domingo, 31 de maio de 2009

Nenhum deus

Nenhum deus entraria nesse banheiro descrente. Isso aqui só pode ser coisa de pervertido. Deixar, de propósito, essa ponta de cano na cabine fechada... Limpo tudo, direitinho, porque trabalho não suporta ser negado, é feito balão de gás, que não tolera agulha.
Há um mês encontrei bem ali, no canto do mictório comprido, três botões. Pareciam arrancados de vestido de mulher, apesar desse banheiro ser o masculino. Estranho. Venho cedinho, mas sabe-se lá o que acontece de madrugada... É público.
Ruim mesmo foi dar com aquele moleque todo estropiado. Parecia furo de tiro. Fraquinho, ele balbuciou que foi faca. Não sei porque alguém mente na hora da morte. Meu diabo me insinuou que deveria passar pinho-sol naquela alma, deixar cheirosa, pra subir limpinha, mas derrotei essa idéia asquerosa. Só chamei a polícia pra me ajudar a tirar aquilo de lá...

sábado, 30 de maio de 2009

Sustentada por um touro

Sustentada por um touro em movimento, Miss Wanda, a alemã, saltou em meio ao arco de fogo, sem hesitação. Magna e soberba, ao término do ato, deixou escapar pelos cantos da boca um sorriso executivo e vitorioso. Suficiente para arrancar dos espectadores os muitos “óhs” e aplausos.
Provérbios, no entanto, são implacáveis: “onde há pombas aparecerão outras pombas”. E surgiu Lady Vilma, a sueca, com seu salto mortal duplo sobre uma fileira de três elefantes. Com os olhos irritados como os de um mergulhador que vai fundo demais, depois volta à superfície, Miss Wanda torceu calada para que Lady Vilma quebrasse o pescoço, a base da coluna ou mesmo o colo do fêmur, conhecido como “bacia”. Mas assim como um louco que se torna Pelé acaba até acertando os gols que ele errou, Lady Vilma esteve sempre perfeita. Contam que foi o touro o responsável pela queda de Missa Wanda.

sexta-feira, 29 de maio de 2009

Nunca aceitou

Nunca aceitou, nem deixou, a vida fácil. Idalícia era difícil. Dava, mas era uma hora isso, uma hora aquilo. Sem distinguir sua vocação da presunção que tinha, sabia que aquelas quatro horas diárias de trottoir e turbação eram quatro doze avos de sua vida consciente. Justo ela, dona de mais desdém do que realmente sentia.
Um desses boatos perversos, que acertam na mosca, ainda que a mosca sequer apareça a voar por perto, logo deu conta de que amigas a chamavam pelas costas de Dali Celú, uma maledicente analogia disposta a dar-lhe celulites, embora já às possuísse.
Reencontro matinal no pensionato, hora dos regressos da noite, é sempre o momento dos pratos limpos. Mas Idalícia não tomou providências outras a quem lhe chamara Celú. Mandou as outras tomarem...

quinta-feira, 28 de maio de 2009

Avatar aloprado

Avatar aloprado, cujo domínio o criador jamais o tinha, desdenhava os comandos do game. Saltava, quando a ordem era abaixar. Atirava, incitado pelo joystick a correr. Soltava uivos em ambiente romântico. Tinha má paixão pela princesa, a quem deveria salvar, e amava os odiados inimigos. No nível três (ou seria no quatro?), transformava-se em dragos. Um dragão, se assim o queiram.
O aspecto reptiliano até que lhe caia bem. Apesar do quimérico fogo desgovernado, com o qual atemorizava e queimava, distraída e indistintamente, todos os personagens da tela. “Venta-louca”, dizia a letra da musiquinha que, ao fundo, o caracterizava em tal personagem.
Tanto fez que foi retirado do mercado, a bem do serviço público do país.

quarta-feira, 27 de maio de 2009

Não quero dizer

Não quero dizer o que Laurinha me disse quando nos abraçamos. Você já deve estar desconfiado, mas não faz ideia. Ideias atrevidas são aquelas que ocorrem apenas aos pobres de originalidade, seu caso. Fique aí, lutando com suas fantasias, remoendo imagens e concebendo suspeitas.
Laurinha tinha consigo aquela confissão desde a infância. Não teve caderno de enquête de amiga, padre confessor ou ex-namorado capaz de arrancar isso dela. Não faz assim, faz assado. E ela lá, alheia ao mundo como estátua de anjo.
Já sei o que você deve estar pensando, palavras entre aspas, mas sua percepção mesquinha está derrotada. Laurinha te olha como em um binóculo virado ao contrário, cada vez menor. O segredo é nosso!

terça-feira, 26 de maio de 2009

Estas histórias

Estas histórias ele não gostava de contar. O ronronado de onça em êxtase, danado pra gostar dos filhos, contava até, mas sem os finais. A vida na fazenda mudou, desde aquela anacrônica época. E se considerasse tudo explicado, jamais sobrariam outras gentes para explicar o mundo.
Deu partida na pick-up hilux e injetou o disco. Moda boa, de céu no oriente, quase chovedor. Foi cortando veredas em curvas, a forma geométrica livre que parte de um ponto para um espaço sem rumo. Era o jeito de se lembrar vagamente daquela gravidez. Depois do amor não pode mais ver a mãe. Onça parida esquece o amor e vira fera. Não haveria de contar isso pra ninguém. É feio. Feito aquele ornamento da sala de troféus: um pássaro empalhado pousado numa árvore morta. E as crias morreram mesmo...

segunda-feira, 25 de maio de 2009

O vento enlouquecia

O vento enlouquecia as plantas. Para proteger sua paixão, a rosa amarela, fez de si rebatedor. Cortador de correntes... Mas veio a chuva, quando concluiu que os anseios são enganos. Segura o ar de um lado, tora a água de cima. A aflição da flor, em tênue equilíbrio ao caule, oscilava à sorte.
Em pânico, abriu reza. “Mãe da alegria e do bem viver, que os teus ventos abra meus caminhos, encoraje minha alma e alegre meu coração”. Conta que Iansã lhe ouviu. Varreu a tempestade, espantou os raios, abrandou a chuva, mas levou consigo a roseira, que só viu quando abriu os olhos, rodeado de pétalas amarelas. Foi aos búzios do vizinho, pai-de-santo, e a explicação amadureceu: “mizin é fio de Oxalá”.
Sua rosa agora é branca, adubada a Pai Nosso. Nunca mais ventou forte.

domingo, 24 de maio de 2009

Está pálido

Está pálido o Josepe. Vive num mundo que esqueceram de guardar. E como pode ser ateu e ainda dizer “meu Deus”, toda vez que lhe perguntam como vai? Só o choro dele fica no quarto da pensão. Sai a esmo e volta ao acaso.
Dizem que o dinheiro dele foi herança, mas que ele tem esse talento especial de se dizer um grande talento, isso tem. Nunca o decifrei como um lascivo, desses que, com seus problemas, suam nas mãos e coram com facilidade. Deve ser puro exotismo.
Incomoda-me um pouco o jeito como ele olha para o retrato da finada Ana Geovana. Contam que vieram juntos no navio europeu, mas nunca li um conto escrito por ele que lembrasse o espírito dela. Todos falam de paixões perdidas, assassinatos passionais, amantes mortas, essas coisas...

Hospício é o lugar

Hospício é o lugar. Nunca duvidei de que todos nós deveríamos estar aqui. Bolas, borrados e matizados, isso é dissimulação. As cores deveriam ser sempre puras, duras e fiéis, sem concessão ao vazio ou às misturas. Sabe o quê mais? Ele que se dane.
Ver Elvira assim, falando sozinha, contemplativa e imóvel, causa compaixão. Parece querer defender a si dos mal-entendidos próprios ou do mundo.
Quando Ernesto, artista plástico acadêmico-figurativo, pintou o nu de Helenice, foi a gota. Aqueles tons rosados da prima, as curvas salientes e o sorriso monaliso, turvaram a vista e estremeceram o tronco um tanto mirrado de Elvira. Sentiu gelada a raiz do cabelo e, de espátula em punho, foi ao marido, no atelier anexo. Uma, duas, três estocadas. Agonizante, ele ainda chamou a polícia. Foi camarada. Apesar das cicatrizes abstratas, jurou ao juiz que a mulher era psicopata. E mudou de vez o estilo.

sábado, 23 de maio de 2009

No volante

No volante, a cento e tantos, viu no retrovisor a redenção do mundo pela violência. Ficou para trás, cada vez menor, aquele pedestre. Já era, aquela coisa. Calça jeans, camiseta chino-americana da promoção e um tênis, “do nike”, falso. Natureza-morta da honradez urbana. Gentes e coisa que têm que ser ultrapassadas, e viva a vida veloz, que nem tem tempo para deixar marcas.
O carro da frente, murrinha, lento, empatador, deve ser transposto. A urgência é mole e a selva é rígida. Com a visão libertadora de uma embriaguez, Horácio ainda quis dar asas a velha transeunte, e a colocou no ar, no céu, para sempre.

sexta-feira, 22 de maio de 2009

Torpe de alma

Torpe de alma, ruivo-embranquecido de pele, com sobrancelhas de Frida Kahlo, o menino era o cão. Albino. Já Albertinha era leve a clara, como certos dias sem vento. No lado secreto da moeda, disputavam casinhas, caçadas, bolas e amarelinhas. Vãs aparências, que se deixavam confundir nas aventuras: ele, Dionne Warwick. Ela, centroavante, sempre um desses ronaldos.
Cumprida a agonia, nessa penumbra lenta, cresceram, e suas simulações prosperaram. Albino aferrou-se à alta costura. Albertinha abriu boteco. Ele, fashion. Ela, food. Aceleravam na parada do arco-íris, quando se avistaram dândis invulneráveis. Elegantes idênticos. Ele, Greta Garbo. Ela, Oscar Wilde. Depois da corrida para o encontro, o beijo. Desses, de feito um para o outro. Mulher e marido, como nunca tiveram coragem de experimentar na infância...

quinta-feira, 21 de maio de 2009

Regra de três

Regra de três não lhe convinha percentualmente. Seu sincero sentimento por Vaneska estava há dias para um incógnito xis, assim como o dela estava para cem. Em progressão geométrica, a jovem prospectava amores, enquanto Renan, com suas higiênicas palavras, sonhava sair do ordinal segundo (ele não se sabia terceiro, quarto ou centésimo), para dar-lhe as mãos feito um casal a sós.
Como um gavião que tolera um pardal ao seu lado no poleiro, Renan freqüentou Vaneska. Tinha sob as sobrancelhas as conhecidas rugas da reflexão, mas quis lutar pela conquista da amada, na ânsia de constituir uma exponencial dupla. No primeiro encontro, surgiu-lhe um breve momento de perplexa decepção, assim que a tensão acabou. A moça desvendou-lhe a matemática do sexo, mas se recusou a lhe beijar a boca. Sem mais nem menos, somas ou multiplicações, pronunciou um enigmático número: - “Cento e oitenta e sete”.

quarta-feira, 20 de maio de 2009

Ao grito de palerma

Ao grito de palerma nem um nada ele disse. Sacou o facão e fez famílias guardarem lutos, na macabra volta do caminhão à cidade. Demorou como nunca. Os finados zombeteiros, bóias-frias como ele, nomearam de calúnia súbita a visão de Glorinha. Mas onde já viu troçar um traído?
Maria da Glória, a pivô Glorinha, tremia de medo do frio escrivão e de suas perguntas, mas disse toda a verdade, que consta nos autos: - Eles passaram cedinho quando iam à cana, e eu estava no portão me despedindo do Paulo. Dava um abraço e dois beijinhos. Todos viram e pensaram bobagens, mas nossa mãe nos ensinou assim. Lá em casa, irmãos sempre se despendem com dois beijinhos...

terça-feira, 19 de maio de 2009

Passava Tom Zé

Passava Tom Zé no programa Raul Gil. Tão insólito quanto Cláudio, sentado à frente da televisão, ouvindo rap no iPod roubado há pouco no parque, extraindo os frutículos gordos de uma jaca gosmenta e chupando-os com doce aflição. Sabe-se lá o que via, ouvia ou comia, depois de fumar as duas últimas pedras de crack, extraídas do invólucro de papel alumínio.
A criança, presumivelmente seu filho, chorava fome sobre o sofá furado. De micro-short e seios sutilmente à mostra, a mulher dormia jogada. Sem ação ou importância.
Odete entrou na ampla sala, mansamente, e se dirigiu imperativa a Ricardo, o filho mais velho: “desliga isso, menino, que mania de ver filme de favela!”.
O cronista pôs ponto final, por considerar a história verossímil, para os propósitos cretinos. Roberto Olympio, o editor, lançou o esboço do livro sobre a mesa. Cretino mesmo, disse com desdém.

segunda-feira, 18 de maio de 2009

Aroma da alvorada

Aroma da alvorada tem que ser verde. Não há matiz capaz de lhe envaidecer melhor. Só Poliane se cisma vermelha. Unhas das mãos, dos pés e depois o batom à beira do escarlate. Rubras roupas, idênticas peças íntimas. Chapeuzinho a desafiar lobos.
No ponto, às 6 em ponto, soletra sigilosa uma oração ao dia, indiferente aos espantos que sua cor logo causa aos seus idênticos, cumpridores da ordem e do horário, madrugadores do ofício. Cruza as ruas como uma labareda corada, que passa pelas cores neutras e os tons pastéis da multidão cotidiana. Abre a loja de cosméticos, e corre à cozinha, preparar o café da patroa que chega às 9, com eventuais atrasos. Lança olhares aos mocinhos da oficina em frente, dá bom dia aos que param para ver a vitrine. Sente-se solta e outra, agora que se separou de Guilherme. As manchas roxas nos braços e olhos a incomodam um pouco, mas as explica indiferente aos curiosos: - Estou encarando um ton sur ton.

domingo, 17 de maio de 2009

Quem me dera

Quem me dera encontrar Florbela. Tivemos um noivado estranho, que empalideceu de cansaço. Mas jamais me esquecerei da primeira vez em que ela usou a expressão “querido Fabiãozinho”.
- Querido Fabiãozinho! – disse. – A noite é uma flor de laranjeira a sacudir pérolas de luz... Pensei, poeta, essa. E não é que era? Minhas incontáveis esperanças e decepções no amor, nessa vida ordinária de analista de sistemas, ganharam dados novos. Respondi ao e-mail buliçoso, rimando ela com bela, o que também dava em Florbela, e me aquietei, deixando um tempo para as palavras fazerem efeito. Foram dias assim. Ela de lá, comedida, mas tão natural quanto as notícias do tempo, e eu aflito.
Agora estou só que teclo. Quero o fim desse fracasso doloroso. Tento baixá-la em minha alma, mas o download do seu amor está lento, e não termina nunca.


sábado, 16 de maio de 2009

Admiravelmente mesquinho

Admiravelmente mesquinho, gritou com Shirley para que parasse o banho. Assustada, ampla e culpada, a inquilina do minúsculo quarto, da pensão Sansão, pensou logo no desperdício da água única do planeta, e deu razão ao senhorio que, atento em seu canto, contava os giros do relógio medidor da conta de luz.
Condenado a ser serpente, o velho poupava a manteiga no pão matinal, acorrentava o freezer, escondia o doce, encobria os sorrisos e cifrava a alma. Lugar de locatário era na cama, preferencialmente dormindo, no único lençol que oferecia ao mês. Desconhecia os desígnios do universo e, numa dessas abaixadas para apanhar a casca da batata que caíra no chão, e que ele utilizaria na sopa da noite, travou a coluna vertebral. Shirley fez o gesto da mão estendida, mas arrependeu-se do intento. Puxou o braço até peito, cruzou-o ao outro, e comunicou-lhe inapreensível: - Vou mudar de pensão.

sexta-feira, 15 de maio de 2009

Beira a tortura

Beira a tortura. O perigo iminente é indecente. Perlão, o intratável traficante disse que lhe cortaria a parte do prazer, caso não pagasse o pó. Sorte que, vestido ainda, soube oferecer a troca, sem ficar com remorso eficaz. Daria a dica para um assalto à mãe. Sua própria mãe, com os seus hábitos emergentes: ouro e cabelo louro.
Boa alma sempre foi uma qualidade subalterna, e Perlão desconfiou, mas decidiu pelo jogo. Já na casa do devedor, para quitação do débito, soltou o desfavorecido e agarrou-lhe a mãe. Puxou-lhe o colar, os cabelos, a cintura e subiu granitos escadaria acima do sobrado, estapeando-lhe a bunda. Queria toda a fortuna. Nas horas de pânico, sem ação ou pó, o filho engolia ansiedades, até que observou os dois voltando. Perlão de braços dados à loura, comunicou-lhe o casamento para dali a uma semana. A mãe confirmou a verdade. Ambos, afinal, sabiam que não existe verdade, exceto para os seres apaixonados.

quinta-feira, 14 de maio de 2009

Rejubilou-se ao descobrir

Rejubilou-se ao descobrir a obra do macaco. Viu na televisão o bicho e suas telas, e identificou pintura primitiva, como lera nos livros. Pelo celular, ligou para Odete, e foi imperativo: eu pinto!
Hesitante, a namorada quis entender aquela expressão curta, se falava de arte ou tinha apenas conotação erótica, tão comum nas frases de Reinaldo. Arrumou a língua, com salivação vernácula, e perguntou-lhe, respeitosa: tu pintas?
Foi Reinaldo quem ficou em dúvida, se até o macaco era artista? Fazia lá suas artes, que julgava plásticas, mas a súbita indagação de Odete o deixou indeciso. Mais calmo, contou-lhe a história do macaco que pintava telas, para concluir: ele pinta!
A conversa mole, o verbo pintar e a absoluta falta do que fazer, mexeram com a sensualidade de Odete. Ignorando o macaco ou dotes artísticos do namorado, enviou-lhe um torpedo imponderável: nós pintamos!

quarta-feira, 13 de maio de 2009

Sentia calafrios

Sentia calafrios diante da própria importância. Não era sem tempo o envio daqueles homens ao inferno. Empolgado com a idéia, cometeu o crasso erro das idéias, esqueceu de realizá-la até o final, vanglorioso do fato de já tê-la concebido.
Deu ordens expressas para que invadissem a concorrência aos tiros. Deus nada tem de moderno, desconhece siglas. Os AR-15, M-16, AK-47, R-11 são coisas do demônio. Com o notebook em punho, ouve um funk e abre a caixa de e-mails. Grace Kelly lhe escrevera aflita. “Aí Doc, naum manda bonde naum. Els descubriro tudo. Bj GK”.

terça-feira, 12 de maio de 2009

Aquele et cetera

Aquele et cetera me soou como um nunca pisei. Ninguém vai à Paris e conhece a Torre Eiffel e et cetera. Vai à Londres, e vê o rio Tâmisa e et cetera, ou mesmo a São Paulo, onde conhece o Parque Trianon e et cetera. Se todos fossem citados juntos, vá lá, cada qual chora por onde sente dor. Naquela palestra, porém, o doutor conferencista, muito sério, mencionou apenas Paris, como o local onde aprendeu os ensinamentos primordiais de sua Teoria do Contentamento.
E havia aqueles dois dedos, mal tratados, cujos gestos, apesar da velocidade, tinham algo de uma benção papal. Margot bem que se esforçou para ficar feliz. Beliscava-me o braço e ria: “viu?”. Cutucava meu joelho a todo o instante, reforçando os benefícios que naquele momento eu obtinha, por tê-la acompanhado ao importante evento.
Deixei Margot em casa. Ficasse para sempre na teoria. Foi triste.

segunda-feira, 11 de maio de 2009

O perdão

O perdão nunca lhe era negado graças às suas maneiras. Gozava de uma polidez aperfeiçoada, de moça fina, com virtudes completadas à custa do curso de boas maneiras on line. Seduzia sem agradar, tomada por um calculismo mentiroso que divertia os interlocutores. Já era psicóloga quando conheceu Irineu.
O romance surgiu da noite, período em que até ela, e todos, precisamos de alguém íntimo para conversar. Foram labaredas de alma, puxando acima as fagulhas que jaziam sob as cinzas de seus segredos elegantes. Confessou a ele a farsa dos gestos, o embuste das falas, o logro dos sentimentos. Pálida, como algo que fica tempo demais na água, cedeu-lhe o corpo, com ignorante segurança, comum às tolas.
Na análise da relação, Irineu sentiu-se entre uma ternura infinita e uma solidão sem fim. Vestiu a bota de cowboy, ajustou o calcanhar com duas batidas no chão e aboiou uma despedida insólita: “bãããããão, então um dia a gente se vê!”.

domingo, 10 de maio de 2009

O amor afoito

O amor afoito o derrubou da bicicleta. Crepitava-lhe a paixão por Júlia, como pingos de chuva no fogo. Estalos esvaziavam sua vida real para, nas pausas irreais, lembrar-se dela, linda e versada. Foi numa dessas brevidades de tempo que não viu a pedra pontuda. Arranhou os braços, colidiu a boca, entornou a marmita. Pior, ficou sem o aro dianteiro.
No longo conserto da peça, ficou sem os proveitos da bunda de Júlia, a quem levava passear sentada de lado sobre o quadro do veículo, roçando-lhe com o joelho a cada pedalada. Foi ideia dela encaminhá-lo aos exercícios diários, para que não perdesse a forma. Mas na academia pobre da vila, ainda que ao lado de Júlia, não havia meio para externar sua paixão incontida. A estúpida bicicleta era ergométrica.

sábado, 9 de maio de 2009

Tomou a fresca

Tomou a fresca e muitos goles gelados. O calor do dia se dissipava naquela combinação harmoniosa, diametralmente oposta aos dias úmidos da prisão. Jamais se imaginou personagem literário, o que lhe assegurava a tranqüilidade estável de pertencer àquela mansa ação, sem se preocupar com a linha seguinte.
Figurante de crônica, ainda que micro, com visão limitada, sempre corre o risco do inusitado. Luz artificial murcha depressa, quando surge a luz do dia.
Já embriagado com a aragem fresca que soprava, surpreendeu-se ambíguo: amava ou odiava aquela situação segura? Mal sabia que nunca se deve odiar inteiramente, nem amar completamente. Com poucas palavras o autor, algoz de sua existência, decidiu matá-lo inclemente: de tédio.


sexta-feira, 8 de maio de 2009

Profanador confesso

Profanador confesso foi pra pinga na paróquia. Garrafões de vinho do padre o viciaram e, para sair dessa, deu pra beber em outro lugar: no cemitério. Fez feio no culto, violou tumbas, chutou santos. Mas naquele carnaval, vestido de Nossa Senhora de Fátima, com fitas da Congregação Mariana, cilícios da Opus Dei e laços das Filhas de Maria, quando sambava sobre o túmulo do Capitão Belmiro de Deus, sentiu ojeriza da vida transgressora. Uma espécie de luz prismática explodiu-se da garrafa de cachaça que tinha às mãos, e iluminou em sete cores as penas de sua alma. Zonzo, mas resoluto, lançou as vestes e trastes no campo santo, disposto a buscar a fé.
Esteve a um passo de encontrá-la, não fosse o camburão nervoso que o tirou pelado das ruas, por atentado ao pudor.

O involuntário giro

O involuntário giro de polegares indicava a apreensão. O senhor está nervoso? Não senhora, em absoluto, respondeu solícito como um banco de jardim. Pode me dizer sobre sua última experiência? Atuei no ramo do mobiliário, exportávamos armários para toda a Europa, encheu-se de boca. Especificamente, o senhor fazia o quê? Gerenciava a exportação, ajeitou a orgulhosa gravata. E porque quer agora trabalhar como contador no ramo de papéis? Bem, na verdade, já embrulhávamos os móveis com os vossos papéis, embrulhou-se, desempregado.
A psicóloga dos recursos humanos fechou a pasta: então não serve, não admitimos ninguém com ligações anteriores à nossa empresa. Atônito, o ex-executivo se levantou cabisbaixo, não sabia se escreveria um livro ou matava-se. Olhou para o coque loiro da moça, por de trás de seus olhos claros, e falou, enfim tranqüilo: “então a senhora vai tomar no cu”.

quinta-feira, 7 de maio de 2009

Só o riso dele

Só o riso dele ficou na pequena sala. Lascivo, do tipo que pairava no ar e ardia nos pés. Dera a entrevista coletiva à imprensa com expressão constrangida e astuta. Irônica, traiçoeira, sanguinária, louca, sinistra e, às vezes, dolorida. A própria enunciação das coisas incomuns que acontecem nos jornais, no abstrato das vidas. Os cotidianos concretos só criam desimportâncias.
Do que falou ficou também a faca. Usara-na para forçar a vítima a prestar atenção. Empregara-na no vão afã de terminar o monólogo com audiência total. Quando faltou platéia, calou-se tarde demais. Foi assim.
Aos insistentes repórteres creditou várias versões ao mesmo tempo, meias verdades que lhe facilitavam a mentira. Imolado pela mídia, atingia seu intento. Isso é crime?

Do fundo da alma

Do fundo da alma solitária gritou inclemente: famigerado! Nem poderia ser diferente. Agoberto saíra ainda cedo, antes do sol e de um sorriso, levando consigo os suspiros inconclusos de Dorinha.
Noite baixa, jurara a ela eternidades. Noite alta: êxtases. E terminara assim, em fuga, a madrugada.
Dona Adélia, com suas fisionomias inconfundíveis de mãe, bem que lhe repetira o “não presta”, por toda a véspera. Dorinha, com o soberbo descrédito dos 35 anos, assobiou gargalhadas finas, solitária e virgem.
O menino, com ralos cabelinhos morenos, tem os traços do pai, mas Dorinha o batizou Thiago, nome de apóstolo. De birra, mesmo. E desandou a descobrir amores, nas altas noites.

quarta-feira, 6 de maio de 2009

As perfeições revoltantes

As perfeições revoltantes de Dona Cotinha eram manifestas. Permutava qualquer expressão da harmonia do convívio pelas suas pequenas felicidades, como deixar o garfo a exatos três centímetros do prato, do lado direito, alinhado, no seu comprimento, em paralelo ao centro do círculo do prato. Vista à porta, lembrava o retrato na parede de alguma antepassada. Adornada de vetusta. Ereta e besta, em perfeito enquadramento com o batente.
Como o bem sempre segue em linhas severas, mas o mal sabe estipular conciliações, recebeu em férias a jovem sobrinha viúva. Madalena era o seu nome; sua excitação para o amor era inominável. A tia bem que tentou oprimi-la com sua piedade irrepreensível, saboreando cuidados, mas beleza não combina mesmo com a mesa. Madalena queria os garfos sobre o centro de seu prato...


terça-feira, 5 de maio de 2009

No banho

No banho, riu das próprias coxas, finas e curtas. Celeste o mandaria para o inferno, assim que baixasse as calças, pensou molhado. De qualquer forma, se lavava com zelo. Axilas em ordem, perfume nas virilhas, nenhuma cera, em ambos os ouvidos. Pensou na tal primeira impressão, a que fica, segundo a avó. Mas avó e sexo inicial não combinam nos pensamentos. Tanto pior, se eróticos.
Marcara com Celeste às oito horas, na biblioteca da escola, e a mãe bem que estranhou tanta pose e fragrância para estudar Graciliano Ramos. Angústia, na curta espera, e eis Celeste, linda e penteada. Olharam aflitos para todos os lados, como se o mundo soubesse o que é o desabrochar do amor. Só no táxi, com o motorista na espreita, venceu o primeiro beijo. Timidez, logo desfeita em prazer. Amaram-se como sábios, e ele sorriu de si, quando ela lhe disse que tinhas as coxas lindas.

Exposição de arte

Exposição de arte sempre começa com “oh”. Nada mau, porque o artista é boa pessoa. E mussitares, entre os dentes, citam Robert Musil: “só pessoas que não fazem coisas boas são capazes de guardar intacta sua bondade”. Olhares entre uns, outros e artes.
No toim, tum, blém dodecafônico ao fundo, simulam-se transes, seguram-se taças de vinho branco. Secos. Um forçando o outro a prestar atenção, como quando se pinga um líquido em gotas num copo. Falta coragem de não ser pedante. A sinceridade é tão rara quanto a arte. Nenhuma expressão denuncia as falas.
A comédia humana em versão mambembe traveste-se na primeira piada. Risos em dó maior. Maledicências em si. Sol de chistes, com seus raios iluministas. Às vezes um espectador dá boa noite, vai embora mal falado e falando mal...

segunda-feira, 4 de maio de 2009

Lendas urbanas

Lendas urbanas são mais do que ingenuidades do povo. A casa da rua Marechal Deodoro, que mal assombra, foi palco de morte trágica. Na coxia do teatro municipal grita o fantasma José Carlos Chaves Gouvêa, que de tanto shakesperiar o chamavam de Ramiléte. O bosque da praça central, o Solidão, guarda um anjo, ladrão de corações. Onde hoje é padaria, ali na esquina, foi um cemitério pequeno, porque o amolador de facas da época só enterrou o casal e os seus oito filhos.
No quinto andar perdemos o contato com o solo. Não pisamos cadáveres, nem remexemos ossos. Mal sabemos se aquele romeu amava dona Zéfinha, se ela lhe deu motivos ou se foi puro ciúme banal. O jornaleiro gritou muitas manchetes macabras sobre os dois, e sempre que aperto o botão do térreo, ouço um singelo: “você não tem razão para fazer isso”.

domingo, 3 de maio de 2009

Desde que queimei a língua

Desde que queimei a língua com a sopa de Eduarda não toco violão. Já imaginou cantar o dá-dá-dá-dá-dá-dá-dá, do Hey Jude, com o céu da boca assado? Fazer o quê, sou beatlemaniaco, cara? Se eu não puder tocar obras completas, paro as cordas. Ainda outro dia, no clube, um cara me pediu pra tocar Stones, ai, dói quando eu falo o “to” dos S...nes. Sacou, né? Pois é, sabe o que eu fiz? Crueza e ímpeto, mano. Mandei o cara ir procurar os mick jaggers dele na casa da Eduarda. Disse que ela tinha todos. Ah! Mas mandei que ele fosse na sexta-feira. Ouvi no rádio que vai fazer um frio de lascar no final de semana. É quando a Eduarda faz sopa...

Tinha aquela coisa

Tinha aquela coisa que nasce e cresce. Não era saudade, uma roseira ou doenças provocadas pelo ciúme. Tinha algo de espreita. De memória do prazer.
Puxou a toalha um pouco mais pra direita, e fingiu afundar a cabeça no travesseiro de areia. Então olhou de esguelha. E pensou nos olhos oblíquos, no través, no soslaio, quase Machado de assim. Mas a sensação era a da areia aquecida. Enternecida pela satisfação de um calor que vinha de ambos os lados: dela, mineral, e de dentro dele, animal.
A moça não lhe via. Bronzeava-se ao lado sobre a toalha florida, roliça, com sensualidade displicente. Olhava o mar e lhe desprezava a vista. Ele lembrou da aparição transatlântica do verso da Menina da Ria, do tio e tia Caetano Veloso.
Propício à morte de vergonha, pensou puxar assunto. Quando se ajeitou à prosa sentiu que aquela coisa, assim crescida, seria uma indecência para um começo de diálogo.

sábado, 2 de maio de 2009

Como estátua

Como estátua no parque, em noite escura, fiquei parado. Matando-me de inanição. Janeleiras dos prédios olharam descuidadas. Olharam curiosas. Olharam atentas. Não ouviram, de longe, o primeiro rugir do estômago. A nostalgia da pizza. Ausência do bife. Pesar pelo feijão. Saudade dos cremes.
Senti um vinco azedo na testa, como nas más digestões. Vieram para demover-me, os beija-mãos, falastrões e entediados diplomatas de rua. Cigarro à boca, o bêbado me imitou capenga. Amor à solta, tal o riso, a puta zombou. O engraxate só pensou no êxito do negócio iminente. E surgiu Maria de algum bastidor do céu. Declamou uma ode à feijoada, repleta de citações da pele, da carne, já seca. Foi embora, mas voltou depois, com caçarolas e caldeirão fumegante. Aquele cheiro de velhas reuniões com amigos.
Nos casamos, mas dizem que ela é louca.

sexta-feira, 1 de maio de 2009

Afeiçoava a casa

Afeiçoava a casa com suor e sentimento. Caiação branca, roseiras amarelas. Uma paciência capaz de levar aos sonhos incuráveis doentes de insônia. Diziam que era estranho. Pouco afeito às tagarelices dos bares e muros. Habituado ao sim. Cordato como um penitente, prudente, tal velhinho ao volante.
Num domingo, pela manhã, a vida fugidia revelou-se surpreendente. Com Sara, a vizinha, sob a mira de dois revólveres, assaltantes lhe adentraram a casa, derrubando mesas e harmonias. No chão, passivo, ouviu sirenes e gritos. Não se mexa. Não se mexeu. Com a delicadeza dos sábios, levantou os olhos acanhados rumo ao assaltador mais nervoso, e suplicou baixinho: “enquanto o senhor mata a Sara, não se importa de eu ligar a televisão? É que há quase trinta anos não perco o Globo Rural”.

Perdido no tempo

Perdido no tempo, não clicou “pesquisar” para saber se Macunaíma era um livro, uma música ou um filme. E não poderia ser um óleo sobre tela? Achou o silêncio como resposta à pergunta amarga da doce professora de literatura brasileira.
Pense nos manos Maanape e Jiguê, Orivaldo Cleison... Pense em Ci... Pense na pouca saúde e muita saúva, os males do Brasil são... Pense no gigante Venceslau Pietro Pietra...
Orivaldo Cleison coçou a cabeça, preguiçoso. Tremia. Vinha dando horas de tanta fome. Principiou um choro. Fremindo de esperança, soltou a matraca:
- Aí, Prófi, os manos naum chama esses nome estranho, não. Num sei direito essas coisa de nota de música, si, si, sei lá, sol, to fora. A vó Linha fala mêmo que não tem saúde no postinho, mas tem saúva no terreiro do barraco. Agora gigante, gigante mesmo é o cachorrão do Paulinho da Boca. A senhora precisa ver...