terça-feira, 14 de julho de 2009

Espiava os nossos lábios


Espiava os nossos lábios quando a gente falava. Acho que “pérfido”, que mamãe tanto usava nos xingamentos ao vizinho, era aquilo. Se bem que, às vezes, aqueles olhos dele, de jaguatirica doente, passeavam pelo nosso corpo inteiro, mas parece que não viam nossos vestidos da moda. Dava uma coisa...
Batia as palmas curtas sempre que nosso pai saía para trabalhar. Era batata. Uma colher de pó de café, uma xícara de arroz, leite moça, pedia esses assuntos para comer. Mamãe logo abotoava a blusa, até a última casa, e nos olhava braba, com ordenação de fiquem aí, de não se mexam. Minha irmã e eu virávamos de ouvido xereta para aquela conversa de porta.
Se o povo falava demais, acho que mamãe escutava. Só voltamos a brincar na rua quando aqueles olhos sumiram. Tudo o que não presta um dia muda, dizia nosso pai. Mas aí, os nossos olhos é que espiavam as bocas dos outros.

Nenhum comentário:

Postar um comentário