sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

Dedos anônimos


Dedos anônimos lhe mexeram a nuca. Um triste odor de árvores se levantou do jardim, mesclado com o agridoce cheiro de urina furtiva de criança. E ali não era cemintério nem nada que pudesse remeter a mistérios. O piado suave de pardais adormecidos mostrava a vida com seus baldes de sinais. Tinha a solidão também, mas acha que Marília iria se importar com ela? Só aqueles toques, e dedos, e nuca é que não se encaixavam bem, porque parada ali não via vultos. Julgou então que seria simples impressão ou a mão de Deus ou ciscos do ar ou um vento tão pontual que chegava a materializar-se. Marília nem sabia de fato se ali, parada, chegava a existir. Acho que não era ela, não era com ela, nem poderia acontecer aquilo. Quando acordou só estranhou a mecha aberta na nuca: coisas da imaginação ou do travesseiro com penas de ganso.
(Mongaguá-SP)

quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

Com dois revólveres

Com dois revólveres apontados para o rosto de Herman os pivetes receberam o relógio, a carteira recheada e o cordão de ouro de São Pedro Canísio, mas reclamaram do seu sotaque. Às gargalhadas bárbaras quebraram em mil pedacinhos seu par de óculos, pisaram em seu pé e saíram andando calmamente, como se o fluxo do dia estivesse em perfeita normalidade. O alemão se sentou no chão, atônito e troncho para a direita, apalpando o dedão doído. Seu inconformismo tolheu-lhe a voz e a reação de ódio que de fato sentia. Fou auxiliado por um porteiro do prédio que assistira mudo e de longe à desventura do gringo. Na delegacia, detalhou os gatunos, descreveu que vinha de um desencontro com Hélida Helena da Silva, brasileira, solteira 24 anos, com quem internetava há meses e a quem viera conhecer no Brasil. Que ela não era loira como dizia, nem modelo, a redonda. Que já se preparava para voltar à Berlim. O escrivão anotou tudo, mas reclamou do seu sotaque.

(Mongaguá-SP)

quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

A constância parecia

A constância parecia mania, mas era apenas o Sol e seu calor. Natureza do tempo, sem tiques ou obsessões. Então só poderia ser a percepção que eu tinha ao atravessar as ruas daquele verão. Ouço bem a voz da luz, mesmo quando um zumbido contínuo que me produz surdez tenta abaixar o tom de sua claridade. E não era de medo aquela sensação quente que me suava pele antes, era de desconforto, mesmo que não coube arrependimento pela opção tropical de levar a vida. Quando a chuva caía torrente e depois fina, corria no ar uma evaporação próxima do tocável, quase sólida, por um triz de espalhar-se aos pedaços. Então sentia faltar o vento, ainda que a folhagem do ipê balançasse negando, pra lá e pra cá. Os anos de quentura vão se somando, e a gente vai chegando nesse aquecimento íntimo.
(Mongaguá-SP)

terça-feira, 28 de dezembro de 2010

Tudo pelo nome

Tudo pelo nome. Assim tem que ser. Era Ylário, Ylário, e nem poderia ser hilário, porque nome é nome. Fazia questão do certo, por extratos de delírio ou pendências impraticáveis com a incorreção. A substância que inflamou: álcool. O fogo que não pegou: falho. Fátuo, nem pensar. Torpeza não topava. Xingamento: coisa de extravagante. Gente série, define. Então otário, que chamado fosse. Certinho, que pejorativamente lhe insultassem, nem tchum. Pestanejar olhando era desprezo. Cada coisa no seu lugar, cada lugar com sua coisa. Obsessão era virtude. Por mais que carecesse lógica, às vezes sempre valia o silêncio. Ylário só não se conteve quando botaram açúcar em suas formigas. Com ar de seriedade, raiva de pitbull faminto e aflição de contradito, soltou sem piedade a melhor ofensa que guardava no âmago: “óbvios!”.

segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

Inseri a monotonia

Inseri a monotonia de ouvir suas lamentações no menu preferencial de minha estadia nessa cidade. Funciona como uma espécie de rebeldia ao convite de tua mãe, para que eu viesse aqui alegrá-lo um pouco. Não sou palhaço, tua mãe deveria saber. E tua inconveniência é notória, né Gustavo? Só não perde para a sua inutilidade. Então pode falar... Vai, aí, contando suas agruras. Vou reforçando-as, dando corda, estimulando teus tédios. Ainda que a menina te amasse, não haveria suficiência para tua alegria. Todos esses teus perfumes, roupas e acessórios em demasia demonstram o descomedimento com o qual esbanja teu fastio. Se bebes é porque bebes, se opta pelo isolamento é porque vives isolado, se te presenteiam é porque te dão erros. Então pode falar, Gustavo, vou ouvindo. Todo o depressivo, no fundo, é um carrasco de um egocêntrico.

domingo, 26 de dezembro de 2010

Sob nova direção

Sob nova direção, Ioná fez questão de frisar. Comprara a funerária há um mês e pouca gente enterrara. Era preciso traçar a missão corporativa, analisar a situação de mercado, formular objetivos e estratégias, como a aconselhou Neftali Nefasto, notório consultor administrativo e autor de vários livros para a abundância empresarial. Mas não foi dessa ciência que saíram os positivos indicadores de crescimento da Céu Formoso Dádivas Cerimoniosas Ltda, a CEFODACE, empresa de Ioná. Novos presuntos, frescos cadáveres e mortos já velhinhos ganharam vida com a parceria empreendida com Tirso da Nenéia, o chefe das milícias da vila. Rindo até as orelhas, Ioná nem precisou mais veicular os outdoors propostos por Nefasto: “Seu parente morreu? CEFODACE, o destino certo!”. Alguns comentam, é verdade, que o Ioná passou a ter um caso de amor com Tirso da Nenéia, famoso também por suas perversões, mas isso é intriga dos vivos.

sábado, 25 de dezembro de 2010

Cultivou mamona


Cultivou mamona, na infância, para municiar os estilingues. Cobrou passagens, nos ônibus, porque se recusara estudar e sabia fazer contas, notoriamente somas e subtrações. Vendeu todas as sortes e bilhetes da loteria nas ruas. Empregou-se bem, na indústria de gaiolas domésticas, onde obteve elogios dos chefes e possíveis ódios dos passarinhos. Agora é Papai Noel, todo dezembro. Não sabe bem o motivo do “ho, ho, ho” que mandaram dizer. Lá, pra ele (como faz questão de dizer: “aqui, pra mim”), nunca gostou da cor vermelha. Gosta mesmo de tocar surdo em rodas de samba, nunca sino. Para não perder o emprego, desrespeita o médico do postinho de saúde que o manda emagrecer devido ao colesterol. Desfila com brinquedos que nunca teve, distribui sorrisos que sempre lhe foram escassos, diz palavras boas com sua boca má. É como se renascesse em cada Natal, numa concorrência inescrupulosa ao aniversariante.

sexta-feira, 24 de dezembro de 2010

Por causa do velho

Por causa do velho Barbato, que falava que era uma coisa, a casa assombrou-se para nós, crianças tementes. Ele lá morava, mas dizia caprichos com forma e cheiro de lobos peludos e almas penadas. Que patinhos amarelos seguiam porcas imundas; que lençóis brancos pousavam na mangueira, passeavam pelos corredores; cachorros fortes e bravos apareciam do nada ou submergiam na terra dura do terreiro dos fundos; que mortos andavam em roda. Barbato velho arregalava nossos olhos crédulos e contradizia as coisas que aprendíamos na escola e nas missas de domingo. O diabo do velho morreu de repente e foi velado na casa. Que, aos poucos, foi perdendo a assombração e as assombrações. Que foi ficando semi-assombrada. Até que a família a vendeu para uma emissora de rádio. Que falava... coisas ainda mais assombrosas que o velho.

quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

Transeuntes e vinhos

Transeuntes e vinhos dividiam o espaço exíguo. Um deveria evitar tocar o outro, pelo bem do trânsito interno e da moral vigente. Mas não havia vigia. O garçom atendia a todos, meio confuso, meio solícito. Taças baratas de vidro grosseiro batiam nas latas das mesas, enfileiradas sem convicção ou simetria. Não sei aonde o apresentador imaginou que pudesse haver ali a “atenção” que pedia? Mas pedia aos nacos repetitivos, porque prometia uma atração no palco. E saias de gala suburbana, maquiagens tons acima, gravatas e ternos das ofertas para crentes, entrelaçavam-se em danças trôpegas quando a cortina abriu para além do rasgo vertical. De trás, sorrindo ouro, cárie e falho, apareceu o mágico com a assistente anã. Deu um tímido boa noite a todos, e já meteu a cutucar a cartola, como se tentasse arrancar do fundo uma pomba, ainda que rajada, mas similar àquela da paz.

quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

Economizamos a água

Economizamos a água e o café. Larissa chorou. Dona Ester sacou da bolsa um terço. Túlio só falava em quebrar tudo. Claudileide, a recepcionista, pedia calma gente. Apertava inúteis botões, que em tempo de energia elétrica funcionam, garantia ela. Mas a luz já se acabara há oito horas, os telefones emudeceram. As salas adjacentes também passaram a abrigar outras celas, com outros túlios, donas esteres, larissas, claudileides e, imagino, outros eus. “Assim a gente emagrece mesmo”, Larissa humornegrou. Aquela era uma clínica de nutrição. Todos queríamos emagrecer. Dona Ester fingiu dormir no sofá branco, Larissa tomou-lhe o terço emprestado. Claudileide disse a Túlio que ele tinha músculos bonitos. Instiguei: “precisa ver se são fortes!?”. Fui bem. O brutamonte derrubou a porta, suas travas eletrônicas e seus fios de segurança. “Noooossssa!”, admirou-se Clau. Da rua, eu liguei para os bombeiros. Túlio e Claudileide se casaram seis meses depois. Larissa converteu-se, vai direitinho à missa, todo o domingo, com Dona Ester. Fiquei mais magro, pra contar a história.

terça-feira, 21 de dezembro de 2010

De resto


De resto, havia escondido os chocolates tão bem que seria impossível ao irmão descobri-los, mesmo com seu faro insuspeito de cão perdigueiro. Uma vivaz, tácita e sempre crescente relação de desconfiança já estava consolidada entre os dois, com aparentemente inconcebíveis jogos de manipulação praticada em ambos os lados. Ele passava as horas lendo ou dormitando, planejando viagens espaciais ou colhendo goiabas no pé. Ela angustiava-se, queria o desafio, quase como um pedido para não ser ignorada. Pela vida, ela nunca habitou estrangeiras paisagens. Ele, morou no mar, depois de deixar por uns tempos o sertão distante. E não havia moral que desse jeito na história. Para sempre, na existência comum, haveria um bombom de chocolate oculto em algum lugar desconhecido. Tão recôndito, que esquecido.

segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

Pelo agrado

Pelo agrado ao lado sabe-se bem que Beatriz está com coisa. Revoltadíssima e sempre enguiço certo, a moça não é de boas palavras com ninguém. Fala como um solo de harpa, cheia de notinhas, hostilidadezinhas, pequenos venenos in vitro. Agora essa? Beatriz é ilhota inflamável, com vulcão pronto a entrar em erupção quando alguém tenta atracar em sua prosa. Vê-la, assim, toda Bora Bora, despejando maravilhas e charmes, dá desconfiança na gente! Esses braços, feito afluentes, serpenteando as pernas e os joelhos de Joel; essa carência insubsistente nos olhos; esses novíssimos modos de Nossa Senhora, carregando o menino e pisando na cobra; não, não, isso é o avesso de Beatriz. Ela é fura bolo ou mata piolho, nunca mindinho ou seu vizinho. A gente se engana até com a boca do Rex, acha que ela vai lamber e ela morde, mas com Beatriz?

domingo, 19 de dezembro de 2010

A microfonia

A microfonia infernizava Simão, que com as duas mãozinhas tapava os olhos, na esperança ingênua de fingir não existir. Era novo para um show de rock, extrato dos delírios dos pais no desejo de iniciá-lo pelo caminho certo da “música cabeça”. Era um sozinho junto aos tantos pululantes intactos, todos para ele adultos, que gritavam coisas desconexas, mas que pareciam fazer-lhes algum sentido. Era mil pedacinhos de informações imprecisas: beijos dos outros, bundas balançando, olhos vidrados e uns movimentos inabituais. Passam mal, pensou Simão aflito. Era o passeio que os pais prometeram o mês inteiro, a semana toda, as horas contadas que faltavam para começar aquilo. Puxou o pai pela calça, a mãe pela bata, mas não existia para aqueles dois. Aflito como o homem no palco que esgoelava umas coisas, Simão lacrimejou gritado e sentido, mas ninguém ali percebeu que seu bocão era uma metonímia do choro.

sábado, 18 de dezembro de 2010

Solicitude

Solicitude, nem pensar. Jandira é tosca! Toma, é o que diz, ao invés de aqui está ou aceita assim. Gentileza de rinoceronte é a que tem. No fundo é uma exagerada, dada ao esbanjamento. Serve a cachaça até a boca do copo americano e derrama nas bordas. Bêbados, todos os seus clientes, que por si já odeiam sovinaria, amam-na! Jandira tem uma liberalidade que beira a bizarria. Uma largueza a um passo da bondade. O bom é que é imperturbável. Lidar com bêbado não é fácil, naquele boteco da vila, então, só Jandira. À beira da insolvência, há anos, tem a fieza estável dos fornecedores da pinga. Lá pelas tantas, paga a todos. Repassa a confiança aos delirados tremens, que manguaçam, pifam-se e pedem outras. Jandira os serve: rude, grossa. Mas que coração!

sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

Não era dor

Não era dor, era pressão. Os incomodados que se cuidem, lhe aconselhou o médico, a quem Torquato foi reclamar daquilo no peito. A indiferença celebrava aniversário e o digno pedreiro viu-se em flagrante comemoração da dada: “faz um ano, doutor!”. Sua moléstia já havia sido chamada de doença, evoluíra à enfermidade, virou mal e chegou a síndrome, mas poucos deixavam de fazer mexericos ao padecimento de Torquato. “Dessa vez, capricha no quadro”, gozava a vizinha Afonsina, sempre que ele se dirigia às pressas ao postinho de saúde da prefeitura. Foi um reles raio xis que apontou a agulha firmada às margens do pulmão. A médica recém formada alarmou-se, solicitando a imediata transferência do paciente para um hospital com reais recursos. No caminho, porém, com o resultado do exame à mão, Torquato pediu ao motorista da ambulância que parasse na Gazeta Urgente: “tenho um compromisso com a opinião pública, antes que minha pressão chegue ao fim”.

quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

Desfazia a fala

Desfazia a fala de pouco, porque algo o desagradava nas palavras. Então empilhava frases, como se as ideias que precisasse expressar fossem produtos de uma loja parafusos, em caixinhas, umas sobre as outras, mas o que faltava mesmo era algum conteúdo: no caso, um ou outro parafuso, fosse uma metáfora torpe. E com Juliano, dessa forma, não se combinava nada, sob pena do trato sucumbir ao seu humor. Olhávamos com tristeza aquele moço atento, de olhar compenetrado, atenção plena e uma disposição sem pares para concordar com todas as nossas ideias. Tratante de uma figa.

quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

Sucumbiu à diferença

Sucumbiu à diferença sutil que tinha com a tia. Galdino espirrava torto, mas muito. A tia, espirrava reta, igualmente em farta seqüência: alergia hereditária, quem sabe? Mas os tios não a tinham, nem outros sobrinhos próximos. Só Galdino repetia a saga recebida sabe-se lá por qual dos peitos nos quais mamou bebê. Pegou! Pelo leite pra dentro ou fome involuntária. Enrugava a testa e sugava, sem imaginar, como bebês nunca imaginam, a futura causa mortis que engolia voluptuoso. Perdeu o prumo do espirro criança ainda. Cabeçada da porta que lhe deslocou tronco e pescoço. Troncho e a... a... a...atchim, continuou onomatopar em língua materna, mas herdada, como você já sabe, da tia. O que poucos contaram foi o vazio que essa tia sentiu com a morte subida de Galdino: chave de ouro dos sucessivos espirros, naquela hora fatídica. Como por milagre ou uma dessas explicações freudianas, a velha nunca mais irrompeu, nariz afora, uma sílaba que fosse da palavra atchim.

terça-feira, 14 de dezembro de 2010

Tomou a oferta

Tomou a oferta como um aceno do destino. O carrancudo doutor Gregório nunca foi dado a remediar decisões. Quando logrou oferecer-lhe uma filial “estupenda” no Acre, ao invés da demissão sumária, no íntimo, conferia a Humberto uma saída do beco em que se metera ao gracejar com Graziela, filha do chefe. Humberto rumou ao Norte, sem deixar jamais de maquinar o romance pelos skypes ou emesseenes da vida. Mostrou à moça as maravilhas de Tarauacá, a pujança de Feijó, a vanguarda de Xapuri, chamando tudo aquilo de “estupendo”, sem dúvida, em vingança surda ao pretenso sogro estrategista. Foi seu segundo azar. Criada a googles e macburgueres, a moça logo pesquisou toda a “estupendês” dos lugares mágicos que o enamorado funcionário lhe apresentava. Definitivamente, nunca mais clicou aos chamados virtuais de Humberto. “Vá ser otário assim no Acre”, desdenhou urbanóide.

segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

Uma perversão

Uma perversão circense fazia da casa picadeiro de contrariedades. Tal malabarista carente de coordenação motora, a avó cismava entoar fados sempre que não queria ouvir os latidos do cachorro. O avô sorria o riso dos mágicos, de cuja cartola saltava rezas ou piadas nem sempre eficazes ou engraçadas. Da mãe, trapezista de forno e fogão, surgiam os saltos mortais de galetos e pescados, sempre prontos ao aplauso, mas ansiosos com as possíveis quedas. Com filipetas e megafones, o pai anunciava a chegada da companhia aos distintos logradouros da alma. O cão adestrado à desobediência, os pássaros falantes, o pedaço do osso de dinossauro sobre a mesinha da sala, os discos 78 rpm, a lona que cobria a varanda, eram atrações extras. Hoje tem marmelada? Todos se perguntavam a todos os instantes, como se em dado momento do espetáculo tivessem que se travestir de palhaços.

domingo, 12 de dezembro de 2010

Cheio de chefleras

Cheio de chefleras e antúrios o vaso disse: “Obrigado, não fumo!”. No portão do condomínio, o carrinho de compras explicou e pediu imperativo: “Não sei voltar sozinho, leve-me à garagem, que é o meu lugar”. O banheiro imundo do bar da moda foi logo implorando: “Por favor, não me suje além do necessário”. A escada de acesso ao mezanino, sugeriu sedutora: “Ao subir-me, apóie-se em meu corrimão”. Um mictório do banheiro masculino mostrou-se engraçadinho: “não comece sem mirar bem no meu meinho”. E o mictório do lado desafiou chulo: “vamos ver se você é bom no meu buraco”. Cansado de ouvir o tom egocêntrico dos monólogos urbanos em primeira pessoa, foi até minha velha picape preta, que sempre me conduziu ao bucolismo das matas, onde tabuletas, plaquinhas e avisos absolutamente inexistem. Mas até tu, picape íntima, aderiu aos desaforos da vida: “Lave-me”, ordenou, para minha humilhação final.

sábado, 11 de dezembro de 2010

Se mesmo

Se mesmo assim você quiser, eu topo! Se não der certo, fazer o quê? Sempre fica uma pontinha de esperança, de felicidade... é, às vezes, uma esperança inteira. Pelo menos não se poderá dizer que foi porque eu não aceitei. Já disse, concordo, meio com o pé atrás, meio desejoso, sei lá, um pé à frente também. Tenho curiosidade, oras bolas. Quem não tem? Sempre dá insegurança da primeira vez. Lembra coisas boas, mas as ruins também: assim, como doar sangue, fazer exame de próstata, tomar xarope, essas coisas... Há um tempinho eu já observo. Meço de cima embaixo, fito, sondo, quando dá pondero. Essa roda gigante é enorme, Carminha, olha lá a altura dela!? Mas vamos, do ponto máximo deve ser linda da cidade...

sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

Valise amarela

Valise amarela, blusa florida e bermudas brancas, ainda que o cabelo não fosse loiro, o batom carregado, os óculos implicantemente escuros e saltos altíssimos, chamariam a atenção. Estela era ela, extravagante feito um hip-hop em velório. Alternando a composição, mas sem perder o ímpeto pelo impacto, passada todos os dias pela calçada repleta do bar, exatamente no horário em que os caras tinham sede. Se às seis e meia da tarde, ouvia “gostosa”. Se às oito, outras coisas, palavras bem mais baixas, de cérebros explicitamente mais tomados pelos altos elogios à luxúria. Meses de tentação e moda. De escusas a abordagens vãs. De riso seco ou rosto virado. E naquela sexta, Estela não passou. Tampouco no sábado, nem no domingo, segunda, terça... Joaquim, dono do bar, tenta desesperadamente vendê-lo. O movimento já não compensa o investimento.

quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

Tachinhas pregavam

Tachinhas pregavam as fotos no mural do quarto. Outras, displicentes, exigiam atenção na caixa, junto aos clipes, para não furarem dedos distraídos. Havia aquelas que, na porta da cozinha, uma ao lado da outra, compunham horizontais ou verticais traços irregulares que escreviam o nome de Márcia. Com as pontas dobradas, um grupo delas servia de adorno à jaqueta jeans, enquanto o outro desenhava uma flor mal feita no bico do tênis, já um tanto desleixado pelo uso contínuo. Nos cintos, nas tiaras ou pulseiras, eram elas que imprimiam uma personalidade despojada à dona. Só não foram parar na ponta do nariz, como piercing, porque o tatuador foi mais sensato que Márcia. Mas foram justamente elas, as tachinhas, que acabaram por impedir o triste e emo romance da moça por Durval. Ambos compartilhavam o som hardcore emocional, mas o sujeito tinha fixação por imã.

quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

Sou feliz

Sou feliz, porque o destino quis – disse Obdias, e achou máximo seu epigrama, bem colocado e tudo. Teresa ora tinha paciência; teve um princípio de amor, até, que já não a deixava incólume à calamidade, agora transformada em noivo. O porte de pigmeu, humor de gnomo e obviedade de anta do rapaz, constituíam-se em fardos de performances, que a moça passou a carregar com o tédio dos jacarés ao sol. Do outro lado a tradição da vila, rocha inflexível nas normas de conduta: noivou, casou. Somente um abuso maior ou uma deslealdade explícita seriam capazes de eximi-la do compromisso. Mas Obdias era óbvio nas coisas. Certinho como uma garrafinha de coca-cola. Não havia isso que o desabonasse. Quase em pânico, Teresa mentiu. Acusou o coitado de tentar “abusar” de sua confiança. O casto e branco Obdias corou! Jurou que não. Mas o pendor tendencioso da plebe sentenciou-lhe sem piedade: “abusou, tem que casar!”.

terça-feira, 7 de dezembro de 2010

Nem com lastro

Nem com lastro de simpatia haveria vitória, sem ele, foi derrota anunciada. Três revelações de atenção anteciparam a Randy o risco idiota da paixão por Carolaine: o sorvete, a música e o beijo. Ela bem disse que não gostava do sabor abacaxi, odiava jazz e tocou no rosto de Randy com os lábios, em simulação de agradecimento, com a displicência das moscas num amontoado de cebolas fatiadas. Um balé de contrastes, que até o mais tolo pretendente voltaria à vaca fria a pelejar esperanças. Randy, com o impropério dos sonsos, ou falha que valha, ainda lhe ofereceu um jantar à luz de velas, carro à disposição e um punhado de elogios, pela franqueza da alma. Carolaine comeu e lambeu os beiços, depois sumiu com o motorista, sem agradecer-lhe às deferências. Antes de sair só disse baixinho, quase sussurrando, que tinha outros planos.

segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

Zoava feito

Zoava feito vento errado de raspão nas frestas. Meio de preguiça, meio filme de terror. Nem a ganância da grana, nem a gula por Ivete tiraram Hélio do sofá listrado. Que fosse um sonho, pensava relaxado, sabendo que se esqueceria dele ao acordar. Coçava o nariz, como se a obrigação de levantar cheirasse mal. Sem trabalho não haveria Ivete, porque não haveria grana para haver Ivete: cara e coroa. Nunca saíra dos 45 anos e gostava de pérolas. Hélio, não, gostava apenas de Ivete, apesar 23 incompletos. Dizia 25. Anjo, meio Fra Fillipo, meio Aleijadinho, sempre com expressão pernóstica, sempre amável feito um sequilho de natas. Os silvos já não lhe incomodavam, meio surdo, meio sonolento. Ivete talvez ricocheteasse junto com as frestas sibilantes, fazer o quê? Naquele marasmo nada era inestimável.

domingo, 5 de dezembro de 2010

Desbloqueio

Desbloqueio da cachola meus projetos primordiais. Um tanto mato, outro mar. Alto de uma montanha, eremita raitéqui. Ou na ilha, plugado apenas nos interesses do ego. Outros seriam wireless, uai, rindo dos reles. Todos no ar, mas sem vê-los. Um mundo tocado a e-mail, sem essas coisas que ême, sem esse, sem êne. Deu saudade?: mail. Não deu: ego. De repente nem precisaria do mato, nem do mar, mas o entorno sempre supre solidões eventuais. E meus projetos prevêem, mas não admitem solidões eventuais. Espantozinhos só às vezes, com coisas sonoras: um besouro que pousa na mesa, um vírus que apita no computador, lata que cai lá fora, curto circuito que estala nos fios próximos, cruz credo. E se a falta de hostilidade der tédio, caço aranhas, baratas ou outros bichos... gente peçonhenta, nunca mais. Sim, poderia ter um cachorro: dócil e bonachão, só pra ouvi-lo contar da vida.

sábado, 4 de dezembro de 2010

Tamborilou os dedos


Tamborilou os dedos, perseguidor do tempo. Leu que a lembrança é mais rápida do que a fala. Para contar que foi criança, subiu na goiabeira, atirou pedras no cachorro apenas com o intuito de espantá-lo e não de acertá-lo, passou sobre a ponte do riacho e comeu amoras no pé, demorava muito mais tempo do que apenas para pensar em tudo isso. Então concluiu que a narrativa é uma farsa, lenta e pouco eficaz, porque não traduz os detalhes da lembrança: suas cores, detalhes e cheiros. Demora a ser contada... Depois da descoberta, Kalige calou-se, virou poeta, repleto de sensações inexplicáveis. Sempre fechava intencionalmente os olhos, fazendo de conta de estava contando histórias a si próprio. E elas eram enormes, detalhadas, sensíveis ou horríveis, mas se passavam tão rápidas, que logo viravam outras...

sexta-feira, 3 de dezembro de 2010

Sempre conhecia

Sempre conhecia alguém de algum lugar, em qualquer lugar onde estivesse. Mas mantinha-se perdido; gps sem pilha. O sisteminha nervoso de Corolálio obstava ideias pertinentes, e ele se fazia conhecido justamente pelo avesso como atravessava os fatos. Macaquices beatificadas a golpes de calcanhar, escoiceando adversidades. Ou longas visões a esmo, disfarçando peripécias com intervalos de ilusão. Não que fosse sonso. Chegava a benquisto pelo non sense explícito: real como o currupaco do papagaio que parecia às vezes ter escondido na garganta. E sempre alguém dizia já tê-lo visto antes, e que ele era assim mesmo.

quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

Mancando por todos

Mancando por todos os lados, abalizava as pechas e miudezas dos aleijões banalizados. Expunha-se porque sim, aos gritos e xingamentos dos moleques ávidos por farras e forras. Narcísio jogava-lhes pedras, que guardava nos tortos bolsos da calça disforme. Assim pagou patos e pecados, especialmente o estrito, que lhe motivara a desordem física. Aquele iniciado quando, apenas corcunda, faltou com respeito às filhas de Dona Belinha, e recebeu como castigo os fragmentos animalescos de cada um dos sete tios das moças. Desapareceu por uns anos, mas voltou outro, torto. Exposto como bolo em festa. Até tentou solícitos contatos na vila. Bons dias, boas tardes, noites. Mas lá não havia nada para se festejar.

quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

Fio até

Fio até que viu, mas da meada, nunca soube nada. Sem chances de se vingar dos sofrimentos. Sofia saía cedo para o emprego, e quando não voltou mais Umbelino só reparou no dia seguinte. Chegara tarde da noite e se estirara no sofá, com medo de ouvir na cama as repreensões que mal suportava na cozinha. Então reparou, no depois de amanhã de suas conjecturas, o rastilho de cólera que ela deixara na pia, feito uma instalação artística: o prato de comida fria, gratinada com visíveis cacos de vidro dos copos verdes quebrados. Isso é de matar, pensou, como se já tivesse visto “de tudo” nesse mundo. Sofia fora mais longe e não havia gás, por sorte. Umbelino bebera naquela noite mesmo o dinheiro do botijão encomendado. Embora abertos, os botões do fogão não expeliram a condenação à morte do próximo habitante, no caso, ele, Umbelino. Riu como hiena ferida e confuso bateu a porta. Caso a encontrasse até pediria perdão. Nunca mais a viu, porém. E, ela, virou uma noite: demasiadamente nítida.