daquela tribo, o massacre ao clã de outrem ou o combate rumo à conquista pelas tropas persas, árabes ou bizantinas. Embora minúsculo, o quarto era grande demais para ser conquistado em única batalha, haveria de se promover uma guerra pela sobrevivência, mas suas forças estavam indolentes demais para apanhar aquela lança.

domingo, 2 de janeiro de 2011

- Ah, vá

- Ah, vá avacalhar sua tia! Era mania de Edgard começar qualquer frase com “ah”. “Ah, não quero esse pão com manteiga”, dizia à mãe. “Ah, eu vou pescar uns lambaris”, argumentava com o pai. “Ah, beijo agora não”, desculpava-se com a namorada. “Ah, quanto custa essa coxinha?”, indagava o dono do boteco. Apesar do cacoete, Edgard levava uma vida próxima à normalidade, repleta, apenas, de pequenos reparos. Por conta dos ahs, quase todo comércio lhe negava descontos e até o padre relutava em lhe dar a benção. “Ah, então me dá um desconto”, “Ah, então me abençoe, vá!”. Seus ahs soavam como menosprezo a tudo. Mas foi graças a eles que se livrou de perder o relógio raro, doado pelo avô, dias antes de morrer. Quando o pivete apontou-lhe a arma e exigiu a peça, Edgard nervoso soltou logo “ah, então, leva”. O ladrãozinho achou que aquilo não lhe valeria nada...

sábado, 1 de janeiro de 2011

Miudinho e bom

Miudinho e bom. Velho Mateus só não fora evangelista porque nasceu muito depois da bíblia, embora também já faça tempo. Tem a eletricidade dos fios desencapados que se tocam, célere como um esquilo esquálido, um leve posso com a benignidade das plumas. Dá ajudas e conselhos para colocar o mundo em acomodação constante. Pai do apaziguamento. Deposto de armas nos gestos e nas falas. Às vezes parece ser daquele mundo, não desse. Outras, assume a mediação entre as certezas alheias que se embatem. Nunca foi diplomata de carreira, juiz de pequenas causas ou conciliador concursado. Passa e refaz desfeitas. Bandeira branca, arco da aliança, pomba da paz. Mateus é desses que faltam. Que mereceria ser muito mais do que um personagem de uma crônica, ainda por cima pequena, como ele.
(Mongaguá-SP)