sexta-feira, 31 de julho de 2009

Brigar a prazo

Brigar a prazo sempre me pareceu a melhor contenda. Esse negócio de “bateu, levou”, assim, à vista de todos, tem para mim a superficialidade de um sonho. Sei bem a diferença entre beber e afogar-me.
Belinha era beligerante. Bem merecia um socão nas fuças. Classe média abobada, dava de dama, logo no primeiro uísque da manhã. Depois enchia meus ouvidos de palavrões, e meus sentimentos de gerúndios. Fui segurando a onda, fabricando a calma, engolindo os ódios, destilando o troco.
Custou quase um ano para a cicuta fazer efeito. As doses ínfimas se destilavam demais no gelo de Belinha. O que me valeu foi a regularidade de seu vício.

quinta-feira, 30 de julho de 2009

Depois que deixei

Depois que deixei o globo da morte voltei para o Sul. Fui aprender harpa paraguaia, com um índio velho que vivia na fronteira. Lá eu conheci Ivanka, a contorcionista, e nos enrolamos: coração no meio das pernas, mãos pra todo o lado. Cheia de dedos, ela me trocou por um domador de pulgas. Vi que esse negócio de arte não é pra mim, não. Optei pelo balão, e um vento-norte me levou à colônia japonesa, na noroeste paulista. Às vezes a gente chega por cima, mas começa por baixo. Fui ser ajudante de lutador de sumô. O porco vai ao banheiro, depois das lutas, mas não consegue se limpar. Esse esporte é uma merda.
No que fui me lavar no rio, lavei a alma como catraieiro. Desci o rio Paraguai ensacando barbado, corvina, dourado e jaú. Até que uma âncora me caiu no pé. Inchou e eu fiquei de vez no serviço público. Coveiro nessa cidadezinha até que é calmo. De vez em quando a gente descobre o sentido da vida.

quarta-feira, 29 de julho de 2009

Espio fechaduras

Espio fechaduras e buraquinhos desde quando descobri as chaves. Se já vi coisas do arco da velha...
Meto olho lá, feito flecha em chama nos telhados de palha. Não me escapa um ó. Glorinha, a prima gorda, cheguei a ver depenada. Até a vó, coitada, vi lambuzar a virilha escura com leite de rosas. Tio Ronaldo tinha uma mania estranha de ficar mexendo na partes. Depois escondia o livrinho branco, cheio de desenhos de mulher pelada, embaixo do colchão de palha. Vai ver foi por isso que ele amarelou.
No meu primeiro emprego, vi aquele loirão dando um saco de dinheiro pro prefeito. Até brinquei com ele, quando saia da repartição. Ê seo Prefeito, dá um pouquinho pra nós! De noite vieram aqueles homens, nervosos, e me quebraram esse braço, de tanta pancada. Diziam “’cê num viu nada, ‘cê num viu nada”. Chamaram-me de sem vergonha, de fazedor de coisa errada. Agora só tenho esse emprego aqui, na casa dos padres. É ruim, mas vejo cada coisa!

terça-feira, 28 de julho de 2009

Fui à merda

Fui à merda como você me mandou, mas continuo acreditando no provérbio: onde há pardal aparecerão outros pardais. Pensa que me convence? Não existem mais grandes idéias nas quais a gente bota fé sem objeção. Não se acredita mais em ética, em Deus, na humanidade, nos políticos, ou se acredita em tudo isso, o que dá na mesma.
Aquela sua história de pureza intelectual já fez boi roncar. Você, uma intelectual, fala de maneira idealista, mas age no espírito da sacanagem mesmo. Ora, se não sei.
Foi só um beijinho? Você não conhece a lei da cautela. Cada um de nós é feito de dois, e até agora não sei se é de manhã ou à noite que voltamos a ser um só. Por via das certezas insofismáveis, das exatidões inexoráveis, das austeridades implacáveis, te digo de coração: - você não passa de uma vaca, com o perdão do leite derramado.

segunda-feira, 27 de julho de 2009

Se é para tratar

Se é para tratar mal, tucho nele macrobiótica. Digo que vou salvá-lo, ainda. Pura sessão Auschwitz no desgraçado. Aí destrambelho a falar as coisas que ele gosta de ouvir, sempre muito sacado! Ataco de regressão freudiana, fazendo o otário se dobrar até a pose do útero da mãe. Satori budista, novena cristã, zeitgeist hegeliano, despacho pra Exu, tudo com ar do mais puro insight gestáltico. Ele vai ao nirvana, sem sexo, nexo, nem nada.
Eu sou foda, digo para mim mesma, concordando imediatamente comigo. Ele lá, se achando o bem amado. No fundo, eu gosto de manejar teóricos. Meu sonho, de menina, era ser médica. Concertar bonecas. Não deu, então a gente tem se que virar com o marido que tem, o provedor de nosso futuro. Mergulho minha cachola no molho de vodka com laranja e passo os finais de semana praticando a minha medicina. Que alternativa?

domingo, 26 de julho de 2009

Dez encontros

Dez encontros, sugeriu o psicólogo para tratar do transtorno bipolar de Vânia. Ela riu. Fez as contas, e começou a chorar: “não sou bipolar, doutor”. Feito uma santa, a quem Deus tivesse mandado uma visão, sugeriu um chope. Espécie informal de primeiro encontro.
Como tocasse o Tom, em versos de Moraes, concluiu, ao quinto copo, que saberia amar aquele homem, por toda a sua vida. Quando ouvia música, chegava quase ao estado de vida de uma flor, sobre a qual caem sol e chuva.
Houve um segundo encontro. Terceiro. Quarto. Quartos de motéis e bares musicais. É difícil imaginarmos as dores que nunca sentimos. O psicólogo, enamorado, propôs a Vânia que fossem morar juntos, em pleno décimo encontro. Eufórica, Vânia caiu em depressão. Não podia nem vê-lo, tanto pior ouvir Vinícius e Jobim.

sábado, 25 de julho de 2009

Na perfídia

Na perfídia levava a vida madura. Fora dama, na juventude. Ganhou ouro e sobrenome ao manipular o casamento com Heráclito Mello e Souza Sodré. Fez-se grávida à época propícia. Senhora da fazenda, sub-reptícia. Milionária, na malícia. Estrupício de pessoa, chegou a pensar, calado, o sogro fascista.
Tão torturante como o aparecimento de um ou outro cacoete, ou a inevitabilidade de um vício, foi quando se sentiu sem sexo. O herdeiro-marido, boa alma, era ruim nos desígnios de amor. Chegou a apoiar o movimento cultural antropofagista, mas “comê-la”, como dizia às amigas pérfidas, estava longe de.
Assim, embora seus ambientes cultuassem a cultura como o sal da vida, ela, e amigas mais íntimas, não gostavam de comida muito salgada.
O traste morreu, ela comunicou Lulu, se rindo, no velório do marido rico. Cabe destacar, aqui, a importância social de Madame Ludmila, a Lulu. Foi a precursora, em toda capital paulista, na contratação de mancebos para os serviços de cama e mesa. Negócio fechado.

sexta-feira, 24 de julho de 2009

Casamento a todo

Casamento a todo o custo. A superficialidade do sonho levou Priscila, neo-quatrocentona, a amarrar o noivo. Com o esforço de uma louca que quer espetar com uma agulha um pardal que voa livre, marcou data e imprimiu convites. Pousou a mão nos cabelos de Alberto, fazendo pulsar ali embaixo o ritmo confuso de seus pensamentos, na ânsia de tocá-los com os dedos.
Agendou o enlace com o padre e amarrou o nome da rival num pano vermelho, com a aspiração de que, naquela encruzilhada, Alberto, guiado pelas trevas, seguisse mão única, a dela própria, evidentemente. Galinhas e velas, marafos e gamelas, bufes e cinderelas, arrumações tagarelas: - Contratou o fotógrafo? Escolheu as músicas? Coreografou os parentes? Elegeu os enfeites? Selecionou os salgados? Não, obrigado, estou sem comer, pra não correr o risco de estourar o vestido de noiva.
Flashes, luzes e festa farta. Na lua-de-mel no exterior, uma coisa interior. A natureza tem uma estranha propensão a produzir evidências. Alberto nem desfez a mala, desfez-se da mala, do circo armado... e voou de volta à Juraci.

quinta-feira, 23 de julho de 2009

Tão discrepante

Tão discrepante como o beijo e a mordida, resolveu tentar a vida alternativa plantando hortaliças orgânicas. Não durou mais do que o tempo de sorriso. Atolou-se nas covas de salsinhas, tropeçou nos tomilhos, amargou rancores com a erva-doce. Tudo aquilo que não compreendia tinha o mesmo nível. Física quântica ou o cultivo da couve-de-bruxelas se assemelhavam em sua ignorância.
A expressão de uma impressão quase sempre lhe furtava o sonho. Enxergou a salvação no artesanato de palha, mas foi a conversão que o salvou dos erros. No último domingo, quando pregava a palavra aos quase cem fiéis do templo que implantou, contou que era executivo de multinacionais. Mentirinha minúscula, perto da grandeza do negócio.

quarta-feira, 22 de julho de 2009

Ligou do nada

Ligou do nada. Sublinhava as falas, como se algumas palavras estivessem entre aspas, em sentido tenso. O “faz tempo” que a gente não se fala, ecoou com horror fingido, feito a morte de uma relação enfeitada com trapos coloridos. Fazer o quê, fofa? Falei, depois de alguns monossílabos.
A comoção era de um exagero doce, que lhe caía do coração. Minha boa vontade quase adormeceu junto com a mão imóvel, de tanto segurar o telefone, ponto. Sumimos mesmo, exclamação.
Proust provavelmente saberia o nome de cada uma das nuances de meu desprezo. Agüentei firme. Apoiei o notebook num cantinho da mesa, e dei uns googles-imagens em palavras que cismei na hora: enganação, falsidade, capciosidade, ardileza e essas coisas, que dificilmente se traduzem em fotos ou desenhos figurativos. Deu pra ver coisas estranhas! Tão incomuns como aquela discurseria que meus ouvidos escutavam distraídos.

terça-feira, 21 de julho de 2009

Coreografia vacilante

Coreografia vacilante. Cenário carregado. Trilha duvidosa. Pais excitadíssimos. Prosseguia o espetáculo, em seu segundo ato, e nada. Todos os alunos da classe apareceriam, sentenciava o programa, sem explicar que a maioria só o faria no final, como parte do corinho desafinado.
Protagonistas eram as duas gordinhas: Claudinha e Nizete, amigas inseparáveis, água e terra, pão e manteiga, X e XL, mel e mamão, doce e formiga. Davam-se às personagens com a volúpia de uma mordida no chocolate alpino, a satisfação da última chupada no leite com ovomaltine, o prazer de um hambúrguer duplo.
- Aferventa, disse uma. Em cima daquele morro há um pé de ananás, não há homem nesse mundo como o nosso juiz de paz, respondeu a outra, com a ironia martinspeniana. E a gurizada, do nada, surgia no palco: - Se me dás que comê. Se me dás que bebê. Se me pagas a casa, vou morar com você. Mário, o magrinho, concluía: - Aferventa, aferventa! E fim. Todos agradeceram os aplausos, menos as duas. A diretora da escola havia preparado uns lanchinhos...

segunda-feira, 20 de julho de 2009

No caminho para casa

No caminho para casa ela regorjeava canções pueris. “Que cor eles têm? Azul, amarelo, vermelho também”. Eram cantos urgentes, que precisavam sair da alma, antes que descobrissem tudo. “Do berro, do berro que o gato deu”. No sinal fechado deu para pousar a vista no néon verde. Boates que piscam, gente que dança. E aquela chuva fina que oscilava pontos no pára-brisa entristecido. “Vamos dar a meia-volta volta e meia vamos dar”.
Outra primeira engatada, com vontade de dar ré. Retroagir, regressar, retornar. “Não venha mais cá, que a mãe da criança te manda matá”. A chance foi utilizada às avessas. Se não atirasse, a ofensa não cessaria. Agora haveria de passar para a segunda, terceira, marchas ativas, capazes de ultrapassar o seu gesto criminoso. “Dentro dele, dentro dele mora um anjo, que roubou, que roubou meu coração”. Estacionou num beco, para ver se o timer do limpador descortinava as gravidades. Sim, limpou. Não, já molhou. Sim, clareou. Não, já turvou. Chuva insana. Vai ver empossa solidões. “Foi por causa do ......... que não soube remar”.

domingo, 19 de julho de 2009

Peremptório, o pernóstico

Peremptório, o pernóstico é que nunca o é. Sempre encontra uma vírgula, capaz de espezinhar o sucesso alheio. Sem palavras chamou-me de blefe, só com aquela entortada da cabeça e a esticada pedante do canto direito dos lábios colados. Tá certo que eu citava Freud, e a mais alta psicologia que li foi do dalai augusto-cury. Mas, a gente estando alto, ajuda. É fiz também esses trocadilhos gerundiosos. Vai ver foi isso. Esse transtorno bipolar que me acomete a pinga. Épico, com mãe-guaça. Pronto, outro trocadilho etílico-freudiano, insubmisso. Ruim como o pernóstico. Só não entendo porque o tal não diz qual é a expressão ideal da criação.

sábado, 18 de julho de 2009

Dei um pé

Dei um pé na bunda de Odete. Os senhores perdoem a palavra chula, usei a “bunda”, mas liberdade assim só sentia quando moleque, e saía correndo feliz e sem rumo até ser dominado pela tristeza daquela liberdade sem sentido.
Vejam melhor, os senhores, Odete era daquelas detalhistas sádicas: um copo de cerveja, nos bate-papos com os amigos; duas colheres de arroz em cada refeição, quando deu para vigiar o peso; quinze minutos de esteira, para a barriga tanquinho; uma única posição e, bem, não quero entrar em detalhes. “Tudo que se ganha em ordem no detalhe, se perde no todo”, disse uma cara aí, Robert Musil, se não me engano. E ainda me mandou para análise!
Gastei horas e burras com aquelas doidas: ela e a psicóloga. Quando deu pra ler Agatha Christie, pensei, é o Jack Kerouac que me faltava. Sim, ela vai simular um crime perfeito. E adivinha quem será a vítima? Eu, heim? Odete que se encante com um contador, para carimbar, no lugar certinho, suas guias de recolhimento...

sexta-feira, 17 de julho de 2009

Nova safra

Nova safra de grilisse, dizia a piscada do maluco velho ao outro, quando as duas neo-hippies entraram no bar, dependuradas nos piercings. Brancas-cocaína, tinham os cabelos talhados à gilete, tingidos em negro-lua-minguante, com assimetria macunaímica. Pediram cerva, pra acompanhar os cara! Vâmo sentá! Jimorrisaram um papo musical, sem chance. Jimihendireitaram na cadeira, e partiram pra astrologia. Janis era capricorniana! Que nem eu, sussurrou rouca a doida, jogando a mexa à joplin sóbria. Charme da hora, falou o sorriso do outro ao um. Admirável mundo novo, esse novo. É Huxley, cara. Só. Se entreolharam a quatro. Pintou um clima estelar. O destino aqui, pela posição da espuma da cerveja, revela que devemos fazer o bom senso levitar. Podes crer, o destino. Viraram os copos, de tirinho. Saíram de mãos dadas, assobiando Strange Days...

quinta-feira, 16 de julho de 2009

Deu na telha

Deu na telha fazer mantras. Bata ao corpo, assento em lótus, incenso em punho. Sempre um agá depois do bê e do dê: bhabhadhedhoidho. Quase um hindu na Vila Alzira, não fosse a cueca metida a grega: zorba. Bhabhadhedhoidho. Som saltitante no palato. Chegaria à iluminação. Veria a luz, sabia, daí o ray-ban marrom escuro, se ela fosse muito intensa. Precaução e caldo de galinha não fazem mal a ninguém. Bhabhadhedhoidho.
Ensinou védico às moças quando lhe baixou um Buda bodado. Repita lenta...inspire, e pausadamente... expire: bhabha-dhe-dhoidho. De olhos bem fechados. Sinta o tranco, o tântrico, não afrouxe a pose. Zó Zebastião zalva vozê... Pra frente. Dispa-se dos medos. Bhabhadhedhoidho. Pra trás. Não perca a ligação. Bhabha, bhabha... isso. Relaxe lentamente... Agora pode ir se lavar.


quarta-feira, 15 de julho de 2009

Falava de coisas

Falava de coisas exatas de um jeito impreciso, como se aplicasse ungüento na alma. “Janaína foi mais ou menos minha esposa”, disse, com mais desdém do que realmente sentia.
Contou que a rainha do mar lhe fizera a corte amorosa na volta de um passeio de escuna, pelo litoral catarinense. Já mergulho, sob águas claras da Reserva de Arvoredo, sentiu o galanteio da deusa. Passava a calda na máscara de vidro e, de mais longe, olhava apaixonada, diferente do olhar de peixe. Quando subiu no barco, a divindade se personificou, fez sinal para que retornasse ao leito, o abraçou, e então se casaram.
A representação desajeitada de seus desejos não convencia aos homens daquele bar. Casar com o mito era por demais inverossímil para os corações sem paixão. Daí o desprezo do homem por aqueles semelhantes bêbados.



terça-feira, 14 de julho de 2009

Espiava os nossos lábios


Espiava os nossos lábios quando a gente falava. Acho que “pérfido”, que mamãe tanto usava nos xingamentos ao vizinho, era aquilo. Se bem que, às vezes, aqueles olhos dele, de jaguatirica doente, passeavam pelo nosso corpo inteiro, mas parece que não viam nossos vestidos da moda. Dava uma coisa...
Batia as palmas curtas sempre que nosso pai saía para trabalhar. Era batata. Uma colher de pó de café, uma xícara de arroz, leite moça, pedia esses assuntos para comer. Mamãe logo abotoava a blusa, até a última casa, e nos olhava braba, com ordenação de fiquem aí, de não se mexam. Minha irmã e eu virávamos de ouvido xereta para aquela conversa de porta.
Se o povo falava demais, acho que mamãe escutava. Só voltamos a brincar na rua quando aqueles olhos sumiram. Tudo o que não presta um dia muda, dizia nosso pai. Mas aí, os nossos olhos é que espiavam as bocas dos outros.

segunda-feira, 13 de julho de 2009

Colibri não pia


Colibri não pia, parece que estampe. Um canto martelado, como se chamasse a fêmea abreviando o verbo estar: to, to, to, to... Parado. Assentado. Sem as performances do vôo que o consagram. Não se pode assoviar e chupar cana. Cantar e beijar a flor.
Nem se vê a parceira do bem-te-vi. E ele pia em três notas. Voz média e modulada, rica em repetição. Meio minimalista o bichinho. Fosse mais novo, e o pensaríamos adestrado a Philip Glass. Cara bandida de máscara negra, riscada no rosto, sobre a cabeça branca. Veste gorro preto e estufa o peito amarelo, quando clama amor.
Gumercindo da Silva Palhares diz todo momento que é “muito homem”. Não pia, nem estampe, que dirá saber voar. Para conquistar Maria Camila mandou um buquê de rosas vermelhas e um cartão, com um poema meloso. Até subiu à cobertura do prédio, com o telefone celular carregado, para um retorno agradecido. Lá, o sinal é ótimo, ainda que não capte as sabedorias da natureza.

domingo, 12 de julho de 2009

Entraves escaldantes

Entraves escaldantes impediam o acesso ao fundo do incêndio. Como alcançar Branca, ante aquelas chamas laranjas? Sem hora ou aviso, as senhoras labaredas subiam aos metros, como em esforço proposital para derreter o mundo. Densas. Danças de morte às coisas, que levariam consigo um início de paixão, caso ele não chegasse ao fundo onde, íntima, Branca ofegava acuada. Seria queimada, pressentia. Tragada, intuía.
Se crepitação de alma ou sirene de bombeiros ele não sabia. Impossível identificar sons que se sobrepõem à lucidez. Depois, havia aquela fartura de vaga-lumes abrasadores, com feição de centelhas, a turvar-lhe as vistas. Piscares descontrolados, contrações involuntárias dos muitos músculos, corrida em falsete e passos mancos, já sem o rumo certo da posição de Branca. Por ali, não. Há um armário de memórias que se extingue no caminho. Por lá, também não. A estante de armazenar fórmulas, repletas de vidros disso e daquilo, impede a passagem, com explosões sucessivas. O fogo destrói sem piedade, e já não há mais como salvar Branca.

sábado, 11 de julho de 2009

Mania de desconhecer

Mania de desconhecer a história. O hexavô, doce e amável, dizia que o pai, açoriano por acaso, era quem fazia as botinas de couro sob encomenda, ao Infante Dom Henrique. Ele, não. Chegou a ler algumas letras, o que lhe valeu o cargo de despachante-em-terra das cartas de Caminha, e acabou por ficar no Brasil. O pentavô abaianou-se. Quando conheceu a mulata desavergonhada Lili, ficou ali, às voltas de São Salvador. Nasceu o tataravô, com sonhos de governar cabana, e vinha, quando mal sabia dar ordens na cozinha. O trisavô desceu para as Minas. Rodeou o ouro que o diabo fundiu. Foi Francisco, o Lisboa, o Aleijadinho, quem bateu à casa para reclamar, quando o bisavô, demônio de criança, quebrara-lhe a orelha de um anjo. O avô nasceu logo depois, mas não ficou. Imaginou-se liberal paulista, tamanha a sua paixão pelo café com pão. Viveu muito da dieta. Conheceu, e se casou com Maria Mariana, uma catarinense açoriana. Lesse a Bíblia, e o filho deles entenderia o Gênesis. A ler, preferia fazer filhos. Cujos filhos não largam os livros de Paulo Coelho...

sexta-feira, 10 de julho de 2009

Surgia e desaparecia

Surgia e desaparecia. Virou uma seqüência esse vir e ir. Pensei que não poderia fazer nada de mau, por ser uma pessoa boa.
No começo, era um relaxamento. Ansioso, é verdade, mas me absolvia da solidão. Genilda brilhava na minha vida. Genilda desaparecia, opaca. As imagens de Genilda perseguiam-se umas às outras. Meu comedimento e ponderação hoje explicam: era eu mesmo quem cultivava Genilda, pena que, às vezes, no plural.
Genilda que chegava era um amor. Genilda que partia dava raiva. Eu passei a ficar desolado com a Genilda que ia. Cada qual quer arrumar o mundo do seu jeito, e eu queria apenas aquela, a que vinha.
O médico me diz que nunca houve uma Genilda simpática a mim. Ingênuo. Essa, sem querer, pensando ser a outra, foi em quem eu disparei aqueles quatro tiros. A outra... bom, a outra já tinha ido embora mesmo.

quinta-feira, 9 de julho de 2009

Contrário às certezas

Contrário às certezas absolutas, tinha-as obsoletas. Jurava que o homem não fora à Lua, que girafa não existia, Luiz Gonzaga não era o Rei do Baião e dragão, dragão mesmo, só havia na China, muito antigamente. Chegou a apostar uma jóia com o compadre Jacinto, o LP “Detalhes”, de Roberto Carlos, dizendo que Elvis Presley não morreu. Vivia, segundo afirmava, numa ilha paradisíaca na Oceania. Ninguém ganhou a aposta, porque dados como causa mortis, velório, enterro e túmulo em Graceland, não comprovavam nada.
Perdeu-se do juízo quando Rosalina, mulata faceira que lhe encantava por parcos vinte reais, afirmou-lhe que não haveria brincadeiras naquele dia marcado, estava grávida. Honesta, confessou que o futuro rebento não seria seu filho, dada a rotatividade de encantos que distribuía na cidade. Ignorando as feições mestiças, as letrinhas do teste de DNA ou as más línguas do povo da terra, ele foi ao cartório e registrou seu “filho”, com sobrenome e tudo. Vive de amores com a criança, que desde logo aprendeu a não confiar nas certezas desse mundo.

quarta-feira, 8 de julho de 2009

Assessor parlamentar

Assessor parlamentar era o cargo para o qual havia sido nomeado. Não sabia direito se aquilo o nivelava por cima ou por baixo. O velho senador, cunhado novo, era bom para sua irmã mais nova e presenteava a mãe, ainda que vivesse às turras com a imprensa, por conta de suas obscuridades morais.
Alheio ao fato de que a moral é a transformação de estados momentâneos em estado permanente, a proximidade fez o cunhado achar estranho o tique que o político tinha: meter o dedo em qualquer buraco que visse. Um furinho na camisa alheia, uma concavidade mínima na parede, depressão ínfima no tampo da mesa, miolo de fechadura, boca de torneira, enfim, onde houvesse pequena abertura artificial, de ordinária forma arredondada, lá estaria o indicador do deputado. Chegava ao cúmulo de, disfarçadamente, nos comícios, descer do palanque para endedar um furinho numa bandeira, que balançasse lá embaixo, nas mãos de algum correligionário.
Meses depois, um conluio. Foi segredar com a irmã sobre o anormal hábito do marido. Só então observou no fraterno ombro esquerdo um buraquinho de vacina. E ouviu, atônito, a revelação da mana: “foi amor à primeira vista!”.

terça-feira, 7 de julho de 2009

Anseios e segredos

Anseios e segredos. Suporto tão pouco a traição quanto o papel de seda suporta a chuva. Acho até que li isso alguma vez, mas não importa. Roseana é que importa. Traz do Paraguai aqueles caraminguás eletrônicos, badulaques perfumados, trastes de marcas falsificadas. Falsa, isso é o que ela é. Fico aqui, paralítico, sentindo ciúme dos homens que andam. E como anda, Roseana! Sobe e desce daqueles ônibus pulguentos. Perfumada, apalpada, pra chegar aqui com a maior cara lavada: “Benzinho, olha o filme do Brad Pitt que eu trouxe pra você. Nem saiu no cinema ainda”.
Sou covarde para o suicídio. Inclusive não sei por que me casei com Roseana. Odeio, como a morte, tudo que finge ser definitivo. Não, isso não. Não lhe dou um pé na bunda porque já expliquei meu problema, né? Minhas pernas, assim. Mas essa mão aqui, ó... tá inteirona. Olha, veja o que eu faço com essa merda desse dvd do Brad Pitt.

segunda-feira, 6 de julho de 2009

Criatura aquinhoada

Criatura aquinhoada, o Nelson. Quando as luzes da colônia começaram a se acender aqui e ali nas casinhas de massa-barro, desafiando o enfumaçado das queimadas da cana, que subiam em lenta densidade rumo ao céu, ele acendeu o charuto. Um Cohiba, cubano, puro como os sonhos de Tavinha, a mocinha do Seo Zé da Turca, a quem prometeu uma bolsa nova, de marca, em troca de umas perversões já devidamente praticadas, na manhã daquele dia.
Ouviu o trinco do portão abrir, mais nada. Nenhum passo ou “ô de casa!”. Revólver existe pra isso, pensou, sacou, foi ver, campeou, desconfiou em dobro. Nada. Baforava atento quando apareceu Tarzan, o boxer amarelo, amarronzado pela terra e liberdade, todo babão, abanando o cotó do rabo. Até o cachorro aqui é inteligente, contaria logo depois ao compadre Oto, fazendeiro vizinho, que parou para uma pinga, e aproveitou para devolver-lhe o empréstimo.
Na manhã seguinte não se levantou. Ataque fulminante, explicou o doutor. Dormia. Nem sentiu. Nelsão, Compadre Nerso, Nelson Usineiro. Criatura aquinhoada, ele.

domingo, 5 de julho de 2009

Cantava e decantava

Cantava e decantava no jorro do chuveiro. A água morna já lhe cobria os pés, e apesar do desfavorecimento das musas, apresentava solene o próximo número, como se o banheiro do sala-e-quarto se localizasse no centro de um estádio de futebol repleto: “De Chico Buarque, Haroldo interpreta a canção As cartas”... Ilusão, ilusão, veja as coisas como elas são...
Água, eco, box e encanto o ensurdeciam no êxtase. Nem ouviu a insistência do interfone, que implorava por atenção. “De Caymmi, o fenomenal Haroldo exibe a saborosa canção A vizinha do lado”... que não liga pra ninguém, todo mundo fica louco e o seu vizinho também.
À porta, um estranho batuque insistiu fora do ritmo, com entonação surda e intensidade absurda. Como um se backing vocal revoltoso insistisse em se sobressair ao ídolo, Haroldo ouviu, numa das pausas: “cala a boca, seu corno!”. Ao silêncio dos muitos pingos que lhe molhavam a inspiração, Haroldo fechou o chuveiro. Mas, para se enxugar, ainda murmurou: “De Roberto Carlos, o intimista Haroldo traz a vocês O show já terminou”... Eu também vou tentar sorrir em nossa despedida...



sábado, 4 de julho de 2009

Realizar aquilo

Realizar aquilo que deseja, nem podendo, alguém realiza. Claro que Alberto não falava de coisas materiais. “Desejos profundos”, meu caro, dizia, enquanto virava outra carta do tarô ao inseguro Camilo. “Imagine um católico ir visitar o Reino do Céu, assim, de repente. Você acha que algum toparia ir?”. Camilo nem piscava. Olhava a carta e olhava Alberto, a carta, Alberto, nos moldes sucessivos do olhar de cachorro vadio, quando cisma comer um bolo sobre a mesa e tem o dono do lado.
A hora estava cheia de alma. A sala, parca de luz, e de lucidez também, mas Camilo não enxergava, só mirava, tremendo do fígado à razão. “O Eremita ou Ermitão, arcano maior número nove”, o gutural Alberto trovejou. Camilo mijou pelos olhos. Balbuciou com sílabas lívidas: e-re-mi-ta é i-so-la-men-to, é é é a-fas-ta-men-to? “Éééé”, gritou Alberto. Camilo pulou da cadeira: então, tchau.
Correu sala afora, casa afora, rua afora, bairro afora, até quase perder o fôlego. Só parou na praça distante, e enquanto recuperava o ar, pensou descoordenado: pelo menos não paguei os vintão da consulta.

sexta-feira, 3 de julho de 2009

Não fiquei olhando

Não fiquei olhando tanto assim o bebê. Sou bom em disfarçar os meus sentimentos verdadeiros, mas a mãe, na cabeceira do berço, me olhava atenta, como se esperasse uma reação falha de meu dom teatral. Fiz um bilú mecânico e disse o nome, abreviado e diminutivo, no tom idiótico com que se fala com bebês: “Guzinhôôô!”. Gustavinho. Gustavo. Nem aí, o bebê albino. Albino? Branco até onde não deveria. Isso é que clareava o olhar da mãe.
Rosa, nos olhinhos, onde, lá, sim, deveriam ser brancos. Da careca translúcida às alvas pontas dos dedinhos, o bichinho imaculado parecia esperar pela cobra peçonhenta à qual seria servido, ratinho de laboratório.
Vizinhos de antes, mudaram-se depois. Vivem num ermo, longe das gentes e dos seus olhos. À sombra de alguma paz. Gustavo não pode tomar sol.

quinta-feira, 2 de julho de 2009

Um exemplar

Um exemplar do Dicionário Aurélio. Três discos, formato long-play, de Heitor Villa-Lobos. Um tapete Arte de Origem, trama única, em ocre. Um computador Pentium 3, Intel, preto empoeirado, ligado. Uma geladeira Brastemp branca, bastante riscada e sem a testeira de solo. Um fogão Jacaré, boca única. Alguns coadores de papel Melita, meio saco de pó da mesma marca. Um quinto de litro de cachaça Ouro, de Salinas-MG. Oito cascos vazios de cerveja, rótulos da marca Skol.
No boletim de ocorrência as coisas são chamadas pelo seu nome, e recuperam a personalidade exaurida pelo uso. Como se nenhum deus entrasse naqueles cômodos (três, totalizando 42 metros quadrados) há tempo. Só não constava o nome da vítima. Homem. Aparentando 35 anos, pele branca, vestindo calça jeans desbotada e camisa vermelha, puída nas axilas. Sem documentos.
Na tela de proteção, uma espécie de testamento virtual era o único sinal de luz, ali, naquele espaço desprezível: “agora isso tudo é seu, Elisa, canalha”.

quarta-feira, 1 de julho de 2009

Há no contraste

Há no contraste um traço mórbido, alguma coisa liga uma oposição à outra. Divino Ernesto era dado à filosofia, ainda que falasse aos postes e desconfiasse do fato de, de fato, estar mesmo aqui, nesse mundo. Sua irregularidade nos passos, seus sorrisos manquitolas, espirros intermitentes e fungares extemporâneos não deixavam dúvidas: era um diferente. Comprava no sebo o Nietzsche que via. Como enxergasse mal, pinçava os aforismos a ler tratados, e os adaptava às chulas. Tal torto em seu direito, delicadamente mau-educado, replicava o pensador alemão, sempre que aos sarros lhe tiravam a concentração: “aquilo que não me destrói fortalece-me”.
Encasquetou com Clara Áurea, catequista quarentona cujo sonho era se casar. Cristianismo e Nietzsche é mortadela com açúcar, mas ela se benzeu e cedeu. A fé é querer ignorar tudo aquilo que é verdade, disse-lhe ele, amando e nietzschando. Ela só sorriu: “mentira, seu bobo!”.