quinta-feira, 30 de abril de 2009

Repleto do uísque

Repleto do uísque adulterado pôs na cabeça que amara Clara e, no estomago, dois comprimidos de engov e uma latinha de água tônica. Suas palavras foram contrárias as de todos na festa, e as palavras de todos contra as suas. Era o que se lembrava, além do olhar cego para o ambiente não muito visível em suas lembranças tortas.
Como se fosse deus o pré-fixador de seu dia de agonia, rezou pais-nossos, para ajudar a memória. Clara, Clara, claro que esteve lá. Mas e depois? Lentamente teria se afastado? Saltitante fora aos tchaus com dois beijinhos ou saíram juntos? Qual a extensão e forma do escândalo?
O toque agudo da campainha dói no seu insolente torpor. Abatido abre a porta. É Clara. Traz uma garrafinha de gatorade e um sal de fruta eno, ambos sabor laranja. Cítrica e sorrindo, dá-lhe um beijinho nos lábios: você não me ligou?

quarta-feira, 29 de abril de 2009

Farto de prodígios

Farto de prodígios, mais de uma vez deixou claro que não queria reza em seu velório. Sirvam cachaça amarela, salsicha no vinagre e, se não for dar trabalho, até umas sardinhas fritas, empanadas, como aquelas do boteco do Seo Antônio.
Fazia do cardápio da morte sua ração de vida. Megalomaníaco, vangloriava-se de já ter bebido mais de cem alqueires de cana e comido um cardume, frito pelo português ou aberto nas latas de gomes da costa ou “da coqueiro”.
O tempo, senhor dos estômagos, logo tratou de estragá-lo. Na emergência do postinho de saúde da vila, entre cólicas lancinantes, desmaios pungentes e zonzeira aflitiva, balbuciou à Gertrudes, sua parceira sexagenária: “na dúvida, Gegê, junte àquela lista de coisas do cemitério uma ave-maria”...

terça-feira, 28 de abril de 2009

Assombrado com o montinho

Assombrado com o montinho de cinzas que sobra de uma vida, soprou o pai no riacho. Desejo de morto não se discute. E fora das cinzas, quando falas, que surgiram os anseios de virarem iscas para os piaus e lambaris, que sempre nadaram naquele local.
Enternecido, ele sentiu as imagens de sua fantasia começaram a se perseguir, umas às outras. A água se movia em círculos. Pontos centrais que se propagam em minúsculas ondas. Muitos. Muitas. Sinal de peixe!
Já que estava ali mesmo, resolveu seguir a sina. Filho de peixe, peixinho é. Sacou a varinha fina de bambu barato, chumbada levíssima, linha delgada, anzol mínimo. E lançou à sorte entre os círculos aquáticos. Puxa, repuxa: a fisgada!
Vai à frigideira o peixinho e os seus olhos. Quer mais do pai, além do DNA.

segunda-feira, 27 de abril de 2009

Com a sorte de subúrbio

Com a sorte de subúrbio, comprou a motocicleta. Usada, mas inteirinha. Pega não pega, pegou gosto pelo vento. Brisa que lhe tocava a face, quando a moto pegava, após formosa guerra matinal. Colocou uma caixa para o capacete e Daiana na garupa. Imprimiu ritmos alterados ao velho motor: enfermiço nas subidas, prodigioso ladeira abaixo. Subia lento, descia rápido.
Daiana se atracou à barriga gorda. Bulinou partes fáceis de Edvelson. Beijou-lhe a nuca, no vão entre o capacete a gola da camisa. Empinou-se à vista dos olhares vãos, dos espectadores de calçada, mirados nos seus glúteos flácidos, sobre o fulgor do aço. Calça e cérebro funk. Queria mostrar o anjo. A divindade azul-caneta tatuada na base de sua coluna vertebral.
Edvelson, sangue quente, ardia de ódio, e desviava dos grupos de apreciadores angelicais. Acelerou mais, na descida.
Não lembro se naquela noite nos suicidamos, disse ao anjo-de-guarda que lhe pareceu nebuloso, trajando um uniforme do Corpo de Bombeiros.

domingo, 26 de abril de 2009

Meu comércio com o Sol

Meu comércio com o Sol não é de hoje. Comprei sua luz quando nasci, às dez e quarenta da manhã. Daquela hora em diante passei a poupá-la, para usá-la inclemente, dias a fio. Às vezes permutava os juros com a Lua. Minguante troca, que sempre me fortalecia o intuito a novas aplicações nos alvoreceres.
Na inocência clara havia as aplicações, pós-almoços, das horas sonolentas sob os brancos e amarelos que vinham do céu, Sol abaixo. Adolescência luzidia trazia as primeiras tonalidades cinzas, fraquinhas, quase alvas, dos crepúsculos vespertinos.
Então veio a maturidade, adulta feito o preto, tentando o embargo com as negociações solares. Mas o que é do homem a noite não come. Uma iluminação repentina subiu estômago acima, e veio dar nos olhos. Pus na mesa de barganhas as noites longas do inverno, e trago comigo esperanças luzidias, cintilantes, que recebi em troca. Hoje tenho ações ao portador da primavera!

sábado, 25 de abril de 2009

Chega, nunca mais

Chega, nunca mais, é arriscado demais. Em restaurante ninguém dá uma de herói. Devíamos ter escopetas para esse tipo de coisa. Vamos representar nossos personagens. Quando tudo isso terminar você estará rindo. Vou ao banheiro passar um pó no nariz.
Você é a primeira pessoa que conheço que matou alguém. Só soube que estava morto quando você me contou. Não me sinto mal. Foi um ato insólito. O que é um ato insólito? Um milagre, um ato de Deus.
Acho que está na hora de irmos embora. Acho que sim.
Gostou? Vou fazer teste para ser atriz romântica, mas aqui em casa só tinha o filme Pulp Fiction, então decorei alguns trechos... Que bom, pensei que fosse pessoal.

sexta-feira, 24 de abril de 2009

De tanto ser comedido

De tanto ser comedido só comeu Dida quando ela esfregou-lhe o delicado pé esquerdo no peito, e ameaçou-lhe dar-lhe com o direito na bunda, para sempre.
Prisioneiro enfeitiçado pelos encantos da moça, deu pra sentir ciúme do seu pé esquerdo. Com o cérebro mais vazio do que quarto de hospício, imaginava aqueles dedinhos com as unhas pintadas de vermelho roçando outros peitos. Como um jovem animal que interrompe sua brincadeira para se certificar de que o dono está olhando, lascou-lhe um beijo no dedão. Dida estremeceu. Aquilo era como um desses pensamentos que só aparecem quando já não os esperamos mais. Ela exalou fetiches, ele recolheu a língua. Pediu desculpa, clemência, benevolência, indulgência, algo dramático, teatral.
Dida vestiu a sandália e soltou o prometido pé direito...

quinta-feira, 23 de abril de 2009

Postas por trás

Postas por trás, as algemas continham os gestos de Edgard Phyjulles D’imartti Netto, sonegador profissional e proprietário de imóveis para aluguel.
Suar o suor alheio soaria nojento. Melhor, do alheio, extrair-lhe a riqueza do trabalho, e devolver-lhe nada, ou elogios baratos. Tal fez a família Phyjulles D’imartti, na noroeste paulista. Bisavô grileiro, avô fazendeiro, pai empreiteiro. Do primeiro uma herança de matanças. Do segundo, as diversões pelo mundo. Do terceiro, negociatas, o tempo inteiro. Se dela poderia sair alguma coisa, boa, não seria.
Entre franças e champanhes, lembranças nobres e vaidades pobres, surge o acusado: Edgard, já neto. Ao escrivão de polícia que lhe replicou a pergunta: “do quê?”, para preencher o sobrenome da família, Edgard não pode encher a boca de Phyjulles D’imartti, como faziam os seus avós, pais e tios, nos encontros sociais. Teve que soletrar: p, h, y, j, u, l, l, e, s, suando frio, nojento de raiva.
- Ô Vandílson, conduz “o autoridade” aqui pro quartinho 21. O safado foi flagrado furtando os toca-CDs dos carros no estacionamento da família. Quis culpar uns inquilinos aí. Diz que os caras são inadimplentes...

quarta-feira, 22 de abril de 2009

Displicente como raios de luz

Displicente como raios de luz entre as folhas, Bento Vargas deixou cair sementes de um dos cinco gomos da carambola no trajeto de terra lodosa, que fazia de sua casa à roça. Chupava a fruta como quem comia estrelas, moldadas ao corte do canivete suíço, comprado a prestação no bar do Mané Picolo.
Do lodo do chão veio o torrão, após as chuvas de março e a seca fria de junho. Maria Clementina dançou com Chico Silva, no baile de Santo Antônio. Desfilou de braços dados com o verdureiro Jápa, na festa de São João. Mas o ódio se acirrou em Bento durante a quadrilha de São Pedro, quando juram tê-la visto beijando Orlando, ao primeiro grito de “olha a cobra”. É mentira, teriam retificado depois. Mas, tarde.
Ensandecido pelos muitos litros de quentão, Bento Vargas sumiu a esmo, estrada afora, falando coisas que pouca gente entendeu. Mudinhas minúsculas de pés de carambola permaneceram lá, às margens do caminho, pisoteados por suas dores cambaleantes. Sobreviveram, é verdade, e contam até que deram pra produzir outras estrelas.

terça-feira, 21 de abril de 2009

Num murmúrio reverencial

Num murmúrio reverencial, fez caras e bocas, diante do espelho. Empinou incipientes seios, jogou o cabelo crespo para trás – e ele se recusou em ir, sorriu assim mesmo. Deu a volta e ligou a câmera digital emprestada, se auto-enquadrou.
- Meu nome é Bernardete Cristina da Silva, gosto de viver. Gosto de boys, de chocar e de fazer uma noite. Meu look você está vendo, é super nice, descontraído. Não curto nada out, e acho um show os livros do Dan Brown. É, ia me esquecendo, também gosto de ler. Sou super da hora. O que me liga é esse corpinho cheio, sabe, nada de anorexia. Vou mostrar pra vocês...
Desligou a câmera, vestiu rendas minúsculas. Prendeu o head fone junto ao microfone de captação e colocou um ambient lounge batido. Ligou tudo, pulou à frente. Contorcia-se feito serpente, na falsa penumbra que criou no quarto. Chegou a baixar o sutiã, mas decidiu se enquadrar melhor. Aproximou-se do foco. Sobrancelhas erguidas, lábios sensuais, sussurrou, felina: - Gostaria que vocês me apoiassem pra participar do Big Brother, porque eu tenho talento enorme aqui dentro.
De fora, pela fresta da janela, Dudu e Neguinho caíram na gargalhada: - já tâmo vendo a enormidade, Benê!

Sem entender o avesso

Sem entender o avesso, do avesso, do avesso, do avesso, dos versos de Caetano Veloso, Leonor recebeu o Diabo. Não por opção, mas por possessão do segundo.
Léo, o mais velho, chamou o padre exorcista. Jura, a mais nova, o pastor arrancador de demônios. E a arquiduvidosa sessão teria início, não fosse o lero do reverendo a Léo: - “impressionante como o Diabo ama os vícios, por isso os espíritos maus, larvas e demônios pegam gente como sua mãe”. Em nome de Jesus, o evangélico avivado morreu de rir. “Isso está do jeito que o Diabo gosta”. Cada qual, com suas fúrias desnudas, deu pra tinhar o satã alheio. Vade retrum, desmascarador de hipocrisias, olheiras papudas, beiços sensuais pendentes, deboche histérico.
Leonor serpentou o corpo. Gaguejou sílabas guturais. Rodou a bunda na calça jeans, como se vestisse saia, e gargalhou escancarada, quando pastor e padre caíram no piso de porcelanato. Vou marcar outro botóx, confessou aos filhos.

segunda-feira, 20 de abril de 2009

A velha e amarelada fotografia

A velha e amarelada fotografia rearma galhofarias. Nossa turma da escola.
Da esquerda para a direita, agachados, vê-se intrépidos juvenis com os cérebros repletos de asneiras. Julinho Geringonça, prestes a soltar um peido dissipador de diálogos, é o primeiro, de sapatos sujos. O mais gordo, Honorião, logo ao lado, morreu vagaroso, atropelado pelo trem. Perturbado, o loiro a seguir, espera apenas a liberação do fotógrafo para escalar o muro, e fugir da aula. Pouca gente soube, mas contou depois que durante a foto esfregava o ombro nos minúsculos seios de Lurdinha, que era filha-de-Maria e sabia de cor os dez mandamentos, em latim. Não me lembro dessa outra, de saia xadrez, mas ao lado dela está Giovana, a magrinha dadeira.
Os mais altos estão atrás, de pé pela pátria.
Esse uniforme azul e branco era o orgulho do diretor, e o desespero das mães. Todas as mãos direitas eram postas, matinais, do lado esquerdo do peito, para o Hino Nacional.
Carlão, Sofia, Passado, Zézito, Carioca, Gorete, Medonho, Laurinha, eu, Cida e Tuberculoso, à esquerda, depois do Padre Gonçalo, éramos do centro acadêmico. Só não sei qual fim levaram essas duas, meio apartadas à direita. A gorda, ao lado da feia.

domingo, 19 de abril de 2009

Dorotéia me deixou


Dorotéia me deixou. Bati a manga no leite. Queria conhecer os matizes da sorte, para permanecer na vida. Uma bala Mentu’s, dois copos de coca-cola diet. Explosivo, nada. As borbulhas não alcançam meus anos. Uma taça de vinho e fatias de melancia. O máximo de barato foram recordações da mocidade, e o gosto da infância, enfim, juntos. Pimenta malagueta para exacerbar a úlcera. Arroto de escárnio. Erupção de gases ruidosos em dó maior.
Cresci ouvindo que mulher que come pé de galinha vira bisbilhoteira. Que carne vermelha, na sexta-feira da paixão, é pecado do roxo. Então dei pra misturar as coisas: pipoca com arroz, sanduíche de pizza, café com soda limonada, sardinha com farinha de pão, o simples com o amoroso. Deu no que deu.
Elália misturei com Deise. Rosária com Bernadete. Horácia com Juliete. As compromissadas alianças de ouro maciço são menos um compromisso, do que uma memória. Não desacreditava das coisas até ontem. Tudo provei, depois que Dorotéia me deixou.




sábado, 18 de abril de 2009

O petardo assombrou Capitu

O petardo assombrou Capitu. Cabisbaixa e ligeira, procurou abrigo embaixo do velho sofá da sala, que dividiu com nuvens de teias de aranha e um pé de sandálias havaianas, perdido no Natal.
Era dia de Ano Novo. Noite dos estranhos estampidos que comemoravam o ar concedido a cada vida. Cadela, Capitu não sabia. Farejou estranhezas. Sobre os muros, cheiros de assados domingos voando desde os vizinhos próximos. Faros para se sentir durante o dia, não à noite, teria intuído a cachorra, carente de racionalidade.
Saiu com jovialidade em baixa, na ponta do focinho, cheirando o chão irrequieto para achar, na casa, Olegário, seu dono. Atiçou as orelhas com o som dos soluços, na varanda dos fundos. Acudiu veloz um infortúnio iminente.
Vê-la chegar de rabo em leque, latindo contínuos chamados por socorro, fez o homem desengatilhar a arma, colocá-la sobre a mesinha, e choramingar palavras redimidas: “vem cá, minha neguinha”.

sexta-feira, 17 de abril de 2009

Tinha lá pra si

Tinha lá pra si que a personalidade sexual do homem estaria intimamente ligada ao queijo que ele mais apreciasse. Não traduziu direito o livro francês O prazer pelos lacticínios, e encheu-se de malícia quando leu, para se auto-ajudar, Quem mexeu no meu queijo? Não meu, não, bradava desenvolto.
O resultado foi uma tese indefensável, segundo a qual o consumo regular do queijo minas era o grande responsável pela virilidade do macho garanhão. Já o simplesmente heterossexual teria afinidades incondicionais com o prato, o provolone ou coalho. Admitia-se, sem muita convicção à masculinidade, satisfações esporádicas com o queijo de cabra, o suíço e a ricota. Do roquefort para frente já se acendia a luz lilás. Catupiry, cheddar, cream cheese, cottage, emmenthal, mussarela e gorgonzola eram vistos com absoluta desconfiança. E não haveria nenhuma dúvida quanto à homossexualidade do indivíduo se a preferência recaísse sobre o camembert, estepe, gouda, edam, gruyère, mascarpone, pecorino ou grana.
Convidado a uma palestra sobre sua inusitada teoria, perdeu a voz quando, do fundo da platéia, ergueu-se um desconfiado e insuspeito mineiro com a incrédula pergunta: - Antes de estudar isso você gostava muito de queijo brie?


Os pormenores

Os pormenores eram variáveis. Fósforo aceso, brasa viva e fio de fumaça salvadora, que saía da ponta do cigarro. Redenção. O copo grosso, trincado no canto, já não trazia o vermelho do tomate, mas néctar incolor da cachaça barata. Aclamação. Tantos homens, que jamais foi, eram esperados para daqui a pouco, ali ao lado. Deleuza orava na Igreja Avivada do Senhor Supremo, vizinha da casa onde moravam.
Deu de lhe proibir prazeres e trocar as farpas pelo “ó Senhor”. Desfez a chapinha, limpou a maquiagem, aumentou a saia e se esqueceu do sexo. Justo ela, uma ex-profissional.
Tinha que ser rápido. Chico virou a pinga, chupou a guimba e enfeitiçou a alma. O culto estava para terminar, porque a cantoria já alardeava “vou, mas volto, meu pastor, para ter com o meu Senhor”.
Não deu tempo. Deleuza saíra minutos antes que o pastor Argemiro proferisse o “vai com Deus, irmã”. Observou atônita a fumaça amassada, que saía escondida sob os pés de Chico. Olhou nos seus olhos vermelhos-tomates, que se afastavam refletidos no copo, olhou nos olhos vivos da arara, estampada na garrafa vazia. Baixou a cabeça, e provavelmente o diabo também baixou, e a fez sacar da velha gaveta o facão de degolar galinhas.

quinta-feira, 16 de abril de 2009

Já não te vejo

Já não te vejo mais com tesão, Edicleusa. Você agora vai entrar pra lixeira de minhas lembranças. Vai ficar lá, junto com a canção, você não soube me amar. Com o jiló amargo e mal cozido. Vai ser comida pelo pac-man do atari. Vibrar com Isto é Pelé. Ouvir o Odair com pare de tomar a pílula. Tem também Farofa-fá, não se vá, eu sou rebelde. Escrever errado Emílio Garrastazu Médici e ficar pra exame em história por causa disso. Rebolar nos trejeitos do Travolta. Tuc-tuncar Lady Zu. Se lambuzar na imperecível maçã do amor vermelha-açúcar, dura feito pedra. Sentir o chulé dos sapatos cavalo-de-ferro. Rir do Chapolin. Chorar com cara de songa da Regina Duarte. Canalha, você mal conhece meu desprezo. Minha lixeira é vasta e eclética. Se ameaçar escapar isco o Fuleiro em você. Ele é mau e vira-latas. Ele também está lá, com seus pelos eriçados de raiva, o latido e um mau humor de nascença.
E nem arrisque voltar, porque se me der na telha deleto tudo, com a velha garrucha de caçar paturis...

Pouco disseram-me

Pouco disseram-me que eu não soubesse. Enfim, haveria a tal missa de sétimo dia, sem que antes houvesse um morto, e os convites já estavam distribuídos. O olfato foi enfático: tratava-se de uma cagada. Os primeiros peidos se faziam sentir na rua da igreja. Uma aglomeração de meros curiosos, acotovelando a vez de sua entrada no templo.
Mara, a canalha. Godofredo, o bisbilhoteiro. Mário, salafrário. Outros tantos apostos adjetivos cujo teor da desqualificação dispensa menção ou rima pobre. Alfredo, o bêbado, foi feliz: - Que porra é essa, se o defunto nem morreu?
Perto das seis, eis que ele aparece. Trajava um terno inglês, pulôver ocre, pulseiras e corrente de ouro desproporcional: - Gente, aí. Quero comunicar que foi um erro da gráfica. O convite era de festa, entedeu? Já que estamos aqui, comunico que faço aniversário hoje...

Perigo veneno

Perigo veneno, leu na lata, mas tirou de letra. As flores médias da blusa larga murcham e se expandem, ao sabor dos movimentos rápidos. A calça jeans gela as veias contraídas das pernas. Precisam, urgentemente, serem dissecadas, para não virarem varizes da viúva. Dez dedos dos pés apertam-se sobre as sandálias, todos coloridos, com as unhas pintadas de vermelho e o entorno rosa de cada um deles, da pressão ao chão.
O desavergonhado exala cachaça e insucesso, trôpego como em toda a chegada. Dera pra calhordear com a Ramira, vizinha e puta. Houve mercearia própria bebida com “amigos” e salsichas curtidas. O negócio virou ressaca. Agora não há esperança.
Sem sucumbir no revés, ela foi à luta. Agora voltou decidida e está na cozinha. Prepara o destino. Todos os ingredientes já foram inseridos ao prato do desgraçado.
- Amor, você bebeu de novo? Senta. Come aí esse espaguete com carne moída que eu preparei pra você...

quarta-feira, 15 de abril de 2009

Tô tomando diazepam

- Tô tomando diazepam com coca-cola, pra poder voar. Li que um cara tomava frontal com fanta e ficava invisível, então testei...
- Qual coca você usa? Normal, zero ou light?
- Depende da distância. Para vôos curtinhos, assim, de casa até aqui, costumo usar a light mesmo. A normal dá quase pra cruzar a cidade.
- E a zero?
- Praticamente não uso. A zero não dá muito certo. Testei com valium, rivotril, lexotan, frontal, rohypnol, flurazepam ou midazolam, juntos e separados. O máximo de autonomia de vôo é trinta, quarenta segundos, daqui ali na esquina, é pouco, né?
- Pouco, mas gostei da sua experiência.
- A gente não pode desprezar a ciência, né?
- Bom, preciso ir, os prozaczinhos matinais já estão me deixando com vontade de trabalhar...
- Legal. Vamos tomar uma na Farmácia Nossa Senhora das Dores, à tardinha, depois do expediente?
- Te ligo pra confirmar... Será que lá tem cerveja kaiser? É que tomo um midazolam e dois bromazepans nesse horário, mas não gosto de misturar com outra bebida...

Se morango não é inseto...


Se morango não é inseto, não sei ao certo. Sentado no planeta Sol a vista ofusca. Dá coceira no colar, sufoco no dedão e anjos em todo o lugar. Diga ao braseiro o que pensa da abelha. Trate do garfo, cure o ar. Há imensidões de carícias riacho abaixo. Molhos de emoções em jorros de febres. Sapata em fuga. Alegre, mamo o troco. Névoas de ultimatos. Quero uma úlcera e dois copos, com muitas pedras de medo. Piracema mal passada. Frouxo maço de teimosos.
- Já prenderam o rapaz?
- Prenderam, soltaram, internaram, mas ele não para de falar...
Turista do cérebro tem passagem pra galinha. Tucunaré voador não engasga por falta de óleo. Lata de sardinha perdoa os relâmpagos, é claro. Clarão no mofo do livro avulso. Sirene em movimento de cobra.
- Eu bem que te falei. O cara tem transtorno delirante persistente!!!

terça-feira, 14 de abril de 2009

Cordata até dizer chega

Cordata até dizer chega, urdiu causas e efeitos para dizer não a Dorival. Foi antes de se aproximar de Galdino e encher as duas taças, para o brinde da vitória. A vista fixa nos olhos do confidente tinha formas luminosas e vagas, arremetidas de encanto.
Não quis, sabe? Dorival é bom. Depois de me amar demais, deu pra idolatria. Minha deusa pra cá, santa doce pra lá, rainha dos dotes e ia. Foi até minha ambrosia, meu poço de tesão e outros nomes que eu tenho vergonha de contar. Muito arremedo de galã de cinema, antes de ficar metido a ator pornô, cheio de suposições e posições. Foi não dando. Não dando, não dando, não dando até que cheguei aonde cheguei. Muita transcendência para uma mulher como eu, de carne e osso.
Vi você naquele flat e pensei, no intervalo do rosário que eu rezava, esse aí será o meu mistério gozoso, meu deus de penteadeira, meu másculo fugaz. Entendeu, então, o porquê disso tudo, meu alazão de trote?

Não tinha boca pra nada

Não tinha boca pra nada. Tão e tanto miúdo, que chegava a oprimir com sua piedade. Carregaria as compras da vizinha? Sim, senhora. Ajudaria Julião a lavar a calçada. Sempre às ordens. Recolheria os galhos da árvore cortada por Seo Pereira. Pois não, senhor. No lugar de um não, de uma indisposição ou límpida preguiça, a constante presteza.
Calculou um silêncio de vergonha para ingressar no cotidiano hostil de Edicleusa, a deusa, como pensava em seus segredos. Conhecia a inconstância do humor da moça. A família de hábitos noturnos. Pedir-lhe-ia a mão, apenas, mesmo que reservadamente lhe desejasse todo o tronco e membros do corpo.
Louvada seja ela, sem ninguém por perto. Naquela insegurança, tímida de passos, caminhou à porta da divindade. Atenderam-lhe três cavalheiros, todos os três, trinta e oitos na mão. O primeiro foi seu pai. O segundo, seu irmão. O terceiro, da quadrilha, foi quem lhe cobriu a visão...

segunda-feira, 13 de abril de 2009

Dizem que não há cinismo

Dizem que não há cinismo em minha cara. E quem sou eu para contradizê-los? Conheci Paulão quando ainda amava Beth. Depois do pé na bunda, se casou com Paula. Linda, sensual e atrevida. Eu nem reparava. O mal foram as viagens de Paulão. Dias naquele carro, batendo de cidade em cidade, de botique em botique, de dona-de-botique em dona-de-botique. Paula pediu arrego, eu a acolhi. Tudo no bom, no ótimo, no excelente sentido, que fique claro. Paulão voltava, ela mudava. Paulão partia, ela aparecia.
Amigos comuns dizem que Paula anda avoada. Concordo, displicente e relapso. Conhecidos antigos acham que ela já não ama mais Paulão. Faço cara de sabe Deus. A família insinua uma traição a Paulão. Bato o pé, que não acredito. Os vizinhos olham-na enviesados. Olho firme, na cara deles. Quem não deve não teme.
Mas, na próxima semana, Paulão sai na segunda, para a região de Piracicaba. Na terça, à noite, Paula quer porque quer conhecer um forró. Vamos. Lá, apenas daremos as mãos e dançaremos. Dos males, o menor.

Cavalinho da mamãe



Cavalinho da mamãe. Criado entre vacas gordas, Dagoberto Junqueira e Silva Filho, petiz, pedia volta e meia uma volta na égua quarto-de-milha Diane de Windsor IV, de sua mãe, dona Alexandra Mary Cunha Junqueira e Silva, sangue azul entre os pés vermelhos do Haras Dallas, na Fazenda Santa Serafina, no noroeste paulista. Lá viviam, entre vôos ao Texas e compras na Saint Germain dês Pres, em Paris.
Cresceu agro. Possuidor de secretas leis para o convívio comum. Requeria ao capataz a aurora e o poente. Comprava primaveras e verões, barganhava invernos ainda no outono da adolescência. Nunca deveria ter ido àquele baile.
Seu corpo da batalha chegou estirado, no banco traseiro da 4x4, com o mini-aparelho de DVD do veículo displicentemente ligado para os passageiros então inexistentes. Na telinha de cristal líquido, gotas de sangue rubro marcavam o marrom escuro do chapéu de John Wayne, que falava manso no filme Rastros de Ódio: - Foi um coice de cavalo selvagem!

domingo, 12 de abril de 2009

A fêmea

A fêmea golden retriever, de expressão mansa, via serena a chuva. Tempos memoráveis, de passeios nas praias. O casal de basset hound dormia, sonhava e latia para o próprio sonho, sem tédio ou motivo. Lembranças, quem sabe, do sítio na serra. O cocker Carlos coçava o focinho, como fazia na praça, nos passeios ao entardecer. Inês, a pequinês, permanecia na dela. Inerte e estirada na poltrona de couro, comprada com alegria na feira de artesanato de Belo Horizonte. Trator, o labrador chocolate, olhava, ansioso, a porta de entrada, como se tivesse marcado compromisso com alguém que voltaria. Só Dutra, o são bernardo amigo de todos, insistia em ir para o quintal sob a garoa. Devia estar apertado, coitado.
André de Paula Ribeiro era conhecido no bairro pela coleção de cães de raça que possuía. Gorete e Elizete, vizinhas redondas e ociosas, nunca perdiam a oportunidade de ganir a uma eventual terceira interlocutora: “se eu tivesse namorado o André faria como as outras. Receberia o filhotinho, mas depois, meu bem, devolveria a ele. Eu, heim, cuidar de cachorro!”.

Não gostava de gatos



Não gostava de gatos, nem do Fernando, mas tratou o presente que dele recebeu com doçura insidiosa. Um ratinho branco de rabo vermelho, modelo laboratório de pesquisas; cem gramas de sardinha frescas, olhos vidrados; uma minhoca histérica, com mal de Parkinson (quem sabe ele gosta?); meio quilo de ração balanceada, sabor peixe; dois casais de pardais distraídos, presos nas asinhas com barbante de algodão; duas colheres de sopa de mel de abelhas jataí, cultivadas com flor de laranjeira; um periquito tuim verde, com bramido desolado; quatro balinhas confeti da Kibon, sabores framboesa, limão, uva e anis; gravações em formato digital de uma gata no cio; dois potes rasos de bacon em cubinhos, devidamente descongelados; uma travessa amarela com água limpa, acrescida com seis colheres de sopa de açúcar mascavo; seis ossinhos de asa de frango, lascados a bisturi; uma tigelinha de leite integral Parmalat. Repetir a dieta durante uma semana. Fechou o manual, mas deixou marcada a página voltada à alimentação dos felinos, onde se lia: “gatos são muito sensíveis a várias substâncias, então nunca dê nenhum alimento ou medicamento sem antes consultar o veterinário”.

sábado, 11 de abril de 2009

Foi mal...


Foi mal, doutor. Vendi tanta coruja aí, no mercado negro, que trago comigo uma identidade vacilante. Tenho meio que um piado. Não dou o pé, mas observo as noites, cheio de atenção. Daí, né?, dei pra adivinhar mortes. Estremeço, arrepio. É tiro e queda. Ouço os galos cantando fora de hora. Apito besta de guarda, pra se mostrar noturno como eu. Vê se pode?
Não mexo com gato preto, mas essa de que matar coruja dá azar, inventei. Inventei mesmo, doutor. Tenho dó das bichinhas. Só vendia pra gringo com cara de gente boa, sabe? Neguinho que ama os animais. Tem uma corujinha, a caburé, conhece? Pois é, três peninhas dela trazem sorte no amor, nos negócios, na guerra, em tudo. Coruja é bicho limpo, doutor. Come os bichos ruins: aranhas, ratos, essas coisas. Então tem que gostar dela, mas aquele alemão, tinha cara de gato. Já viu, né? Gato e coruja, sacou? Nada a ver. Disse pro senhor da minha identidade vacilante, não disse? Então, é tiro e queda.

Muito patético


Muito patético, Paulo tentou se explicar a Carolina. Você vê que eu não fiz de propósito, por aí foi. De estalo, um tapa. Dois ódios. Segura punhos e tentativas de arranhões com unhas. Algumas pessoas. Muitas pessoas. Dá nele, minha filha. E aí, joelho direito na área central dos testículos. Golpe baixo, fim do primeiro round.
O boy tocou a buzina. Passava e via o barraco armado. Novíssimas agressões no segundo assalto. Aperto de seio. Falta grave. O claro acaso que rege as ruas. Que é isso? Pompa sem medida, respondeu Maitê para todos, para ninguém. Os dois bélicos trajavam Giorgio Armani, algo em comum além de humanos.
O segurança indecifrável duvidou das dores. Deu de braço nos dois peitos. Aparto incorruptível. Ponto final.
Sinistra, Carol ajeitou os cabelos. Poético, Paulo justificou o encontrão: esbarrei sem ver. Passava aqui, quando ela saiu da loja cheia de pacotes. Eles caíram...