domingo, 4 de julho de 2010

O odor da mandicoa

O odor da mandioca subia lento pela sala pálida. Tudo era muito real para não despertar os vizinhos: o cozimento, a fome e o silêncio consolador à parturiente. Nem os sogros de longe, em visita ao natalício, quebravam o universo da casa minúscula. A espingarda de dois canos desdenhosamente instalados sobre o fundo de pinico não se armava de exaltação. Era mais um objeto, entre os poucos do lar, como o coador e o pó de café, o punhado de lenha, o fogão que as queimava, mesinha improvisada com andaimes descartados e as cadeiras, quatro, no total. Até os gemidos de Iracema pareciam regressos de fora para dentro da garganta. Sem rosto materno que agoniza à vida, Cema conservava a melancólica proeza de não fazer alarde. No fundo, tinha vergonha de não ter força, da musculatura retesada que não lhe deixava carnes em excesso, da penosa desonra de não ter conseguido evitar o quinto rebento. A mãe manejava lenta a escumadeira de alumínio carcomido. Distribuía fumegantes pedacinhos da mandioca entre todos, mas quando chegou a Iracema, segredou quase entre os dentes: “nascendo com saúde, filha, é o que basta!”.
(Ubatuba, 4 de julho de 2010)

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