quinta-feira, 30 de junho de 2011

A tartaruga

A tartaruga tarda, Gonçalo se impacienta. Sabe da fama do bicho, mas a moça do pet shop assegurara-lhe que aquela era distinta. Chegava a correr, disse a falsa. Gonçalo é mesmo um suspiro profundo de credulidade. Empilha segredos de simpatias caseiras pensando atingir o céu. O doutor falou à mãe que ele tem um leque de ecos no cérebro delicado, denotando os tantos lapsos. Ela, é claro, achou graça daquilo, e julgou seu anjo um gênio. Apenas ordenou que tirasse o dedo do nariz, porque era feio. Ele, ovelha, fez orelhas moucas, enquanto se cutucava sem pressa. Agora queria um hamster ou um filhote de elefante cinza, como assegurou no antro de seu ceticismo peculiar. Mixo de desejos outros que fossem bichos. Gonçalo deveria se chamar Francisco, pelo desejo da mãe que o pai não concedeu. Agora, é isso. Esse santo incompreendido devido ao nome trocado.



quarta-feira, 29 de junho de 2011

Pois, então...



Pois, então... Disse pro senhor. Repeti três vezes. Era outra dessa coisa aqui. Idêntica, sem tirar nem por. Fui criado mudo, sabe? E também vim crescendo surdo, porque lá em casa criança não abria a boca e, já mais grandinho, ai se repetisse coisa que escutou. Envelheci assim. Depois fizeram que fizeram até à toa me mandaram pra cá, meio apartado. Às vezes sinto-me meio traste, como se tivessem tirado a forma de mim e deixado só eu mesmo, assim, pro consumo. Mas se tem uma certeza que tenho é a de que disse pro senhor, que repeti três vezes; a coisa era ver e ter essa outra. Mesma grossura, também um pouco gasta, com muitas passagens de sucesso. Vendi! Avisei ao senhor. Agora, o senhor querer que eu venda essa aqui... nem pensar! Se eu me dispor vou ficar sem e, cá entre nós, já não consigo mais viver sem ela.




terça-feira, 28 de junho de 2011

Depositou pérolas

Depositou pérolas achadas em fundo perdido. Respirou profundamente, como se a vida mudasse de parágrafo. Quando achou que a situação com Glória Maria estava clara diante de seus olhos notou que eram apenas as lentes transparentes de seu par de óculos sem aros. O emaranhado de réstias, pencas e pendengas de conflitos pontuais ganhou a imprecisão. Qualquer “talvez” antigo que dissesse, passou a motivar um novo pomo de discórdia. Glória já tinha nem dava trégua. Desde que subiu pela primeira vez à cobertura do doutor Exitotildo mostrou-se áspera, mas com o tempo deixou-se alisar, não muito, mas o suficiente para subtrair do velho a fala da paixão. Desigual depois, se tornou desagradável ao trato. Cedo para ela, tarde para ele. E o convívio virou uma invenção, apenas para que todos vissem. Não havia mais glória ou Glória Maria. Aos poucos se foi o êxito, e Exitotildo entregou os pontos. Melhor assim, acabou por pensar toda a gente.

segunda-feira, 27 de junho de 2011

Pedimos licença

Pedimos licença para entrar no quarto de Gumercinda. À parede frontal vemos um enorme pôster do ator Brad Pitt, sorrindo para ela. Há uns coraçõezinhos recortados de revistas, ladeando o “santuário”. A cama está desfeita, com lençóis displicentes e um travesseiro carcomido fora de sua posição original. Há um fone de ouvido sobre ele, cujo fio leva a um telefone celular cor de rosa, cheio de pequenos adesivos. Um móbile com figuras de algumas garotinhas espaciais toma quase todo o lado esquerdo, entre a cama uma espécie de penteadeira, do teto ao chão. Na tal penteadeira há uma infinidade de brinquinhos, pulseirinhas, cremes para todos os tubos e frascos variados de perfumes e desodorantes, além de um computador adesivado com seu nome em letras fluorescentes. No guarda-roupa, meio aberto, podemos ver seu vestido da festa dos quinze anos. Além dos incontáveis vestidinhos pretos que passou a usar quando fez dezoito. Mas Gumercinda não está por aqui. Desde que passou naquela faculdade particular de medicina tem freqüentado muitas festas, e às vezes nem consegue chegar em casa...

domingo, 26 de junho de 2011

Entontrou o tratamento

Encontrou o tratamento distante, quando chegou àquela roda de amigos. Cumprimentou sem troca. Sentou sem lugar, como estivesse ocupado aquele espaço. Na baixeza do tratamento, perambulou com as ideias sobre os eventuais motivos. O entrechoque de suas imaginações com elas próprias relutava em encontrar as causas. Aquilo que falou de Dorinha? A ausência no velório do Gordo? O tropeção na porcelana de dona Inácia? O vômito na pia de água benta do batizado do bebê de Gorete? Até no discreto chute no poodle de Paula ele pensou. Sinceramente, não encontrava razões plausíveis para toda aquela indiferença. Calou-se como a estátua de um buda que repousava no canto da mesa daquela sala, mas a fala da prudência não lhe cessava o cérebro. Passara a ganhar mais no trabalho, entrara naquela faculdade difícil, tornara-se feliz no amor, depois que passou a namorar Rosinha. E só pelo alto da conversa alguém deixou escapar um “você está bem, né Geraldo?”. E ele concluiu: é isso!

sábado, 25 de junho de 2011

Por amar


Por amar, sobretudo à mãe, mas à Regininha também, Umbelino envolve-se numa confusão de sensações, quase sempre voltadas às poucas qualidades divinas da moça. Mesmo ciente daquilo que sentia, não tardou em acariciar cismas, excitar mundos ideais para a contrapartida romântica e em criar rápidas mutações teatrais para tomar-lhe o maduro da relação, sempre jogando verde. O corpo anguloso da fêmea foi aos poucos se tornando quadrado, naquela visão enviesada de um Umbelino transbordante de ciúmes. O inquieto amor repleto de zelos extraordinários lhe convulsionava o âmago, até o dia em que presumiu a fórmula infalível do controle absoluto: um cativeiro! Convidou a pobre para jantar em chácara distante, e lá a trancou a sete chaves. Para a comemoração dos dez anos de união consolidada e exclusiva, levou um bolo de aniversário àquela vítima do destino. Feito, dedicadamente, com morangos, pela mãe.



Caeté-MG

sexta-feira, 24 de junho de 2011

Era um dia

Era um dia claro, daqueles no qual imaginamos que um grande sorriso se estende pelo céu. Mimos generalizados de sinais tomavam o ar: o canto dos passarinhos, o brilho das águas nas poças urbanas, o colorido das flores, o cheiro da relva, o rabo abanado do cachorro, os "bons dias" sem contas dos transeuntes, coisas boas, como a preguiça de escrever. Com os olhos fulgurantes atrás das lentes, dona Cândida ainda chegou com a notícia fresca: - Estou assando uns pães de queijo, você não quer ir lá em casa comer um pouquinho? Passou um café, a manteiga batida e os tais. Tocava não sei qual música, num solo de viola calma, quase um cool jazz, e Marciano chegou convidando-me a nadar na água quentinha da lagoa límpida. Com raiva da vida, desliguei o computador e prometi a mim mesmo nunca mais ir dar aulas noturnas.



Caeté-MG

quinta-feira, 23 de junho de 2011

Estatelado lá

Estatelado lá de bruços, enquanto os cúmplices diziam que era “de droga”, Saturno fingia. Não tinha interesse em falar com a turma adversária, e jogo-se ao chão quando viu que o pessoal inimigo se aproximava. Suas mãos lançadas na terra exibiam os dez dedos repletos de aneis: vaidade antiga e motivação do apelido. Contou com máxima que o avô lhe ensinara cedo: ninguém chuta cachorro morto. E tornou-se coisa enquanto todos batiam boca. Era reclamação por divisão de espaço. Saturno e sua turma andavam roubando onde não deviam. Eles, lá, se acertaram. E os rivais se foram. Só então Saturno entrou em órbita. Disse que não cumpriria o acordo porque, afinal, não havia participado dele. Seus camaradas não gostaram, mas Saturno era Saturno, o melhor entre os gatunos. Deram-lhe crédito, mas já no primeiro assalto apareceu em decúbito dorsal. Cheio de furos e sem os aneis.

quarta-feira, 22 de junho de 2011

Tomado de êxtase

Tomado de êxtase, tomou outro gole, já às contas com as dezenas, sem medir ou pedir a conta das despesas. Espessas despesas que seu fôlego mole e fala enrugada talvez nem dessem conta. Mas quem faz conta dessas coisas, naquele estado? O opaco e onomatopaico pedido de mais uma dose lhe foi negado pelo dono do negócio, com austeridade inequívoca. Evidente para ele, dono. Daí em diante ambos perderam os modos. Eles dois excederam-se. Os acontecimentos, idem. Sem uma pontinha de escusas, uma intenção de perdão ou alma em calmaria, partiram às vias do fato, amarelos de ver no que aquilo iria dar. Deu sangue, deu polícia. E, depois, um incomensurável arrependimento, de novo, em ambos. Afinal, o motivo era tão banal, que decidiram, juntos, tragar o último gole.

terça-feira, 21 de junho de 2011

Entre os antecedentes

Entre os antecedentes sofríveis que enfraquecerem Célia, foi o regime o mais nocivo. Tinha mania de magra, a gorda. Errava pela casa afora, buscando hortaliças frescas que jamais plantou, então comia o que havia, e havia sempre grossos chocolates. Foi maldade grande do pai, interná-la no spa à força. Nos primeiros dias, enquanto havia resquícios calóricos, Célia só desfaleceu. Depois veio o mal da alma. Esse mesmo, que continua com ela. Uma isenção das coisas. Um subterfúgio no despetalar perdido de margaridas pelos jardins externos. Pretextos para nada. Evasivas no divã no psiquiatra. Enquanto os amigos se afastam, ela se aproxima de algum ponto entre a abstração do céu e o pensamento apartado. Vai ver impele sabores guardados no miolo oco e obscuro dos ovos de páscoa.

segunda-feira, 20 de junho de 2011

Perante o fato


Perante o fato, já enfadado, Peri cometeu o ato pedante. No silêncio dos espectadores do velório, levantou a voz, como para impedir que os olhares curiosos penetrassem desmedidos no mundo secreto da viúva. “Morreu feliz, o Armando, ara!”. Todos sabiam do infarto, do quarto e da circunstância vexatória com a qual os jornais noticiaram a morte no motel, mas se fingiam tontos. Jacarés ao sol na beira do lago. Mocinhas em baile de debutantes. O vozeirão de Peri surpreendera a farsa. Mas teria ficado por isso mesmo, não fosse a revelação seguinte: - “Ele deixou um caderninho, onde anotou particularidades de cada um dos senhores”. Gilberto, saiu de fininho, e deixou-se atropelar por um caminhão em frente ao cemitério. Justo ele, coitado, desconsiderado por Armando, cujo nome jamais mencionou na lista dos bons amigos.

domingo, 19 de junho de 2011

Vejamos e viajemos

Vejamos e viajemos, que substância líquida pode ter vazado? Talvez haja urgência em quebrarmos a parede, para sabermos qual dos encanamentos estaria despejando essa espécie da água amarelada por toda a escada: do primeiro andar ao térreo. A retirada do extintor de incêndio se apresenta também como uma alternativa plausível, apesar da ausência de marcas próprias nas paredes de seu entorno. Um ataque de algum revoltado, com alguma espécie de tóxico que flui e corre? Caso de polícia isso, eim? Mas pouco provável, o porteiro noturno é o mais atento, qualquer suspeito seria imediatamente identificado... e há as câmeras. Convém não colocar a mão. Qual o quê, talvez possamos utilizar apenas um pano para secar essa umidade. Assim. Nossa, isso cheira... xixi. Totó seu desnaturado, se você mijar na escada outra vez nós matamos você!

sábado, 18 de junho de 2011

Domou o pingo

Domou o pingo da chuva que lhe caiu no ombro. Pra lá, pra cá. Jean Carlo, depois dos altos estudos do zen e das pegadas na vila, virou Lao Tsé JC: alguma coisa entre o esoterismo e o rap. Uma espécie de DJ de mantras e amálgamas de sons mesclados aos gestuais orientais. Nunca mendigava respostas para sua sabedoria transcendental. Recebia as dádivas como quem abre a porta de um carro, para outros entrarem. Já havia fumado todos os fragmentos de velhos hábitos. Privava-se dos ofícios com frases espirituosas ou singelos biscates em prol de doações em espécie. Ao excluir da vida os rompantes e até roupas, passou a coexistir com o universo que para muitos era imaginário. Parafraseando o xará, vaticinava: “É fácil apagar as pegadas; difícil, porém, é caminhar sem pisar o chão”. Não tardou, assim, a comprar um helicóptero e uma cobertura com vista para o mar.



sexta-feira, 17 de junho de 2011

Dos dobrados

Dos dobrados mal sabia a pausa. Pela harmonia seguia meio assim, num balanço de corpo que imaginava, talvez, o ritmo certo; talvez a pertinência com aquilo que pensava ouvir. Sua coreografia cega e surda, porém, revelava uma paixão sem eixo pelos uniformes e sons da banda militar. Seria um lanterninha de cinema a caráter, no entanto, se fora do contexto do desfile cívico. Um macaquinho de chapéu e colete a tirar a sorte dos interessados na vidência dos realejos. Famoso pela maluquice paralela, tirava dos olhares do público a atenção da cena principal. Na queda, ninguém imaginou infarto ou súbita passagem para a outra vida. Logo lhe tiraram da vista, pensando tratar-se de mais um descompasso.

quinta-feira, 16 de junho de 2011

Enquanto lia

Enquanto lia Lima Barreto tive a mesma impressão de ouvir Ben Webster, em Caravan. Acho que foram as singularidades ou o diabo de uns saltos no cérebro, aos quais me desculpava por não ter feito isso antes. A dor e o riso eram de amargar, salvo melhor juízo. Na aparência de besta, vi e ouvi enfarofar reparos que a vida nos concede quando arriscamos um palpite. Por que justamente aquelas opções se puseram juntas, se as combinações possíveis são impossíveis? Infinitas? Malandragem de Deus que decidiu me tirar um sarro; pensei; antes de quase rezar, para agradecer-lhe o “nada consta”. E fiquei com um gosto de novidade antiga. Quero ver montar-se a mais fácil das combinações futuras, quando agarrar, sei lá, um oposto João do Rio e um insano Keith Jarrett. Desses lamentáveis incidentes, que às vezes transformam-se em essência da arte. Pedante como o pisão de um elefante.

quarta-feira, 15 de junho de 2011

Sereníssima aclamação

Sereníssima aclamação de mais um dia e outra crônica, curta. Porque bem-te-vis apitam à luz irrisória e maritacas charleiam de passagem, desapercebidas como imagens: só sons. Não há ainda como saber se o Sol se abrirá, tudo estará nublado ou as nuvens se encarregarão de despejar água. Cada qual tem sua tarefa. Daqui a instantes, tudo estará no ar, como uma grande rede transmitindo às espécies as façanhas cretinas de seus pares: óbvias e irrisórias. Então a pomba rola passa do vulto ao cinza malhado de suas penas, os bem-te-vis tomam, do fundo azul, o amarelo, e a máscara bandida, alvinegra. Maritacas ficam verdes, mas já se foram. E para você, leitor, sobrará apenas a visão de uma outra micro crônica cretina.

terça-feira, 14 de junho de 2011

Sabia o nome

Sabia o nome das estrelas e dos homens que escreveram livros. Conhecia os livros, com a intimidade de um amante: cada coisinha escrita numa página lá, entre as tantas. Logo aquele homem interessou-me menos pelo seu tamanho, que não era dos maiores, mas pela quantidade de mundos que carregava em algum lugar dentro dele. Disse-me que eu tinha um nome idêntico ao de um emir árabe na invasão moura da Península Ibérica, quando o garçom serviu empadas de frango e um copo com guaraná. Também se silenciava ao comer, digno e muito educado. Sabia a natureza dos frangos e a origem gastronômica das empadas. Confessou-se, entristecido, pouco conhecedor de botânica, lembrava-se apenas que o guaraná era a Paullinia cupana, um arbusto amazônico. De poucas palavras aos estranhos, calou-se de vez quando o artista da noite pôs-se a explicar seus quadros. Baixinho, cochichou apenas para eu ouvir: “qué cosa horrible!”.

segunda-feira, 13 de junho de 2011

À medida


À medida que sujava o mundo, crescia-lhe a calma. Foram vastas lascas de madeira deitadas pelo corte. Rios de águas despachados a esmo, sem ressentimentos. A fartura, enfim, daquilo que pelo descarte revertia-lhe lucros. Dorival dominava, sem arte ou armas, a imensa paisagem bucólica das terras que já herdara explorada. Fez crescer o acinte, com maquinários inimagináveis: grandes e destruidores. Tornou-se senhor de um ex-paraíso, revolvido à base de implementos, agrotóxicos e algum divertimento. Não era, então, por demais idoso, mas já com a pança na poltrona de angico, vermelho e pasmo, passou a fortuna à geração presente. Nenhum inconveniente ou perigo iminente. O mundo, de tão óbvio, permaneceria sujo.

domingo, 12 de junho de 2011

Comer terra

Comer terra era um hábito que não foi contraído pela fome, assim como enfiar o dedo em fechaduras jamais chegou a lhe abrir as portas. Gumercindo era esquisito nas manias, mas boa alma nos gestos. Falava histórias inventadas pelo prazer da atenção. Nunca foi um mentiroso. Agilizava o trajeto das formigas traçando com açúcar o caminho que percorriam, e jamais permitia que perto de si maltratassem os animais. Nem dedinhos cruzava, quando via um cão no ápice da necessidade; muito menos zombava de vacas com camisas vermelhas. Se fez xixi no riozinho azul foi só pra ver juntar peixes guarús coloridos, jamais para dispersar girinos. Mesmo quando se fingiu de manco para atravessar a rua central não teve a intenção de provocar aquele acidente. Na verdade, nem gostava tanto de ver mortos e feridos...

sábado, 11 de junho de 2011

O garçom

O garçom disse que entendia. Alguém se sacudiu pelos ombros afora, e olhou desconfiado. No que Aurélio virou de costas, o garçom possuiu-se de pedantismo ao agarrar o iPod da mesa, e ainda ironizou: “Aí, pode?”. Aurélio sorriu, com expressão desconsertada. Molhou os lábios nas pedras do uísque e deu sinal de “vai”. O garçom limpou a boca no ombro, mas seu olhar era para a tela. Tocou, até tirar o lenço, assoar o nariz e dar uma limpadinha: na cara e na máquina. Aurélio beirou o surto, arrancou musgo da garganta e sem clareza tomou a coisa da mão do garçom. Que susto! Preferiu vê-lo, para verificar por si se havia borrões, manchas ou gosmas. O garçom suspirou. Alguém, para não parecer desrespeitoso, fez que “tudo certo” com a cabeça. Aurélio desligou e guardou o iPod. O garçom fixou-lhe um olhar de desesperança: do tipo “como pode?”.

sexta-feira, 10 de junho de 2011

Encontrou pepitas

Encontrou pepitas de ouro nos cabelos de Áurea, e nem garimpeiro ele era. Nunca havia imaginado que aquele ser indefeso seria capaz de produzir riquezas, assim, num mexer de franjas. Ela era povoada pela fartura, mas, artista, esquecia quase sempre a sua tarefa. Jamiliano, não. Era atento, homem de movimento. De um despotismo quase opressor, carregava Áurea consigo como se exibisse uma medalha conquistada em guerra. Os últimos convidados já deixavam o teatro, quando Jamiliano decidiu cobrir a cabeça de seu bem com um lenço grosso de tecido forte. Nenhum minúsculo minério haveria de cair daquelas madeixas sem que fosse imediatamente enlaçado pela toca improvisada. Sem jeito, Áurea confessou-lhe que havia inserido o ouro nos cabelos apenas para a personagem daquela noite. Foi com uma faca de cozinha que ele escavou cada mina que pudesse esconder uma mentira.

quinta-feira, 9 de junho de 2011

Golem ou Frankenstein

Golem ou Frankenstein, mas feminina, a pobre Fátima era de uma subserviência ímpar. Fora feita à falha e semelhança de um pecado inconfesso, praticado pela genitora no estacionamento de um shopping, durante a embriaguez de um segurança macho. Nasceu assim, com o cérebro assado, mas a lógica perfeita, apesar da ausência dos movimentos físicos. Dispôs-se inteira às vontades maternas, que de tantas e tão toscas transformou-a em objeto de troca: mulher elefante, mulher barbada, anã contorcionista. Promovida a “vale estacionamento” para deficientes, “vale ingressos” para shows, “vale vagas” nas filas e concursos, virou uma espécie de tarja eletrônica, ainda que carente de chips. Abria porteiras impossíveis pelas rampas de acesso. E, mesmo no mega espetáculo da vida, obteve o trânsito dos poucos: menos para si, mas sempre para a mãe, que intimamente sorria com a sua conquista.

quarta-feira, 8 de junho de 2011

Debaixo do telhadinho




Debaixo do telhadinho havia uma mulher com o cigarro aceso. Impressionava menos pelo biótipo, do que pela fumaça que espirava por ventas e boca. O cinza daquilo cobria o marrom das telhas. Provavelmente fora condenada à fogueira por alguma inquisição displicente, e fez-se Joana D’Arc, queimada viva, naquele pedacinho de teto nublado. Nos raros momentos em que se via a brasa brilhar outro trago, parecia haver-lhe um véu vermelho ou lhano pano envolvendo-lhe a face rubra alaranjada. Se fosse daqui, provavelmente haveríamos de conhecê-la, porque a vila era do tamanho de um ovo no dizer simples daquele povo. Sem rimas, mas amável. Sem grandes coisas, mas repleta de muitas pequenas esperanças móveis. Mesmo as baforadas tinham nome. Exceto aquela sob o telhadinho, que de tão estranha ninguém mais viu. Alguns nunca mais deixaram de chamá-la Maria. Outros, só a citavam, por ouvir dizer.

terça-feira, 7 de junho de 2011

Tentou tanto

Tentou tanto orbitar ao redor dela que foi levado à desgraça. Não havia círculos em si nos quais ele coubesse, e seu cacife andava aquém da suficiência imposta pela moça. Legado ou herança em fiança, nos os tinha, e por tal nem recebia dela um olhar de condescendência científica, um “oi” de forjada malícia ou desdenho de engenhosa altivez. E galã cover, intelectual incompreendido ou playboy às vias do fato também não colaram. Por quais pegadas primordiais trilharia? Foi a indagação que lhe veio, junto à imediata falta de resposta. Um atentado afoito, espécie de pega na marra, ou quem sabe um beijo torto, uma investida tonta, abraço corrompido, que fosse uma passada de mão, um agarro no tropeço, um aperto distraído, nada... Nenhuma das alternativas anteriores o aprovaria no teste. Com a desilusão virou esse ócio em carne e osso, que quase ninguém repara.

segunda-feira, 6 de junho de 2011

Paria e transferia




Paria e transferia o encargo à tia. Michele era dada a doar-se à margem, onde houvesse um covil que a quisesse bela. Porque bela, na verdade, ela não o era, mas sempre há ladrão que saiu da prisão a seco; o meliante iniciante, a quem cada golpe é uma façanha; o bandido distraído que, louco ou bêbado, a comia. Os caprichos da fecundidade encarregavam-se do resto. A silhueta alterava-se a qualquer introdução na rima. Logo chegava Michele, com barrigão em riste, pedindo guarita à tia que a criara desde virgenzinha. Depois surgiam os furtos naquela casa aparentada, em prol do pai da criança, não vivia sem um extra ou aditivo à alma. Então surgia o recesso, um ou outro acesso e o natural regresso de Michele à corja; em busca de outro amor, abandonada pelo último pai de seu mais recente filho. À tia caberia a incumbência de produzir micheles ou, com sorte, novos machos, cujas mulheres que emprenhassem tivessem tias.


domingo, 5 de junho de 2011

Considerava saudável

Considerava saudável sua introspecção. Devia ser, porque ninguém reparava, e é contemporâneo só se reparar nos erros e crueldades. No livro de múltiplas faces virtuais estampava sua cara como num velho álbum de figurinhas de artistas. Não havia informações relevantes, explicações ou motivos, só caras: facebooks. Sábios kkkkkkks, hilários como a troca nicks trôpegos em ênfases numéricas para a idade, comprimento do pinto ou quantidade de inteligência, cacarejados twitters de pássaros gagos ou de razões dodecafônicas. Bizarro higiênico mental a transgredir a higiene corporal que, pra quê? Então, já que não há contato, que sobreviva a conexão. A conferência ilimitada sobre o nada e suas nuances niilistas. Na dúvida, dá-se um delete, e certeza também não há. O papo estroncho é bom pra gente... a introspecção tão saudável quanto um aceite de nova amizade virtual. O vazio, enfim, completa.

sábado, 4 de junho de 2011

Ogro seria

Ogro seria exagero, girino não. Por infelicidade alheia, ria muito, o que lhe piorava a feição, contradizia Darwin e humilharia o sapo que o pariu, se partíssemos da comparação supracitada. Ernestão não só tardava no raciocínio como falhava na estética, mas entre os infortúnios do mundo, diria a avó, era dos males o menor. Pois apesar da distância entre o beiço e o queixo, da irregular altura entre um olho e outro, dos assimétricos furos nasais, tinha intenção e gestos bons. Poderia ser mencionado apenas como mais um bom monstro da literatura clássica, um Corcunda de Notredame esperando o buzão do Irajá, mas Ernestão fez mais do que ficção histórica, fez a história do bairro. Ajudou velhinhas a carregar compras pesadas, cegos a atravessar a rua, crianças a chegar à escola. E quem ainda duvida do feitos de Ernestão, pode perguntar a qualquer um, no Jardim Aparecida, vulgo Vila do Feião.

sexta-feira, 3 de junho de 2011

Sem romantismo

Sem romantismo e extremamente prático, pôs-se a conhecer o mundo pelo prazer do exótico. Aventureiro ele era, como lhe exigiam as histórias que tinha satisfação em contar, notadamente àqueles que nunca saíram de determinado lugar no planeta, pela pobreza, estreiteza de propósitos ou ambos os motivos. Não dizia mais de lutas contra monstros, conquistas de inóspitos territórios ou de heróicas batalhas aqui e acolá, mas das façanhas de se apanhar um metrô na China, da sensação de perdição no Nepal, da dificuldade de se entender as placas de sinalização russas ou do péssimo sinal de celular na baixa Normandia. Muitos, atentos, escutavam. Aquelas histórias com as minúcias dos chips, a clareza multimidiática e visão holográfica da vida eram, de fato, novidadeiras e futuristas. Só Felíciozinho, de dez anos, parou de súbito a fala do explorador: - Acho tudo isso no Google.

quinta-feira, 2 de junho de 2011

Frio na espinha

Frio na espinha Juarez sentiu quando o maestro silenciou os demais músicos, e segredou-lhe de improviso: - O solo é com você. Feito viúva de rico negociante, turista mudo ou piloto cego, Juarez pôs-se a soprar seu sax, arremedando um velho vídeo que vira de Charlie Parker. Os gestos foram falsamente precisos, mas aquilo que saía do saxofone, não. A harmonia deu vertigem e o assopro abstrato levava ao vento às notas vãs. “Desista, Juarez”, chegou a pensar quando a temperatura da música haveria que se elevar, sem a guarida dos demais instrumentos. “Então, eu sou pássaro!”, convenceu-se tal “Bird”, e expressou a técnica assustada até ouvir ao fundo o piado sutil do piano; o trinado claro do trompete; e, a bateria, chegando como quem não quer nada. Poucas vaias e muitos louvores depois, Juarez curvou-se em agradecimento à platéia. Enfim, tocara um jazz.

quarta-feira, 1 de junho de 2011

- Escória, ao seu

- Escória, ao seu lugar! Sua majestade foi imperativa. Primeiro olhou do alto ao chão. Mediu de cima embaixo. Depois proferiu a ordem, deixando o cavaleiro deslocado, sem jeito ou gestos. Um reles cidadão ali ao lado, peão, que se sabe lá porque, estava ali ao lado, tão fora de seu habitat, ofendeu-se com a ofensa da rainha ao cavaleiro. Cutucou o bispo, com o propósito de denunciar à igreja o autoritarismo da monarca. Sua reverendíssima também não sabia se mandava alguma coisa ou não. Notou que seu colega, também bispo, e também branco como algumas casas de um tabuleiro, estava ao seu lado, também em casas pretas. As torres, lado a lado, fechavam a visão dos demais plebeus, e o pobre rei, coitado, tinha menos poder do que todos, isolado na última casa branca da direita.
Diva, a feia, é assim. Quando vem em casa para a faxina semanal e limpa o tabuleiro de xadrez sobre a mesa, provoca confusões espetaculares no Estado, no clero, nas armas e na sociedade civil.