segunda-feira, 30 de abril de 2012

O mais importante

O mais importante é se lembrar. A cada imagem se abre uma imagem nova, e ficará difícil chegar ao deslumbramento se você não pensar na primeira imagem. Este é mais um de nossos muitos paradoxos, disse Gutinho Curry, renomado auto ajudante dos desavisados daquela vila. Ante a perplexidade da plateia, propôs que o mundo deve ultrapassar as barreiras limitativas de nossas fronteiras individuais, colocou a mão no queixo – assim, simulando a estátua de Rodin, e quase sussurrou ao microfone, deixando que todos ouvissem: “somos interessantes!”. O auditório, como em uma coreografia ensaiada, contrapesou que “sim” com a cabeça rumo ao queixo. E os aplausos foram inesquecíveis.

domingo, 29 de abril de 2012

Não desandava

Não desandava o coração. A cara, quem via, era a de Luiz feliz. Ali, as duas, rosnando e se mirando com garras a postos, insistiam na indenização. Bateram-se aos murros, pescoções e tufos de cabelos. Uma haveria de pagar a despesa do curativo da outra. O juiz apreciava, incomodado. O mal de Luiz foi querer bem às duas. Mão aberta: havia lhes concedido amor, eterno na mesma proporção. Mas aquela paixão lunática de Dirce não soube conviver em paz com a adoração idólatra de Dora. Ele, justiça seja feita, sempre disse sim. Quem diz que não, mente, quem diz que não sabe, inventa. Luiz sempre foi ordeiro: que a lei prevaleça. Querer bem, tudo bem, mas dinheiro para as feridas de ambas ele decididamente não tinha. Deixou isso claro para o juiz, cuja sentença poderia ficar por conta disso.

sábado, 28 de abril de 2012

Teclava

Teclava, pausava e notava que a próxima nota, mesmo de aparência solta, de fato, faltava. Rapsódia em si próprio, parecia, como se um sustenido insano lhe escapasse da alma. Thelonious Monk conversava com meu encanto, à distância etérea de um silêncio. Por vezes duvidei de minha lucidez, mas passei a crer no sublime com a fé dos loucos. Depois da nostalgia entra a bonança no velho toca discos. E aqui, Thelonious projeta meus próximos passos sem claves de sol. Tão incertos como uma jam session improvável com o pulsar de minha tosse ou do coração. Bom é que nunca admito a falta de acordes para acompanhá-lo. E sigo improvisando...

sexta-feira, 27 de abril de 2012

Coberto por um

Coberto por um céu carregado, Ludovico coexistia com as pedras. Naquele topo submergia em labirínticas dúvidas sobre a vida na solidão. Era um despreparado para os óbvios da existência, embora não passasse fome, nem sede de água ou desafio. Tinha o íntimo intuito de colocar a eternidade em banho-maria, comer a afobação cozida em fogo brando e meditar propósitos inatingíveis. Ordenhar pássaros lhe era tão comum quanto a sustância do ar ou o leite das pedras. Chorou, sim, quando perdeu o parto da hiena risonha na rala sombra da farinha seca. Nos demais momentos se permitia a felicidade. Espécie de assepsia que lhe lavava a alma.

quinta-feira, 26 de abril de 2012

- Não vendo

- Não vendo pão francês, vendo o pão de sal. Mas aquele era um pão francês, exceto na voz do português padeiro. Vai ver Josefina de Beauharnais traía Napoleão com todos, exceto com Dom João VI. Pode ser que a fuga da família real para o Brasil obrigou aos bisavôs do padeiro se mudarem para cá. Memória nefasta ou ódio hereditário. Tinha lá suas turras, opinião pertinaz e teimosia casta. Certo é que naquela padaria ninguém nunca comeu croissant, degustou foie gras ou experimentou um naco de camembert. Quem um dia entregou o primo foi o galego Basílio. Contou que o trauma do parente tinha, sim, origem histórica. Madame Albertine jamais quis se deitar com Joaquim Manuel.

quarta-feira, 25 de abril de 2012

Sonhava-se

Sonhava-se justo, sendo fanfarrão. Entre ovelhas, uivava, lobo insistente em direitos obscuros e sem nenhum dever capaz de oferecer contrapartida ao rebanho. Bebia aos calotes, se julgando boa companhia em compensação. Arbitrava miudezas, simulando certezas ocultas em suas grandezas. Das opiniões abalizadoras fazia regalos e meios de vida. Até que o menino, filho falho da vizinha honesta, lhe atirou a primeira pedra. Tratou-o do jeito que todos, omissos, o destravam por medo: mal, sem hora marcada. A surpresa fez daquela neve uma bola. E o sujeito pedante mudou de bairro, desmistificado, mas com o nariz em pé!

terça-feira, 24 de abril de 2012

Giz de cera

Giz de cera e nenhuma moderação. No vacilo da mãe, Dafine pintou os cabelos, aos cinco anos. Laranja, lilás e branco. Quando completou os dez tratou de pedir ao primo Plínio que lhe acariciasse, como na novela. Parecia sábia, aos quinze. Emburrada e ensimesmada feito uma pensadora de Rodin. Aos poucos, aos dezoito, foi perdendo as aparências. Ganhou desleixos, um carro e antipatias. Só no terceiro ano da faculdade se descobriu paradoxalmente tímida e histérica. Nem era muito tarde para ser feliz... Passava horas se modificando, depois que trocou a terapia pelo photoshop.

segunda-feira, 23 de abril de 2012

À míngua

À míngua ficou Domingas depois que Délio lhe deu adeus. Misere como quis, à cata de gatos e chamarizes para si. Claro que não decolou. Nem bem manicure, nem modelo ou atriz, como se supunha. Mal dava para a omelete e “bem que te avisei”, disse a amiga. A sorte até mudaria se o mocinho da padaria negasse tudo diante de um inconformado Délio, mas ele foi firme. Homem, que lhe caracterizava Domingas nas discussões com o marido. Como uma sonoplasta de mágoas, Domingas, já meia pataca, deixou-se ao pé do obelisco, fálico tal os seus riscos, a mendigar apoio desse ou daquele passante. “Tudo bem, mas também ela não merecia esse fim”, finalizou Dulce, outra amiga, que enfim ficou com Délio.

domingo, 22 de abril de 2012

Há de vir

Há de vir. Constâncio sempre chega e traz as respostas. Eu poderia supor a razão de Olga ter faltado. Foi uma gripe violenta, uma reunião na fábrica, chá com as amigas, o trânsito... Vai ver não deu. Ela me falou coisas maravilhosas naquela festa, deu detalhes, deu dois beijinhos e esperança. Mas Constâncio irá descrever com precisão aquela situação. Não sei, parece que ele tem uma percepção melhor do que a minha. Pra ser sincero mesmo, meio que me encantei com Olga. Sabe? Aquela coisa? Tudo vai ficar bem, claro olha ele aí!
- Pô, Constâncio, você está bêbado? Como assim? Não se lembra de nada?

sábado, 21 de abril de 2012

Cheguei na caravela

Cheguei na caravela das seis. Não tinha nome de santa, nem de cadelinhas poodle, assim, Maria, Pinta ou Nina. Terminava em ship, o apelida da gringa na qual eu vim. Cinco estrelas, boiando naquele aquático firmamento. Luxo sobre as águas. Um tanto lasciva e sem anáguas, mesmo conduzida pelo capitão de tapa-olho esquerdo, moralista até a ponta do palito de dentes. Longo senti aquele perfume de veneno de aranha. Ouvi a música das articulações de seus ossos e naveguei sem temor. Outros avôs e bisavôs se encalacraram em transportes semelhantes, mas sem nenhum aditivo para o cérebro: só tensão. Chegaram não era nem uma hora.

sexta-feira, 20 de abril de 2012

Era uma noite

Era uma noite de alarmes. Provendo calmantes para o sono, prevendo tédios, o síndico atrás da orelha levava a pulga. Benzia-se, bipbipava pretensos donos dos carros uivantes. Com sirenes, sem sirenes, luzes, que espocavam na escuridão. A torpeza do efeito das drogas ansiolíticas, o cumprimento da profecia tediosa, o hiato para resoluções possíveis, o deixavam mais tenso. Um disfuncional anacrônico, um sem saber. Bem que pensou na precisão de uma bazuca, capaz de num estouro promover o silêncio: eliminando um a um os automóveis pulsantes. Mas os abismos, os vivos lobos que imaginou ouvir, antes da profundeza dos sonhos, foram enfim a medida certa. Acordou marcado pelo Sol, e já não havia nenhum ruído indesejável.

quinta-feira, 19 de abril de 2012

Desde o começo

Desde o começo até o pé, o embaraço de Grace não retribuía às amabilidades muitas que ambos, Plínio e Heitor, lhe dedicavam. De um, o sabia interesseiro. Do seguinte, patético. Nem uma fezinha ela fazia. Paródica, destilava os dois em suas águas de emboscadas. Contava com a saciedade de um e o afogamento do outro, sem abrir mão dos braços dados. Com afazeres desfeitos pelo narcisismo, Grace simulava atividades imprescindíveis e gestos afetados. Resignados, porém exaustos, Heitor e Plínio se cansaram dela. Agora, adulam Hélia.

quarta-feira, 18 de abril de 2012

Começava a ser

Começava a ser amigo de repente. O talento de Décio mal esperava o lá, de um olá; o i de oi; ou o aí, de um: e aí? Era a expressão da absorção precoce, que da sílaba a um longo diálogo de intimidades passava à velocidade de um vendaval, varrendo apresentações e formalidades. A salomônica memória para guardar nomes acrescia popularidade incondicional a Décio. Não havia no bairro viva alma que o desconhecesse. A vida, assim, o descuidava dos silêncios, excluía-lhe as meditações e o conduzia à certa escassez do bom senso, pelo próprio hiato às introspecções. Tanto que o policial não teve trabalho para descobrir quem dera marretada na estátua da matriz, que com gente de mãos dadas simbolizava as pessoas vivendo em harmonia: - Foi o Décio! Delataram todos.

terça-feira, 17 de abril de 2012

Ali, no canto

Ali, no canto daquela pracinha, havia um pé de ipê roxo. Não se havia ou se hoje, pensando, minha memória é que o coloca lá. Um observador relapso como eu bem pode exumar numa praça qualquer um pé de ipê. Que até poderia ser amarelo. A imaginação tem direito a impor suas condições. Deve ser cansaço de ver as coisas como sempre são: fadiga dos óbvios. Então falo invenções, porque as palavras fazem com que todas elas também sejam compartilhadas com quem nunca imaginou aquilo. Ajudo os outros, minto pra mim. Enquanto isso, todos passeiam pelos bosques de ipês, amarelos ou roxos, mas em cujas sombras da memória ainda é possível se refrescar de todos os finais iminentes.

segunda-feira, 16 de abril de 2012

Todos encararão

Todos encararão como mais uma história, passados esses doze anos. Melhor assim, porque na ocasião seria o fim. As respostas para aquela prova álgebra baixaram na folha que tinha sobre a mesa, sem que eu próprio pudesse avaliar de onde vinham. Odeio álgebra, abomino qualquer parentesco com a matemática. Quando, como por encanto, a caneta em minha mão esquerda, sou destro, começou a denotar aqueles símbolos pensei: dancei! Mas a elegância, a disposição das fórmulas, a generalização das equações, fluíam como se os xis, ipsílons ou zês deslindassem os espaços em branco tal poemas. Sem rasuras ou inseguranças, que me seriam habituais. O dez e o elogio do severo professor, então, foram para mim um milagre. E, milagres, a gente não fica contando por aí.

domingo, 15 de abril de 2012

Queria fazer

Queria fazer novelas. Dessas eletrônicas ou digitais, sei lá, de televisão. Na virada do ano, afixou um poster do galã com quem contracenaria na parede verde de seu quarto. Olhando o desejo ele acontece, forjou. Simulou um contrato assinado com a rede televisiva, exibiu batons, saltos e gestos. Criou argumentos para recusar entrevistas, disfarces para fugir dos paparazzis e até página no facebook, onde narrava suas idas e vindas, nas ilhas de caras e bocas. Tentar, mesmo, tentou uma vez. Na seleção de atores coadjuvantes para a cena da multidão, que explodiria quando o vilão da novela era um terrorista. Foi recusada. Mas na carta suicida denunciou um por um. Sim, do auxiliar de produção ao diretor. Porque ninguém escapa aos caprichos de uma artista!

sábado, 14 de abril de 2012

A testemunha

A testemunha ocular fez vistas grossas. Amélia, a doida, laboriosa mexeriqueira, disse que não viu nada. Na escala de zero a dez, Guilherme disse “dois”, sobre a sua percepção do ocorrido. Mesmo a pequena turma de cervejeiros de posto de gasolina, entretida na ávida discussão sobre o número de beijos que deu ou recebeu na balada, naturalmente de língua solta, não soube opinar. Carlão, então, nem pensar. Sempre mudo e sistemático, como um relógio de ponto. Parecia-se com uma velha anedota, mas aquela senhora, com elegante simplicidade e livretos sobre os braços, só perguntava a todos se queriam ser testemunhas de Jeová.

sexta-feira, 13 de abril de 2012

Não traduzo

Não traduzo nem circunstâncias. Foi o que o inconveniente Gilson falou, enigmático. Depois soltou um palavrório, antes de lançar o copo de uísque vazio no chão de porcelanato, chutar os cacos, ficar fulo e se gabar por não ter que aceitar uma “festa daquela”. “Festa dessa”, disse, na verdade. Causou pânico, depois assunto. Não houve vítimas, nem concordâncias. Gilson é o próprio absurdo. Quando fugiu a nado da escola naval, ocultou a coxinha no intervalo das aulas ou discutiu com o cego que não quis testemunhar a piscada que recebera de Carla, obviamente causou estranheza. Tudo aquilo, porém, ocorreu em outras circunstâncias.

quinta-feira, 12 de abril de 2012

Minhas danças

Minhas danças... se sei quais são? Bem, debocha, oxalá, se compõem de deslizes. Um pé que às vezes, no vai da valsa, samba ou trota. Apalpa o chão fora do tom e pausa, bem no tempo do movimento. Pilhéria, você sabe. Um fino e estático passo dos pés de ouvidos desafinados. Batendo na mesma estética, em afluência tosca à de um molusco surdo. Pô, Izadora, não é de hoje que meus movimentos corporais não têm amanhã. Nas ocas ocasiões que tentam o ritmo lembram bonecos de vento das borracharias. No ápice oscila, assim, meio steviewonderiando tocando, pra lá, pra cá. Ceguinho sem idas e vindas, só de ladinho. Não manda como se anda fazendo, aí pelas pistas de boates. Agora, pergunte se sei jogar xadrez, pergunte...

quarta-feira, 11 de abril de 2012

Aplicou o conto

Aplicou o conto sem buscar carta ou coelho na manga do colete. Tenaz traiçoeiro, Pêbo disse de cachola que se casaria com Rosa, mas passava suas ausências gesticulando em frente ao restante do espelho que estilhaçara, quando caiu em si. Escoltou-se nas desculpas, das falsas dores ou trabalhos imprescindíveis, para extrair apenas o mínimo essencial do convívio com Rosa: a posse da fazenda. O pai da moça, alazão bufante, bem que tentou demarcar fronteiras ao amor da filha, mas a potranca ingênua e tola se deixou acometer. Nada importava mais a não ser aquele. E o fugaz amante serenou seu senso, quando assinou a comunhão de bens.

terça-feira, 10 de abril de 2012

Vejamos e, talvez

Vejamos e, talvez, veremos. Aquela imagem, ali no tronco do ipê amarelo, não é de nenhuma virgem, santa ou deusa. São nós que se confundem numa simetria à mercê das imaginações. Só acéfalos, sofrendo vertigens, conseguem enxergar as chaves dos milagres que a consciência do tronco sequer tentou algum dia usar ou ousar. Passemos e observemos. De perto, cura a cegueira. Serve de ponte para outras ideias ou decifrações do que se quiser ver. A sumidade some. Nem se trata de aplaudir os lapsos desses olhares turvos, nem pensamos nisso. No vão das curvas sempre vemos desejos invisíveis. Vejamos nas estradas, por exemplo, sempre há placas de proibido ultrapassar. Agora, quem opta pelo patético, sempre paga o pato...

segunda-feira, 9 de abril de 2012

Seria capacho


Seria capacho se corresse. As coisas por lá viviam atoladas, mas não eram diferentes do lado de cá da linha. Resolveu enfrentá-los, apesar de vesgo, do bafo e da pouca musculatura. Primeiro, apanhou umas pedras, quimeras da realidade. Mas, elástico, acertou pernas, baços e cabeças. Levantou poeira, soltou tapas e pulos davinianos, até se bastar pelo desprestígio. A inversão verdadeira, sem escrúpulos, partiu dos atacados que o desacataram. E a rixa foi implacável. Ele, pequeno e fraco, tombou uma, duas, três vezes até saber que não se acerta o destino com pedras ou afoiteza. Um rastro de lesma desenhou seu fim, no chão de paralelepípedo.

domingo, 8 de abril de 2012

Foi assim que pagou

Foi assim que pagou o pato. Interessava-lhe reger chuvas, dirigir formigas, orquestrar beija-flores. Nada de carne ou cobre havia que lhe pudesse despertar desejos ou invejas. Simples, como um paradoxo às mensagens da mídia insistente. Persistente, como um corcunda jogando basquete. Na ocasião, ainda presumiu que pela inércia, evitando discussões ou premissas, pudesse se isentar da ávida disputa do vizinho por mais um pedaço de terra; do político, por votos, do ganancioso, por dinheiro. Estando além, se supôs aquém das miserabilidades. Suscitou a celeuma por se tornar modelo de bom homem e de repetir consigo, e com os seus, palavras graves de sabedoria. Nem lambuja, nem indulgência conseguiu extrair daquele povo...

sábado, 7 de abril de 2012

Inquilino de todas

Inquilino de todas as apostas, Clodoaldo, desde fedelho, viu-se cercado por parentes descrentes ou demasiadamente crédulos. Mal deixou os maus lençóis, então adolescente problemático, e alguns logo disseram que seria médico, dado o seu poder de curar entraves. Jeitoso, decifrador, contaminava aos cacos os pensamentos dos tios e tias. De repente, um furto, briga ou droga. Lá estava mão de Clodoaldo na velha cumbuca. Todos os sonhos dos tios tombados e ele, com a água no queixo, soltando esguichos pela boca, feito encantadores chafarizes. Tudo de bom, tudo de bem. Passava outro feito seu. Mudou-se do lugar já quase adulto, mais por curiosidade do que por necessidade, e mesmo os maledicentes contam que está ótimo. Vivendo feliz na capital, como que para sempre.

sexta-feira, 6 de abril de 2012

Palmilhando milhas

Palmilhando milhas, o louco chegou à cidade seguinte. Fora expulso pela gente boa e sã de Tordesilhas do Sul pelas inconveniências que causava às tantas. Por o osso de frango entre os dentes e dizer “ói sua plástica” à mulher do prefeito foi o ápice. A ordem surgiu de cima, do major, cuja esposa frequentara o mesmo cirurgião da beleza da primeira dama. Chegou ao novo lugar sem eira, beira ou osso. Fez de albergue o banco da praça, dançou um tango imaginário aos presentes e rumou à obstrução do trânsito da esquina, com sorrisos ausentes e corpo presente. Logo deu barulho, deu polícia, deu adeus. E praticou a longimetria quilômetros mais, até chegar ao rumo de sua próxima exclusão.

quinta-feira, 5 de abril de 2012

Ciclo infatigável

Ciclo infatigável aquele de Humberto: mordiscar pão, pela manhã; bom almoço de mãe; sesta básica; giro pelas órbitas das ruas, flanando de motocicleta; tática para que a cerveja esteja ao ponto, às 18 horas; decifração de enigmas com amigos vagais; sexo às vezes; uma música entoando à noite; disposições diversas para dúvidas amenas: dar outro passeio ou ir se deitar?; livro aberto sobre o fim do mundo ou aplicabilidades práticas de filosofias milenares chinesas; os sonhos, sem inimigos. Nasceu e vive assim. A mãe viúva tem várias casas de aluguel...

quarta-feira, 4 de abril de 2012

Era mais ou menos

Era mais ou menos da nossa idade, lembra? Filho do Ataliba Mecânico, diziam. Aquele que ficou idiota depois que bateu com a bicicleta nova de frente com a charrete do finado Túlio, pai daquelas gêmeas sardentas que tinham mania de fazer xixi encostadas uma na outra, de costas, bem no alto da escadaria da igreja. Que parecia uma cachoeira, recorda? Então, Alberto era o nome dele, queria ser padre, mas nunca aprendeu a ler... não deixaram. Ficou mais difamado que a mãe, aquela que tinha a mania de sumir e voltar sempre com um filho novo, de outras cores, meio diferentes do aloirado cabelo do Ataliba, sabe? Deu uma endireitada, o Alberto. Anda vendendo trufas de sinal em sinal. Outro dia, quando o avistei, meio de longe, logo percebi aquela mancha no canto esquerdo da testa. A gente nunca esquece a primeira pedrada, né?

terça-feira, 3 de abril de 2012

Sofria de soluços

Sofria de soluço, mas não era o motivo pelo qual sempre se metia em confusão. Seu mal era não aceitar afrontas, fosse pelos pupulos de suas palavras; fosse um desafora caseiro, uma gozação sem ganância, sobre sua natureza obesa ou a cor de sua saia. A ideia fixa dos perigos iminentes pautava sua conduta. Tinha respostas maledicentes para “bom dia”. Xingamentos escatológicos para “como vai você?”. E sinistras insinuações àqueles que lhe desejassem “boa sorte”. Até o dia em que todos passaram a emudecer ao vê-la. Nem um “oi” ou abano de mão, nem sussurros clandestinos. Completamente ignorada, sarou dos soluços, como por milagre.

segunda-feira, 2 de abril de 2012

Zombava do mundo

Zombava do mundo de tão isolado. Nem pássaros haviam resistido àquele purgatório, pois não se ouvia piados ou cantos. O Google Earth jamais o localizou, mas Acácio sim. Vivia ouvindo o silêncio que despontava de todas as suas solidões. Ainda menino, cismou que seria ermitão quando crescesse, depois que viu a capa do elepê do Led Zeppelin esquecido pelo pai, no sofá, quando partiu. Lá, pensava e subsistia. E ria, por paradoxal que pudesse parecer, de todo o mundo que falava em sustentabilidade. Bá! Chegava a exclamar a si, monossilábico. O vento forte remexia, mas não carregava nenhuma de suas convicções. Com os anos, chegou a respeitar os buracos certos de onde pudesse sair uma cobra. Fez-se amálgama daquilo que, para efeito legal, nunca existiu mesmo.

domingo, 1 de abril de 2012

Desculpe as damas

Desculpe as damas presentes, mas prefiro o xadrez. Esse básico das peças, pretinhas e branquinhas, sem uma estampa ou denominação de si, causam-me pouca consolação e nenhum a atração. Não há trajes episcopais, pompas reais ou adereços equinos, que sejam. Falo de estilo e não de jogos, que na sua essência têm como princípio a vitória. Ao vestirem-se assim, as senhoras destoam, se enclausuram em suas torres excêntricas, como se cercadas de peões. Todavia de repente, a nudez poderia salvar as vistas, mas ver o quê? Convenhamos, estão todas no outono, a um inverno do fim. E gordas! Admitamos, um regiminho lhes cairia bem...