sábado, 31 de julho de 2010

Sem peixes

Sem peixes nem água o aquário abrigava cartas de um período bom. “Era ele quem cuidava disso”. Na sala, o jornal do último dia de dois anos atrás, dobrado sobre a mesinha da luminária, ao lado da poltrona. “Ele tinha a mania de comentar notícias”. Havia um disco e poeira no aparelho de som. Tocaria sonatas, se espanado o pó e ligado à tomada. “Detestava música barulhenta”. O desnível no colchão de casal marcava a ausência de equilíbrio. Afundava tênue, num ponto entre a beirada e o parceiro ao lado. “Estava um pouco gordinho, e essas espumas não são lá essas coisas”. A roseira seca embaraçava suas raízes em pedregulhos esbranquiçados, sem vida ou consideração. “Eu nunca tive paciência para adubar e regar. Gostava do perfume”.

sexta-feira, 30 de julho de 2010

Do pico

Do pico do monte não se vê o lodo que, aqui embaixo, deixa o rastro de quem passa por todo o chão da casa amarela. “Me limpe os pés”, ralha sem concordância dona Josefa, sempre que um pirralho tenta correr por sala adentro. “Estás a rir-te de quê?”, ela esbraveja, provavelmente porque nos seus idos interiores portugueses havia obediência onde houvesse criança. Na contrapartida carinhosa dos pratos a velha criada serve os caldos, verdes e fumegantes, para alimentar almas a colheradas sonoras. Gostos e lambuzares de vidas, passadas às barrigas cheias. Nenhum medo transtorna os sonos, nenhuma ânsia atropela a paz. De chegar lenta, com raios de sol dosados ao balanço dos galhos da figueira, a manhã se assenta e se firma novidadeira. O tempo na casa amarela vai começar de novo a passar, mas é ruim observá-lo aqui, do pico do monte.

quinta-feira, 29 de julho de 2010

Sentia delirium

Sentia delirium tremens quando bebia pouco. Fosse nada, e morreria talvez, sem delírio sequer. Mas além das formigas laboriosas, insetos inatingíveis e monstros raivosos, viu a irmã Veridiana como uma garrafa de aguardente andante. Com esguelha argúcia e obsessiva intenção capturou-a pela cintura como quem pega a botija. Era preciso abrir-lhe o gargalo para sorver a seiva do alívio à alma. Veridiana estrebuchou e agonizou cinco horas, antes de ser vista pelo convidado do irmão, o vizinho Acácio, que por lá apareceu para um “gole da boa”. A estranha embriaguez dos dois nunca pode ser explicada direito à polícia que, com raiva além da média, fez a história ir parar nas manchetes de jornais.

quarta-feira, 28 de julho de 2010

Teatralidade e entranhas

Teatralidade e entranhas devassas sobravam em Nair mais do que as próprias nádegas protuberantemente exageradas. Com postura de gata retesa antes do salto, ela espichava-se em poses que se alongavam juntas às suas palavras amaciadas. “Queeeemmmm? Eeeeuuuu?”, costumava abrir conversas, sempre que alguém (do sexo masculino, esclareça-se) se dirigia a ela. A inobservância dos homens menos talentosos sempre assegurava efeitos positivos àquela calhordia esbanjada. Derretiam-se por Nair, todos com a certeza que ela lhes sussurrava diretamente na libido. Mas Ernestão, mesmo com seu talento duvidoso, foi quem desconfiou daquele desperdício de afetividade. “Ssssimm, vooocêêêê!”, zombou de besta, quando tentou apenas perguntar as horas àquela felina sobrepesada. A máscara de Nair perdeu a fruição. Com a aspereza da lixa de unha que empunhava, mirou-a ao homem, e caprichou sem veleidade: “qual’é a tua ô pobreza?”.

terça-feira, 27 de julho de 2010

Edifícios decrépitos

Edifícios decrépitos entornavam a praça onde Igor se sentou. Biscoito e água. A três bancos de distância havia Selma. Jornal e leque. Como se a pipa fosse flecha e Nilton um cúpido, a linha perdeu a tensão sobre os braços de Igor e pipa caiu ao longe, no colo de Selma. Que é isso menino? Que é isso menino? Os dois gritaram uníssonos e trocaram olhares que não se haviam visto. Desculpe, moço. Desculpe, moça. Nilton pediu sem jeito. Os dois já faziam ver. Machucou-se? Foi a senha de aproximação. E trocaram impressões, páginas de notícias e biscoitos de manteiga. Beberam água, abanaram-se. Não haveria despedidas eternas, nem distâncias impossíveis. Saíram em desmedida vastidão de espaços entre os edifícios decrépitos. Novo prazo para a vida, depois do amor à primeira vista.

segunda-feira, 26 de julho de 2010

Tomados pela

Tomados pela sensação comum de espanto todos os integrantes da excursão desceram da velha Kombi. O perceptível aumento de seus movimentos de braços e falas pelos cotovelos não deixavam dúvidas quanto à intensidade do medo. Parar ali, naquele buraco de vila periférica, era em si uma exclusão do mundo seguro a que estavam habituados. Pausa movediça para um lado sombrio do alegre final de férias. Não tardou que um deles indagasse: “e se aparecer algum ladrão?”. Ou um estuprador?, completou outra. A tensão só não era maior porque a rua se alargava ainda mais a poucos metros dali. Via-se de longe todos os movimentos umbrosos. Desde que de lá o vulto caminhou em direção a eles pavores íntimos reforçavam o ruído daqueles passos. Identificaram um homem, sua aproximação lenta, seu admissível intento ameaçador. A menos de dez o sujeito olhou-lhes diletante. Olhar manso, afetivo. “Meninos, vamos até ali na minha casa para vocês ligarem aos seus pais. É perigoso ficar aqui na rua numa hora dessas...”.

domingo, 25 de julho de 2010

Ao passar da sexta

Ao passar da sexta para a sétima pêra as pupilas de Paulo pareciam dilatar. Focavam no verde-amarelado da fruta toda a dimensão da gula incontida. Esperavam uns segundos e a boca dava cabo à função, afoita e às partes. Paulo era traça em tecido, cachorro no osso, gato no peixe, galinha no milho. Sem distinção do doce ou salgado, tremia os beiços com traiçoeiros tiques nos períodos de desocupação da boca. Obeso mórbido colecionava apitos de perus, lacres de goiabadas e rótulos de presuntos. Contava com os pratos quentes ou embutidos frios, menos com a prescrição do médico, dada em tom de ultimato, para que parasse de comer gorduras. Paulo esbravejou com Deus, desanimado da vida. Mesmo assim, apanhou a oitava pêra do lapso da dieta: fruta pode.

sábado, 24 de julho de 2010

Estou no berço

Estou no berço e seguro um avião, provavelmente um jato, capaz de levar à Europa uma centena de pessoas ou soltados a uma das guerras de minha imaginação. É uma foto em preto e branco que, diria, feita em estúdio não fossem os inúmeros papéis amassados de brigadeiros comidos sobre o colchão, a denunciá-la caseira. Batida em dia de festa de aniversário. Ponteiro de um relógio que marca desinteressado um tempo que houve. Dúzias de dentes mostram minha felicidade que ri para os olhos e lente. Riso pra sempre. De lá a hoje. Só não orna onde está: dependurada com sua moldura alva ao lado do espelho cotidiano. Melhor guardá-la no velho baú de fortunas sentimentais, para evitar comparações de soslaios.

sexta-feira, 23 de julho de 2010

Sobre a sopa

Sobre a sopa Saulo confidenciava com a namorada naquele restaurante barulhento. Uma cintilação sonora de pulseiras frouxas revelava a inquietude do lugar, mais para um bar do que para um ponto romântico de encontros, ainda que furtivos. Parece que diziam dos outros umas coisas de cochichos ou observações impertinentes dos gestos, das roupas, dos modos. Alheios, na recíproca conta, aquilo que deles também deveriam estar a dizer. O gordo Saulo e a pequena Lúcia não eram, de fato, casal à primeira vista. Insinuavam um equívoco ou interesses escusos. As bochechas aumentavam e diminuíam, mas as fofocas não cessavam; como o alimento engolido. Só se irritariam para valer quando o garçom, num gesto mecânico, apontou-lhes e riu, tendo como ouvinte o barman de bandana branca. Saulo ameaçou se levantar para satisfações, Lúcia intercedeu: “liga não, namorei ele quando era criança”.

quinta-feira, 22 de julho de 2010

O privilégio de ver

O privilégio de ver fantasmas Jaime só reconheceu como tal depois de confundi-los com as gentes desse mundo. Deu bons dias ou boas noites a muitos de outra esfera, sem que se desse conta da receptividade do além; todos muito correspondentemente gentis. Foi, portanto, por acaso, e súbito mal-estar, que descobriu o inefável: o ruivo de olhos verdes, baixo e meio manco que, conforme concluiu, havia se mudado há pouco para o apartamento vizinho, na verdade, morou naquele mesmo endereço, antes de morrer de cirrose há três anos. O inocente porteiro apenas revelou a história porque o próprio Jaime foi quem lhe comentou a simpatia do vizinho. Aliás, quantos vizinhos! Porque também foi naquela conversa que Jaime ficou sabendo que, havia dois anos, somente ele morava no prédio.

quarta-feira, 21 de julho de 2010

A bolinha

A bolinha de espuma incha e desincha no canto da boca. Adelaide respira e cria situações embaraçosas. Magríssima, como cachorro de rua no inverno, soma desenganos com o passar dos dias. Primeiro foram os amores, que a deixavam inevitavelmente sozinha, minúscula na vida. Depois, os médicos, estetoscópios em riste e falas ocultas às tias remotas, que tumultuavam a saleta do quarto daquele hospital de paredes lisas e desalmadas. Não passa da semana. Há meses disseram. E externaram suas impossibilidades com a famigerada frase feita Foi feito tudo o que era possível. Adelaide melhora a olhos vistos. Desfocados se parecem, pela espécie de nevoeiro entre visão e foco. E ela esboça sorrisos irônicos. Vinga-se da vida como pode.

terça-feira, 20 de julho de 2010

Irritadiço com

Irritadiço com o irmão que dirigia afoito provocou-lhe a ira ao dizer pare. Não parou e excitou o pé no acelerador indômito. Amesquinharam-se em Tobias imagens da velocidade da infância. A lata com a qual o irmão lhe fizera um talho na cabeça. A briga de murros pelo irmão arrogante, que desafiara opositor com que não podia. As culpas assumidas pelas diabruras do mano. E a curva adiante. O irresponsável acelerava nas arestas dos silêncios. Pensou no irreparável, no intransponível iminente, na irrecuperável reconciliação a que se dispunham naquela ida à casa dos pais. Então pensou na grave ofensa do lisonjeio a Sofia. Na desordem da saia que sobrava sobre a sua cama, justo na visita do irmão. Na claridade oblíqua que se abriu junto à janela quando chegou de repente e contente. E deixou que a curva fizesse a justiça... repressiva e impiedosa.

segunda-feira, 19 de julho de 2010

Depois vieram

Depois vieram os anjos. Que bem poderiam ser demônios ou sabe-se lá que sujeitos travestidos de trabalhadores, no quarto quase sempre solitário. Foram visões tão amplas e óbvias, que se tornaram pessoais, num final de vida na cama. “Fala pra esses homens pararem de mexer na cômoda”. Todos olhávamos. Todos não víamos ninguém. Inaptidão de nossas visões curtas, ante aquele conjunto de imagens consumido ao longo de quase cem anos. A avó via. Ciganos, saqueadores, gnomos húngaros, no adocicado sem sabor dos visitantes em exposição. Dilatou a fé, amontoou histórias, fingiu loucuras nunca antes realizadas. Uma centena de gavetas numeradas tremia num entusiasmo alucinado, com aflição ansiosa. Mexiam, mexiam em tudo de sua vida autônoma, arqueada por obsequiosas mãos alheias. Morrer é, definitivamente, lento demais para quem tem brio.

domingo, 18 de julho de 2010

Soldado tremeu

Soldado tremeu, cachorro vacilou e a frouxidão de Thomas saltou à vista. Não era briga para ninguém desse mundo, desanimou o povo que assistia ao embate. O barbarismo de Zazu, homem lá de seu metro e noventa, ridicularizava destemidez, afoiteza ou galhardia. Levava à covardia até macho juramentado; só com as mãos, sem colocar as pernas na peleja. Era a própria expressão do valente, no imaginário de toda a gente. Andava em voga, mas era tímido. Não que isso significasse imprevidência. Só não via com bons olhos essa coisa da vigilância alheia sobre sua força e feitos. Antes de qualquer reação aconselhava a presa: “cuidado e precaução não te fariam mal”, mas a petulância sempre se mostrou maior do que a prudência. E assim, batia, espancava, espalhava a contragosto o seu íntimo desprazer. Então se mudou da vila. Contam que foi para um mosteiro. Mais afoitos até se arriscam a dizer que as artes marciais não serão mais as mesmas. “Pós-Zazu, adeus kung-fu”, rimam, sem a menor graça.

sábado, 17 de julho de 2010

Distanciada e vaga

Distanciada e vaga, era fim. Como acertar aquela bifurcação da estrada, com uma indicação assim? Aquilo estava destinado ao fado ou à fatalidade. Sina de sorte ou dita de azar. Curioso mesmo era o desajeitamento ou a falta de pressa do sujeito. Falava com hesitação pausada, um quê de suspeita outro de imprecisão. Incerteza, enfim. “Se o amigo virar à direita deve ter umas moitas de eucaliptos, mas se virar à esquerda, acho que vai dar (vacilava) num... não, na lagoa. É, pode ser que eu não esteja equivocado”. Não está? Pensei incrédulo. Mas o homem não parava a ladainha de hipóteses. “então o senhor vire assim...”, continuava com uma convicção inconcebível, como se já tivéssemos atravessado a tal bifurcação com seus lados irresolutos. Então eu lhe disse “té logo, moço, brigado!”. Ele respondeu: “mas olhe, o senhor não pode errar naquelas curvas, viu? Senão vai parar nos quintos”.

sexta-feira, 16 de julho de 2010

Bem reputado

Bem reputado eu continuo em Moçambique, sem esses guinchos melancólicos da Clodilde aqui. Não sei se sou amigo do rei, mas ando por pouco. Precisa ver, Carlão, o povo só falta se deleitar de agrado quando invento essas brincadeiras com as mãos. Meus dedos anônimos incham-se de afeição. Aqui se eles se esquecem do dinheiro, pronto! É mão na cumbuca. Clotilde faz descaso, xingamento e desonra. Insulta, afronta e desestima. Não tem último cigarro, derradeiro uísque ou coceira nas orelhas que me possam fazer ocupar os dedos. Não, Carlão, o jogo aqui é de esfolamento, sangria, ambição da grossa. Não há mágico que agüente, nem zelo que satisfaça. Finco pé para não ficar de mãos abanando, porque de batalhação já me enchi. Clodilde nem ornamenta, dá logo no vigor da gente. Quer saber? Moçambique é o êxodo e o êxito, que se dane Clodilde, lá tenho a mulher que eu quero, nas mãos que escolherei.

quinta-feira, 15 de julho de 2010

Foi da natureza

Foi da natureza a lei que o condenou àquele tamanho mínimo. Já o comportamento detetivesco veio depois, aprendido à custa de muitos cursos por correspondência, que ele, orgulhoso, chama agora de “ensino a distância”. Odilon Holmes, que se lê escrito em seu cartão, foi o pseudônimo que adotou o Odílio da Silva, assim que recebeu por carta registrada o diploma de “Detetive Paticular Crasse A”. O “paticular” foi porque se esqueceram de um “r” e a “crasse” uma mera substituição de um “l”, conforme ele próprio descobriria, um ano e meio depois de tê-lo emoldurado à parede do escritório, num momento de ócio. Mas ele tem clientes fiéis, quase sempre para a busca dos infiéis. Ao desvendar o Caso Sophia, levou o marido ao suicídio. Com a alma superior ao seu metro e cinqüenta e quatro, teria até consolado viúva desleal, a quem propôs casamento. Mas ela se recusou em busca, como teve a pachorra de dizer a ele, “de algo maior e mais estudado”. Elementar.

quarta-feira, 14 de julho de 2010

A que papel

A que papel horrível se presta, em casto senso de sonso, o palerma do Adolfo. Nem notou que denunciava Estela, quando Ludolfo perguntou-lhe o paradeiro da mulher, guloso de desforra e sangue.
- Ela foi... ela foi... ela foi... ah, ao mercado! É, no mercado! Tergiversou Adolfo, com a inutilidade solerte dos caguetas contumazes e a fala dos palhaços em espetáculos ruins. Depois viu Ludolfo sair, com um embrulho mole e a alma em punho, para só voltar horas depois, abanando ao vento a toalha branca, que estampava em sangue traços da face de Estela, como um santo sudário impressionista. Adolfo dava corda no relógio da parede, mas parou atônito para olhar aquilo. Manhoso, mais ou menos, olhou o queixo, a boca, o nariz, orelhas e linhas verticais curvadas, que modelavam cabelos estampados na figura. Dissimulando o fascínio, perguntou solene a um Ludolfo transtornado: "Vai mandar emoldurar? Fica bonito, com guarnição cor-de-rosa. Estela gosta dessa cor e dá um ton sur ton que só com o tempo deixa de combinar...".

terça-feira, 13 de julho de 2010

Adormeceu de exaustão

Adormeceu de exaustão, então se pôs a roncar. Dividia a má vontade com os sonhos, que sobre ele jamais se fizeram pesadelos. A desordem molhada escorria por seu corpo suado. Era em verdade um pijama às riscas, cuja ganância pelo dinheiro e poder ultrapassava a ilimitada noite escura. Lua nova, porém, não faz lobisomens. Surpreendido e incrédulo viu chegar os dois rapazotes de faca em punho e cérebro empoeirado. Si, si, no, no, tentou miraculoso amanso. Mas havia raiva na dupla. Dinheiro, money, grana meu velho, farejava afoita. Farto da guerra deu tá bom como resposta aflita. Dia de miserável derrota. Cães vagabundos que se vão com migalhas. Com a feição amarrotada, só não riu porque a desmedida usura não lhe cabia nos lábios. Fora pouco o roubo sôfrego. A nota preta estava sob o colchão fétido. Então se abanou com as notas de cem. Perder vinte dá um calor danado!

segunda-feira, 12 de julho de 2010

Trotava lânguidas

Trotava lânguidas tosses quando baixou guarda à entrada de Haidê em sua vida. Passou a acariciar projetos, contemplar os pratos de sopa, comprazer-se com os xaropes lenitivos. Melhorou benzinho. Até foi à janela apreciar o céu curvo e turvo daquela tarde seca ilimitada.
Tratando-lhe da ausência do sentido às coisas, Haidê revigorou-lhe os pulmões e a fé. Do contrato é que ele não sabia. A fantasia quanto ao despojamento da moça, que chegava com as manhãs, pão fresquinho e café para alma, o fez supor que enfim alguém se afeiçoara a ele. Essa criatura doce, apresentada pela filha mais velha como amiga, o conhecera descomposto e mesmo assim o incorporou à sua vida. A inverossimilhança só tocou à porta quando quem bateu antes de entrar, naquela manhã de julho, foi a filha, não Haidê. “Ela queria aumento, papai”, disse-lhe seca a gênita desapegada. No começo daquela noite Tácito; era esse seu nome; morreu sozinho com uma tosse extemporânea.

domingo, 11 de julho de 2010

Reduzido a garrafas

Reduzido a garrafas, Odenato tornara-se tão inconveniente quanto um violinista principiante ou criança em restaurante. Seus passos de elefante manco eram ouvidos e identificados assim que chegava, seja pelo desânimo com que batiam no solo, seja pelo atropelo que causavam ao cão Gogó, velho conhecido do bar. No fundo, Odenato parecia querer libertar-se desse invólucro terrestre, para chegar mais rápido ao seu céu particular. Pantagruélico e beberrão contumaz, tinha o rosto vermelho em flor, o que lhe assegurava algo de diabólico. O que poucos sabiam é que simultaneamente às suas próprias derrotas, Odenato tinha hábitos benemerentes, como visitar velhinhos no asilo, para distrair-lhes o tempo restante. A mais regular das visitas era para Seo Faetonte, um idoso inválido, cuja vida limitava-se à cama e ao quarto malcheiroso. Tanto supôs que o entretinha, que se indignou quando o doente, com amável indiferença, chamou-lhe perto, e cochichou ao seu ouvido: “por favor mate-me, prefiro chegar antes ao inferno do que aguardar sua próxima visita”.

sábado, 10 de julho de 2010

Banalidade

Banalidade. Ao bem da verdade Heitor não era cético, apenas não levava a sério que a água do mundo poderia acabar. Arredondava-se com o ré maior no chuveiro, torturava o cão atento com os pingos contínuos da torneira da pia, encharcava, enfim, o pé de cacto da varanda, que nem de água gostava tanto assim. Nas discussões com seu próprio cérebro chegava blasfemar contra os rios e o mar, pela incompetência que demonstravam ao deixarem o povo questionar as suas permanências eternas como provedores. A água era tema recorrente de Heitor, porque sempre lhe assegurava bons minutos de polêmica, o que é essencial para quem, como ele, adorava freqüentar os bares. Sua argumentação ganhou a força de um tsunami quando as águas invadiram boa parte dos litorais do mundo. Orgulhoso, Heitor impostou a voz, quando se encontrou com os rivais de opinião: “Acabar? A água vai tomar a gente!”.

sexta-feira, 9 de julho de 2010

Ria daquele jeito

Ria daquele jeito! Quase vibrante, com a tez de violências reprimidas. Empurrou-me sem muita cerimônia e apanhou meu pão, recheado com finas fatias de mortadela, conforme havia pedido ao atendente do bar. Aqueles que estavam do lado, inclusive o balconista, viram a deselegância. Em meu acanhadíssimo modo de ser disse que se enganara, que o pedido era o meu, que eu ditara a preferência pelas fatias delgadas, que até o limão cortado ao meio havia solicitado. Ele não se perturbava, impassível como o velho balcão. Mordia com gula e enlevo exagerados bocados de minha fome. Afastei-me, por consciência e comparação entre o meu tamanho e o dele, e pedi um sanduíche idêntico ao “do homem”. A distância entre o rapaz que o trazia e a minha, em relação ao usurpador do alimento alheio era a mesma. Notei que o tal engolia o último naco e levantou-se, já de olho no meu novo rango. Minha superação foi olímpica. Com três passos rasos fiquei a um metro do garçom, lonjura idêntica a do homem deselegante. Mas minha destreza de infância foi decisiva. Acertei na mosca, bem no meio do sanduíche. Como nos velhos tempos de campeão de cuspe à distância.

quinta-feira, 8 de julho de 2010

A amabilidade acendeu

A amabilidade acendeu as feições Liamara. Foi o que viu de mais evidente nas maneiras de Irene, depois daquela situação traumática. O marido recém saído da maca do carro de resgate, rumo ao centro cirúrgico, oculta e quase inconscientemente já lhe provocara uma certa premunição. Irene envolveu-a de consolos pertinentes. Que a equipe médica era a mais qualificada para aquele tipo de situação. Que já presenciara inúmeros casos idênticos, incapazes até de deixarem seqüelas. Que Tadeu era forte como um touro, macho mesmo, homem que se dobra às pequenas incidências. Que a pancada não chegara a atingir sequer a tatuagem do cavalo que Tadeu tinha na virilha. O conforto de Liamara começou a virar incômodo. O lenitivo, um enfado. Como Irene, aquela enfermeira desconhecida, sabia da tatuagem de Tadeu, se o marido entrara vestido na maca do hospital? Mas a paz só se transformou definitivamente em ira quando Irene tocou-lhe a mão no ombro: “aqui entre nós, eim Liamara, Tadeu é um homem que vale por dois!”.
(Monte Verde, 8 de julho de 2010)

quarta-feira, 7 de julho de 2010

Descia a ladeira

Descia a ladeira com a compenetração de um José Saramago, quase memória. Havia as pedras centenárias e pisões marcados tortos pelos muitos traficantes de ouro, escravos e por escritores de muita fama. A mocinha caminhava reta em direção à ponte, rumo do mar. Olhava, rotineira, os barcos que esperavam gente para navegar por contratos. Via a vida cercada por certos encantos construídos à base da diversão alheia. Não parava, a mocinha. Seguia retilínea aquela mesma direção dos dias úteis, cujos inúteis, provavelmente, não foram tão retos assim. Tinha uma pressa implícita na alma. Espécie de vontade oculta de ver o tempo passar ainda mais ligeiro. Logo a sua vila Paraty estaria invadida por estrangeiros, milhares deles. Gente das letras e das artes, curiosos à procura do autor, textos convertidos em dólares ou euros. A mocinha tinha atrás si três crianças, que só não formavam a tal “escadinha” porque o mais alto era o mais próximo dela, no declive da ladeira. A distância os nivelava. Apesar dos muitos romances, a mocinha da aldeia possivelmente nunca lera nenhum. A prática é inimiga da teoria.
(Paraty, 7 de julho de 2010)

terça-feira, 6 de julho de 2010

- Porco!

- Porco! – gritava a mulher sempre que Benoval tirava-lhe da mão as queijadinhas, brigadeiros ou beijinhos, para comê-los sozinho. Ambos eram arredondados, mas ele não sofria de diabetes, o pretexto era o ideal para romper com a divisão. Ela, bem nascida, a todo o momento em que houvesse visitas na casa gostava de frisar a diferença de berço em relação ao marido. Via de regra, ele seguia piamente as ordens da mulher, que insistia por exemplo, na compostura e erudição do marido. Composto e erudito nos assuntos da economia do casal, Benoval era do tipo tacanho. Ambos eram baixinhos, mas ele usava ternos sob medida, que quase lhe faziam parecer um homem sério. Furtava do sogro, usurpava as cunhadas (ambas muito belas na sua visão interesseira), trapaceava a sogra, com a condescendência parcial da esposa feia. Até que, já bem ricos, por herança ou perversão, decidiram “tirar os outros dos negócios”. O intento foi bem até que o cunhado mais velho descobriu-lhes a trama. – Porcos! – gritava o cunhado sempre que os avistava. Mas o casal seguia indiferente e milionário: ela, sem os doces; ele, empanturrado de queijadinhas.
(Paraty, 6 de julho de 2010)

segunda-feira, 5 de julho de 2010

Petrificada pelo aceno

Petrificada pelo aceno imóvel a Valentim, quando o avião já partia cruel, derramando fumaças, Nise entendia-se abatidamente sozinha. Melancólica proeza para justificar sua existência de mulher honesta. O marido aviador tinha nas asas as pernas, e vivia a caminhar pelas nuvens. Como que diante de uma porta fechada, Nise não atravessava nunca a fronteira do desconforto. Preferia os shoppings às praças, os salões de beleza aos teatros. Depois, havia sempre uma certeza, Valentim voltava para as noites de ruídos metódicos de um amor exíguo. Nise pastoreava as aeromoças, cheirava as roupas e atrapalhava seus brios com perguntas desconexas. Valentim não se abalava, provinha. Que era, afinal, o que bastava à volúpia de Nise. Pudesse adivinhar os destroços e as ruínas que provocava no marido, Nise jamais lhe invadiria a vida. Estaria no céu, como ele sempre esteve. Só deixou de observar que nuvens mudam. E num vôo para Paris, Valentim descobriu que a felicidade poderia baixar de uma retribuição às gentilezas de uma comissária de bordo, como um trem de pouso, tranqüilo e seguro.
(Paraty, 5 de julho de 2010)

domingo, 4 de julho de 2010

O odor da mandicoa

O odor da mandioca subia lento pela sala pálida. Tudo era muito real para não despertar os vizinhos: o cozimento, a fome e o silêncio consolador à parturiente. Nem os sogros de longe, em visita ao natalício, quebravam o universo da casa minúscula. A espingarda de dois canos desdenhosamente instalados sobre o fundo de pinico não se armava de exaltação. Era mais um objeto, entre os poucos do lar, como o coador e o pó de café, o punhado de lenha, o fogão que as queimava, mesinha improvisada com andaimes descartados e as cadeiras, quatro, no total. Até os gemidos de Iracema pareciam regressos de fora para dentro da garganta. Sem rosto materno que agoniza à vida, Cema conservava a melancólica proeza de não fazer alarde. No fundo, tinha vergonha de não ter força, da musculatura retesada que não lhe deixava carnes em excesso, da penosa desonra de não ter conseguido evitar o quinto rebento. A mãe manejava lenta a escumadeira de alumínio carcomido. Distribuía fumegantes pedacinhos da mandioca entre todos, mas quando chegou a Iracema, segredou quase entre os dentes: “nascendo com saúde, filha, é o que basta!”.
(Ubatuba, 4 de julho de 2010)

sábado, 3 de julho de 2010

Emerge em espirais

Emerge em espirais a paixão de Dimas pelos discos de vinil. Conserva ainda que com marcas de dedos e pequenos riscos impertinentes sua vasta coleção de rock, sumariamente comprada em detrimento do proprietário, da casa de aluguel onde mora. Uma notável combinação de argumentos fez com que convencesse o homem a "amar" Mick Jagger, a tremer os intestinos com Led Zeppelin e a enxergar as auréulas esfumaçadas dos santos nos três sujeitos da capa do Experience - Are You Experienced?, entre os quais o próprio Jimi Hendrix. Tão implacáveis como o aumento dos chiados, os anos fazem de Dimas um extemporâneo mas, com as mãos de um maestro que movimenta batuta, ele coloca o braço do velho toca-discos sobre o acetato. Tzzchirric, tzzchirrec. Tzzchirric, tzzchirrec, e, erguendo a cabeça, aponta a relva embranquecida da barba para o prato giratório. Sábio, como um personagem de Angeli, enumera as qualidade da obra: "Por trás desse chiado tem um puta som!".
(Ubatuba, 3 de julho de 2010)

sexta-feira, 2 de julho de 2010

Assistia às elipses

Assistia às elipses das mariposas ao redor da lâmpada, com olhos de quem vê uma imagem piedosa. Uma espreita da ausência de sentido, vista do nada, contemplação do apático. Perilo era assim aos sábados. Um quase infame. As madeixas escovadas da almofada de fuxico e pelos era sua instalação definitiva. Deitava em pasmo e dali não se levantava, ancorado pelo ócio. Nem livro, nem televisão, rádio ou distração habitual. Quando muito, pouca conversa. Alguém que por ali passasse era capaz provocar-lhe uma olhadela indiferente ou respostas evasivas, quase sempre marcadas por sim ou não. Quando tanto, pode ser.
Com a serenidade cúmplice de Heron, o vira-lata amarelo, Perilo movimentava os braços tímidos e perversos sobre as orelhas do bicho, que sentia carinho onde havia displicência. Tormento sentia só na madrugada do domingo, dia em que voltava à vida, sempre reclamando a todos que sofria de insônia.

quinta-feira, 1 de julho de 2010

Não estou sendo

Não estou sendo infame com você. Ando desguaritada e você sabe bem o porquê. Ainda não sarei. Minha vida é trabalho e cama, de um ao outro, numa dificuldade incrível, claro, sem a mínima vontade de um e com infinito desejo de não sair do outro. Pode ter sido recaída, por abuso, então, mais uma vez, você é o responsável. Às horas tantas, você diz: “bom, agora tá no momento da verdade!”. Confesso que suei frio. Baixou aqui a nega fatalista,e não foi sem motivo, né? Senti uma estupidez vaporosa naquela mesinha do bar, mas me mantive firme e pensamenteira O que for saindo vou retrucando. Achei até que você carecia desabafar, contar do seu eu. O eu da neguinha aqui agüentou. Aquelas suas histórias de nadar no riozinho quando criança foram bonitas. Aquela outra, do que julgou ser sua primeira paixão, já me acabrunhou. Foi piorando, quando você protelou pra dizer que era. Você me conhece suficientemente para saber que eu odeio intimismos velados. Aí surgiu o Ubiratã, garçom. Você ficou calado. Mas quando me disse que o Ubiratã não estava apenas fisicamente, ali no bar, mas era o personagem de sua história, minhas pernas bambearam. Entendi o motivo para irmos sempre àquele lugar...