domingo, 28 de fevereiro de 2010

Sobre o silêncio

Sobre o silêncio Sandoval sabia bem. Filho de mãe muda, nunca ouvira bilús-tetéias ou “de quem é o bebê da mamãe?”. Aprendeu o apreciar maternal. Os gestos de algodão e os olhares de fogo. Os sutis mimos da expressividade.
Contrariando as teorias freudianas, casou-se com Maria Sílvia, de loquacidade à beira da matraca. Tagarela crônica. Mulher de tantas contrações e trejeitos faciais, que tornava impossível ao silente Sandoval avaliar-lhe as elucubrações.
No começo houve um engodo manso. Maria Sílvia era do tipo “me chupa”, que se apresentava lenta, com o cacarejo suave das galinhas adormecidas. Quando se deu conta, Sandoval já havia marcado o casamento e convidado a família. E os cocoricós tornaram-se mais efusivos. O mal de Sandoval foi deixar-se levar pelo atordoamento daquela explosão de falas. Nem reparou que a mãe, quieta em seu canto, apenas balançou a cabeça de um lado para o outro, com uma negatividade mínima.

sábado, 27 de fevereiro de 2010

Dei conta

Dei conta da besteira quando o Hugozinho chorou. Eu estava colocando o negócio para gravar a novela das oito, que naquele dia não poderia assistir, porque tinha os cabelos para pintar. A festa seria às dez.
No começo achei que o Hugo Augusto, meu marido, estava com o filho no quarto. Depois vi que falava ao telefone, empolgado mas bravo, sei lá com quem. O tempo voa nessas horas em que a gente tem pressa. Tudo eu, pensei. E o tal barulho não parava. Parecia um chiado, assim, uma chuva, uma seqüência de pequenos estampidos que só aumentava com os minutos. Ah! Alguém tá de sacanagem comigo, só pra me atrasar. Nem me toquei que não havia mais ninguém em casa: só o Hugo, o Hugozinho e eu. E o porquê daquele som talvez fosse galho raspando, um cedê riscado, uma distração desses aparelhos que zoem e zuns. Até que veio o cheiro! Aspirei surpresa, porque não havia nada no fogo. Fogo? Procurei cafungar melhor, puxei ar, puxei ar e ai, deveria ser fogo mesmo. Quando vi a fumaça tomava a sala. Gritei pro Hugo, joguei os cabelos e ouvi aquele choro agudo. Mal dava pra subir as escadas do sobrado no meio das labaredas. Urrei de raiva e agonia, o chorinho foi sumindo, até que parou. Veio aquele cheiro, vieram os bombeiros, veio o remorso, doutor. Só sei isso.

sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010

Não havia bolas

Não havia bolas para seus oras. Tamanho era o desprezo que causava nas pessoas que, talvez pelas unhas sujas e o nariz às bicas, um simples perdão que pedisse por uma escapadela de ranho ou uma tosse no rosto já era motivo para um “vá se catar!”. Eduardo era errado na essência. Vítima de uma estupidez sem cura. Uma coletânea de retardos com o dom da fala e pernas caminhantes. Aqui e ali era visto às vezes.
Por caminhos confluentes, a um pândego destino comum, conheceu Izabela. Desconsiderada como ele, talvez pela falta de dentes e os olhos às órbitas irregulares, era, pessoa física, a representação da repugnância pública.
Deram-se aos acertos, flerte desentendido. Deram certo. Doce par no asco externo. Mas ninguém nunca mais duvidou que a felicidade tinha pernas curtas.

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010

Os sobejos da honra

Os sobejos da honra eram as obsessões de Ludmila. Com os pés mirrados de idas e vindas às farras e às missas, criava analogias insanas entre sua postura caótica e os desígnios das virgens nos altares, que com seus olhares retos de estátuas ouviam as lamentações dos pecadores que se ajoelhavam diante de si. Ludmila corrigia os bicos dos seios, como se desse prumo à virtude, para ouvir as falas dos homens que a sabiam fácil na retribuição aos desejos da carne. Com a probidade de uma juíza, sentenciava que sim, que sim, que sim, que acataria cada cantada, por mais reles que lhe parecesse. Puta na retidão dos propósitos, não imaginou a teia lógica do amor de Filadelfo. Chorou sem fim, sem lágrimas ou lamentações ambíguas, quando o rapaz desferiu-lhe o primeiro tapa. Resignou-se ao segundo. E, enfraquecida no terceiro, por fim expiou seu desejo mais íntimo. Fechou os olhos perpassados e deixou sair um grito incontido: “me chama de sua nega!”.

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

Na encenação

Na encenação da paixão, Cristiano Clemente, que interpretava o papel de Jesus, anunciou sua renúncia no último ato, quando já se encontrava fixado à cruz. Recusou-se a ser o filho e muito menos o Deus. Pôs-se a dizer impropérios aos agressores, maledicências à platéia atônita e aos desengonçados atores, vestidos caoticamente de judeus e cristãos. Desceu da cruz, no parque público, para de dedo em riste indagar os espectadores, um a um, sobre o interesse oculto que tinham em assistir à desgraça alheia. Os dois PMs que faziam a segurança não ousaram iniciativas. Prender o Cristo? E só o fizeram por incitação popular. Já na porta traseira do camburão Cristiano Clemente pareceu tomado novamente pelo espírito do personagem que lhe fugira. Sereno, olhou para céu, abriu os vastos braços e clamou com a sinceridade de um santo: “ta vendo, Pai, eles continuam não sabendo o que fazem!”.

terça-feira, 23 de fevereiro de 2010

Procedeu mal

Procedeu mal, arrependeu-se e prometeu comportar-se bem na próxima vez; se cumpriu ninguém sabe, ninguém viu, porque se mudou da cidade. Disse ter feito um poema religioso, acusaram-no de má-fé. Disse ter amado muito todas aquelas pessoas, foi taxado de promíscuo. Não havia moral disponível ao próximo passo. Seria errante. Erradio nos erros pelo mundo afora, mas encontrou a seita, perdida na mata ali bem próxima. Um jeito, enfim, de arrumar o mundo com seus gestos. Subiu de fiel espectador a sacerdote, promovido. Passou a oficiar funções nas sessões: espécie de magia, cultos ou sabe-se lá qual missa. Quem da cidade o viu fez logo o sinal da cruz. O exilado cresceu. Caridade, amor ao próximo, cordialidade, seriam decisões que viriam tarde. Eliminá-lo, talvez fosse prudente. E a cidade procedeu mal, sem arrependimento. O homem que não era nenhum santo foi dizimado numa emboscada certeira. Ninguém soube ou sabe, ninguém ouviu ou viu. A cidade permaneceu onde sempre esteve.

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

Não quis descrever

Não quis descrever o bode porque, quando o olhou bem, sentiu receio. Aquilo era a própria negação da bondade dos mamíferos. Um par de chifres, olheiras azuladas, orelhas em traço reto com os olhos e, o pior, uma barbicha satânica. Pediu à professora para falar de um bicho que ao menos andasse em manadas, e que não tivesse bagos tão enormes. Até de um touro falaria. Um urso ou cão sem dono, mas bode? Esse bicho parece não ter medo de nada. Isso assusta. Ainda que fosse obrigado a descrevê-lo, por imposição da mestra, jamais poderia dar-lhe as costas.
Essas visitas monitoradas de crianças urbanas às fazendas sempre acabam em traumas, marcas de arranha-gato, carrapicho nas calças, picadas de bicho estranho, febres e coceiras súbitas. À Alicinha coube falar da galinha, que apesar da cara de espanto não carrega aquele ódio oculto. É meio passada, a coitada. Mas do bode ele não falaria, não, depois nem dormiria. Já viu como ele disfarça, mas está sempre olhando a gente de viés? O diabo, amigo dele, que o carregue. E, se quiserem, que contem lá, juntos, seus ardis e mistérios.

domingo, 21 de fevereiro de 2010

Outra bunda

Outra bunda se apresentava em ronda à ponta da passarela acesa.
- Medindo um metro e setenta, com um e vinte de pura emoção, a candidata Rosicleine Carolaine é bailarina, modelo e atriz. Faz faculdade de pedagogia na Uniúnica e trabalhos fotográficos para a revista Ela T. (Aos gritos) É a candidata favorita da turma da escola Fundãããão de Ouro.
Hêhêhê. A galera aplaudiu e bateu firme nas cadeiras de lata. O desejo ancestral de voar tomou conta de Rosicleine Carolaine. A vitória haveria de ser dela. Lutou por isso. Subiu três vezes, todos os dias mês, as escadarias da Igreja da Penha. “Tô cheia os steps, pensa o quê?”. Dispensou a polenta da mãe, brejas e espetinhos do tio Alcides, sorvetão do Carlão Love, só “pra manter esse corpinho”. Também fez promessa, é certo, nunca mais sairia com Duda – velho pedido da avó, caso vencesse aquele concurso. Por via das dúvidas, cruzou os dedos na hora do pacto com a Virgem. Foi seu mal. A vencedora anunciada foi Daiana do Carmo: mulata com mais de um metro e trinta. Triste a abatida, Rosicleine Carolaine desceu do palco, para fazer tudo o que não devia.

sábado, 20 de fevereiro de 2010

Os jumentos resolveram

Os jumentos resolveram mandá-lo à festa dos cachorros. Julgavam Essão, o tigre, um inconveniente contumaz àquele convescote animalescamente feliz. Ocorre que Essão era um fóssil no comportamento, apesar da agilidade felina em se dar bem nos ambientes hostis. Foi, mas levou consigo Marinara, a jumenta-rainha, uma espécie de deusa-burra, por seus trejeitos e simpatias soltas. E a festa acabou-se.
Revoltado, como se zumbisse feito as inconvenientes vespas, Pedrego, o muar-mor, zurrou por bem reconvidar o desagradecido tigre, ainda que lhe doesse as orelhas de pelo duro e audição enviesada.
Manso e falso, indolente e lânguido, negligente e sabidamente inteligente, Essão cruzou sozinho o salão de alfafa. De boa, de volta. Fez que não sabia que o interesseiro convite era extensivo à jumenta Marinara. Ronronou desprezo, tangiversou boas vindas e desfilou uma altivez ignorante à pretensão desentendida. Quando Pedrego aproximou-se, para perguntar-lhe pela jumenta ausente, antecipou uma indagação besta e canalha: “vocês tem aí outra fêmea?”.

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010

Desvairado e mal

Desvairado e mal pago, Demétrio quis livrar-se, enfim, do inconveniente jugo de Pedro Ernesto, dono da indústria de móveis onde trabalhava. A oportunidade não poderia ser melhor. O patrão sempre lhe fora tosco: nas ações e impropérios. Demétrio dependia do emprego. Chegava a engolir sapos às dúzias para mantê-lo, até aquela ligação... uma loteria.
Com enlevo e arrogância dirigiu-se à pomposa sala do empresário. A tentativa da secretária guardiã de solicitar-lhe que marcasse um horário para falar com “o Senhor Pedro Ernesto” foi francamente inútil. Demétrio avançou sala adentro, sem sequer bater à porta: - Olha aqui, seu Pedro de bosta, de hoje em diante eu não preciso mais dessa sua mesquinharia e de ouvir suas merdas ou destemperos. Aliás, quem vai fazer a merda, hoje, sou eu. Demétrio arriou as calças e defecou no sofá de couro da sala do patrão, pisou na obra e saiu pulando sobre as cadeiras, até desenvolver um sapateado flamenco sobre a mesa do homem.
Já deixava a empresa, cantarolando, quando Zezão, seu colega de trabalho, confessou a brincadeira: - Olha, quando eu te liguei agorinha e disse que havíamos ganhado aquela cartela da mega-sena estava mentindo, viu? Não leve a mal.

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

Os buracos executados

Os buracos executados pelas brocas da furadeira não se conciliam com seus futuros parceiros, existentes no suporte de ferro do relógio suspenso. O tempo nunca foi sólido mesmo, mas os bufos de raiva, sim, são gasosos e, o suor, definitivamente, líquido. Desde que me meti a instalar esse objeto na parede vislumbrei, orgulhoso, o resultado final de uma decoração utilitária. O projeto previa a visão de horas alegres, sem nenhum segundo de ajustes ou infindáveis minutos de tédio.
Com o passar do tempo, verifiquei um aumento expressivo da taxa de ira. Chaves já causavam fendas na razão. Parafusos rosqueavam ódios submersos no reboco frouxo da prudência. Comecei a invejar a competência profissional dos fanáticos que crucificaram Cristo, prego a prego, e fizeram com que Ele não caísse da cruz. O diabo era que a minha incompetência se avolumava, e o relógio continuava a rodar seu ponteiro de segundos, como se risse em círculos de minha inabilidade. Parei às oito para as dez. Oito valas no reboque para as dez tentativas insanas de afixar aquele relógio na parede. No dia seguinte contratei um pedreiro para cobrir os estragos. Ele, espontaneamente, instalou o relógio, num minutinho.

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010

Enquanto houver

Enquanto houver perdão não há pecado. Heitor cantou, como todos cantam Ataulfo Alves, com a nostalgia em riste. Mas era música do pai. Infância, passado de coisas. Arroz doce diante do Flash Gordon das duas da tarde. E a dificuldade de concentração contaminava a caligrafia. Então se lembrou da palavra “quimera”, porque sim. Difícil Arlete, que nem vira o astronauta descer na Lua, entender aquelas inutilidades grudadas umas às outras. Talvez devesse tentar um e-mail, um torpedo ou encher-lhe de abreviações no emeesseêne. Aí, sim, teorizaria Arlete na comunicação: emissor – mensagem - receptor.
“Se eu pudesse, e se meu dinheiro desse, eu te dava sem pensar essa terra, esse céu, esse mar”, Heitor pensou com o desespero voluptuoso dos comerciantes falidos de amor. Não, Arlete, bolinha de gude, não estava à venda. Seria preciso ganhá-la no jogo. E todo difuso, Heitor lembrou-se que sempre fora o último escolhido nas peladas do futebol da vila. Arlete haveria de viver sob sucessivos indultos. Melhor assim.

terça-feira, 16 de fevereiro de 2010

O guizo nas palavras

O guizo nas palavras de Jovita anunciava desgostos mal cicatrizados. Rosalvo, enfim, se apresentava. Exceto durante os oito anos na cadeia, nada parecia detê-lo. Sorria com toda a frieza permitida por seu rosto redondo. O pecado mortal morrera para ele há anos, e sua provisão interminável de lembranças nem dava conta do duplo assassinato cometido nos outros tempos. Jovita avisava visionária: “sua fábrica de maldades ainda está com a produção a pleno vapor. Vai arrumar jeito de me perder para sempre”. Ele ria, com o escárnio dos presunçosos. Ela desperdiçava firmeza na previsão.
Rosalvo saiu apressado. O ruidoso batido da porta soou como estampido comemorativo de uma estupidez iminente. Vingar-se a tiros do juiz que o condenara foi apenas uma imprudência, perto da barbaridade que cometeu com o promotor do caso e todos os que estavam em sua casa de campo. Jovita repete insana que Rosalvo morreu para ela. O cotidiano absorve as paixões vulgares. Ele continua desaparecido.

segunda-feira, 15 de fevereiro de 2010

Ouviam-se passinhos

Ouviam-se passinhos ágeis no súbito silêncio. Entrar naquele quintal, à noite, causava uma impressão similar a de quem fica pronto antes da hora, ansioso pelo que virá. Sabiam, sim, da existência do cão, mas não se furta um destino sem correr riscos. Obtivessem sucesso, e o diário que sabiam existir no quartinho dos fundos, onde Gustavo Douglas sempre dormia depois dos crimes, haveria de revelar-lhes todo o mistério da morte da Aline.
Dona Glória assistia a cena da novela com o assombro das virgens ao primeiro sexo. Cutucava o ressonante Esperidião, que não ligava mais para as coisas desse mundo, mesmo que fictícias.
O dobermann endiabrado recebeu um close nos caninos superiores, a música subiu, o casal de mocinhos gritou, Dona Glória finou-se.Naquela noite, Esperidião dormiu no sofá. Acordou sentindo algo diferente na decoração da sala. Sim, sua Glória. Ela estava ali, como nunca esteve.

domingo, 14 de fevereiro de 2010

Atropelado, o casal

Atropelado, mas não muito machucado, o casal de mudos, sempre alegre, viu-se na tristeza. Como na promessa que ambos fizeram ao padre, em língua de sinais, por ocasião do casamento. Também constava que ambos estariam juntos na saúde e na doença, o que lhes pareceu certa redundância. Aflito, mesmo, ficou o policial encarregado da burocracia da ocorrência. Como as vítimas não falavam, não sabia como registrar o fato.
Nomes? Ummmmm. Endereço? Aummm. O mal da burocracia é que não admite imprevistos. O pobre soldado suava, esmurrava a mesa e lamentava a falta de sorte: “bem no meu plantão me aparece uma dessas?”. Com a inquietação das abelhas próximas às suas colméia, o homem pensou em prendê-los, por indigência, mas os coitados, afinal, eram os pacientes daquele pronto-socorro. O suplício durou até passar pela rua a Adélia que, para a alegria geral, falava e sabia a língua dos sinais. Detalhou cada necessária informação para o boletim de ocorrência, perguntando com gesto às vítimas. O policial exalava encantamento, quando se deu conta de outra questão de ordem burocrática. Quem havia prestado as informações? As vítimas ou Adélia, que ninguém nem conhecia, e não vira o atropelamento?

sábado, 13 de fevereiro de 2010

Aquele zoológico

Aquele zoológico tinha a irrepreensibilidade do doutor Leon Adamâncio, o severo diretor, que tratava os bichos, zeladores e servidores com a autoridade de um monarca. Saíam dele as ordens expressas que proibiam as crianças de correrem pelas alamedas, os velhinhos de tossirem nas proximidades da jaula dos sagüis ou todos de soltarem gazes nas áreas de exposição. “Não atirem macacos aos leões”, “Não joguem crianças aos tigres”, “Cuspa no bolso”, também se podia ler nas placas dali. Como o ser humano se acostuma rápido com o insólito, o despotismo de Leon Adamâncio teria passado anos desapercebido, não fosse sua disposição de mandar enjaular uma freira que, na companhia do vigário da paróquia, em visita ao zoológico, fez o sinal da cruz ao presenciar a cena de acasalamento das onças pintadas. Leon rugiu de ira, pois aquele movimento diminuto da mão da religiosa poderia distrair o felino macho, e induzi-lo a esquecer-se da função que praticava. A Igreja, é lógico, criou um problema de Estado, e Leon Adamâncio foi exonerado de sua soberania, a bem do serviço público.

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2010

Poder de fogo

Poder de fogo tinha a velinha que iluminava os búzios. Queimava por desdém. Aparentemente sem precisão ou sacrifício. Mas os olhos causadores de deuses de Estefânia, consulente, quase que brilhavam mais. Via-se neles um além-pupilas, depois da concentração cega em cada uma das conchas que Mãe Ivone lançava com mãos em transe: - Você não gosta de mar? Quer que eu te conte um sonho? Ainda pensa em se casar com aquele moreno? Sente dor nos braços quando começa a escurecer à tardinha?
Estefânia somava respostas; apreensões em números absolutos; dividia desejos; multiplicava intenções. Mãe Ivone mantinha a ciência da fé no cálculo ajustado das respostas. Não há bruxaria nos números que resista à disciplina dos santos em êxtase. Sem se surpreender, Mãe Ivone fixou imperativamente a moça: - Você precisa escrever pra ele agora. Pegue aí o lápis. Estefânia tremeu: - Nem sei o endereço, Mãe Ivo.... A velha bateu na peneira que sustentava os búzios, uma concha aberta e quinze fechadas desenharam-se no tabuleiro: Exu. A velha meneou a cabeça: - Nem adianta. Acabou sua hora!

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2010

Inibida pelo sucesso

Inibida pelo sucesso que ambicionava, como uma estudante modelar na hora no exame, era na valsa que ela levava a coisa. Jamais lera um único livro para corrigir sua vida conjugal, dirigia o fusca sem cinto, fumava na sala de visitas, esturricava-se ao Sol do meio-dia com a caipirinha de vodca à mão, chamava o coxo de coxo. Nada lhe era proibido por lei ou por orientação médica. Uma flor da autenticidade, sobre a qual caíam sombras e chuvas. Sua intuição acertava na mosca, mesmo quando mirava ao léu.
Indecisa quanto ao que escolher: sarro, seriedade, amor ou desprezo, ouviu o porteiro repassar-lhe as ordens do síndico para que não andasse nua pelo apartamento, porque havia outras torres ao lado de seu prédio. Com uma leveza artificialmente doce, disse um “não fode” tão convincente, que o pobre se reportou ao patrão tudo aquilo que entendera da resposta: “ela me mandou comunicar-lhe que, no momento oportuno, não desrespeitará mais nenhuma regra do regimento interno”.

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010

Fala aos arrancos

Fala aos arrancos, bebe aos trancos e depois dorme, para acordar doloridamente lúcido e perplexo. Foi num desses momentos de inteligente condescendência e severa brandura que Olegário pensou em se auto-proibir do uso do álcool. Procurou a psicóloga, a assistente social e dona Diva, a mãe de santo, mas sempre havia uma esquina pelo caminho e, nela, um bar.
Em estado de semi-sono, quando as fantasias da alma começam a perseguir umas às outras, pensou em castigar-se de maneira oposta à do seu pecado. Decidiu beber a fonte, que decorava a praça central do pequeno vilarejo onde morava. Deitou-se de bruços e, com as mãos em concha, virou uma talagada daquela água de potabilidade suspeita. E outra, e muitas. Mas o frenesi compulsivo fazia com que não parasse, como se fosse possível engolir um mar. Os que viam formavam roda, afogavam risos e comentavam alto, até a chegada de Mariano, o policial, que decidiu eximir Olegário do ridículo. Fez respiração boca a boca, compressão cardíaca, abriu espaço à ventilação. Olegário logo retornou à realidade. E a realidade exigia um bar.

terça-feira, 9 de fevereiro de 2010

Lambuza com groselha

Lambuza com groselha depois vem pedir fatia. Sabe que eu odeio doce. O preço de meu descanso é um belo salgado. Quanto muito, neutro de gosto, como esse pão. Mas não. Quer sempre cobrar açucarados pedaços da minha pouca paz disponível. Dulce é assim, dulcificada. Desmonta um muro com seus lábios de mel, melosa até as sardas, viscosa.
Dou um duro danado por essa sem sal, e ela adoça. Talvez sirva de sonho aos homens presos nas celas, para mim é encosto superlativo. Rapadura, ambrosia, quindim, sei lá. Formiga sem ferrão é que ela não vai ter. Comigo, não. Não sou de fomentar glicoses. Sou homem de salgar cafezinho, temperar manjar ou jogar sal grosso em trufas.
Ah, Dulce, você não imagina, mas entre o sopro da minha boca e o nó que carrego no peito ainda hei de fazer de você uma charque ou uma bacalhoa. E nem pense que vou te deixar de molho na água corrente. Que esperança!

segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010

Depois do raio

Depois do raio os sonhos de Orlando adoeceram. A descarga nem lhe abrasou os desejos, mas passou a sentir constantes e inexistentes moscas que pousavam no canto de seus olhos, na saída do canal lacrimal e também na comissura dos lábios. Ficou desnutrido e andrajoso. Só o pó, ainda que a faísca não tivesse chegado às vias dos fatos.
Por uma coincidência idêntica conheceu Tosta nas ruas, na verdade Cláudia. O apelido ela só ganhou depois de expulsa da casa dos tios, e não foi sem motivo. Estava com os pais, quando a fatalidade se deu, também por um raio perdido. Órfã, levava o irmão à escola rural quando recebeu o segundo fulmíneo. Sozinha no mundo perdeu o juízo e os tios, que se recusaram ao risco de permanecerem ao lado dela.
O pavor à catástrofe uniu os dois corações partidos. Orlando vinha da direita, ela, na diagonal, mas uma eletricidade súbita fez com que suas mãos se juntassem para atravessarem a rua. Próton e Elétron. Adão e Eva. E o raio nunca mais caiu no mesmo lugar.

domingo, 7 de fevereiro de 2010

Descrença é o que há

Descrença é o que há de melhor para a crença, Divino disse. No “uai, por que compadre?”, com que Hermógenes quis explicação, foi logo palavreando tim-tim por tim-tim: “Veja, quando o descrente teima com você, coisas contrárias à sua crença, é que ela cresce em você, no fervor”. Hermógenes fez sinal de concórdia com a cabeça, e os dois continuaram a rezar, na capela sem portas do bairro do Mato Dentro.
Teria sido acaso se não fosse zombaria, Bastião passar ali, bem naquela hora, e lá de fora, debaixo do chapéu e sobre o cavalo, gritar para os dois compadres ajoelhados ao pé do altar: “Ê, vocês dois, a maneira mais fácil de Deus entrar numa pessoa é imitando o diabo, que já estava lá, dentro dela, antes Dele”. Foi a conta. Hermógenes piscou para o Divino, os dois puxaram juntos dos revólveres que guardavam entre as barrigas e os cintos. Mais de oito balas furaram todo o tamanho de Bastião, agora pequeno, no chão batido.
- Bom, a gente vem aqui amanhã e recomeça a promessa, meu compadre.
- Feito! Concordou Divino. Ambos saíram lentos, depois do pelo sinal.

sábado, 6 de fevereiro de 2010

O eu-lírico

O eu-lírico era gay, um pouco acima do peso! Transitava os versos com perspicazes intenções, e vertia água, como se suasse um soneto eterno.
Tratava admirado aos homens, até por os bofes para fora, como se as palavras contivessem todo o sentido do esforço pós-sexo, todo o cansaço de um êxtase. Mulheres não tratava. Era convicto. Seria capaz de degolá-las, para curar-lhes de uma dor de ouvido. Não se utilizaria de um vocábulo sequer para contê-las no poema. Cabras expiatórias de versos mancos e rimas pobres.
Crescendo num silêncio fantástico, como aquele que faz crescer uma flor, utilizou chave-de-ouro quando deu-se, enfim, ao amor até então incorrespondido pelo herói imaginário. Feito louco, feito Lorca, gravou este último verso com uma construção extraordinariamente usual, como o pão nosso.

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010

Do tipo bajulador

Do tipo bajulador, conhecia todos os ódios do patrão: os coloridos, expressos por um racismo doentio; e, os sólidos, marcados pela vontade de esmurrar os inimigos. E lá se punha ele, o Heitor, a odiar simultaneamente negros, asiáticos, mulatos e índios. Até o trato intestinal de seu patrão Heitor sabia, de ponta a ponta, da boca ao ânus.
Entrava em trechos de conversas do chefe, sempre com um estimulante “é isso mesmo”, “como eu digo sempre”, “isso, sim, é que é”. Fragmentos, olhadelas, percentuais ínfimos de agrados do seu senhor lhe bastavam, para chegar a um deleitoso estado de dever cumprido. Entendia que o problema das pessoas livres era justamente o fato de não terem noção do valor da liberdade. Submissos não precisavam enfrentar tal problema.
Naquela manhã a fachada da empresa estava coberta por uma neblina densa. Pareceu-lhe até que não havia chefe. Tentou olhar por um vão da vã janela esfumaçada, e nada. Tateou o trinco, e a porta se abriu. Jazia o chefe coberto de sangue, no tapete aspirado na véspera. Heitor soltou um “ó” horrorizado. Chegou bem perto e chutou sem piedade a cabeça do corpo. “Traidor”, balbuciou sem profundeza. Limpou o sapato, e partiu em busca de um novo emprego.

quinta-feira, 4 de fevereiro de 2010

Tão sossegado

Tão sossegado quanto dormir sem sonhos, Demétrio decidiu disputar a maratona porque, afinal, ganhara um par de tênis novos. Tanto na queda da obesidade quanto na loteria é preciso crer, antes de iniciar a empreitada. Começou pela oração: “senhor Deus, concedei às minhas pernas capital de giro”, dado o débito que tinha com a religião. Aprumou ereto seu metro e sessenta, com capacidade sólida de 132 quilos, e se pos a caminhar. Primeiro ao redor do quarteirão, a fim de evitar o esforço sobre-humano. Constatou que os oito quilômetros, do percurso previsto para prova, seriam longos demais, mas havia o par de tênis. E pisou, confiante, extraindo dos calçados pequenos chiados, feitos vozes de súplica ou murmúrios de compaixão. O projeto só gorou porque do pé direito a sola descolou no calcanhar, assim que Demétrio sentiu hábil, no segundo quarteirão, a ensaiar passos de corrida.
Satisfeito, sentou suado num degrau da calçada, arrancou o tênis e felicitou-se, ateu: “eu tentei, mas Deus não quis!”.

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010

Caiu do cavalo

Caiu do cavalo de tanto consultar o pai dos burros. Não sabia que o Cabrera Infante já dissera isso, e quando lhe perguntaram quer conhecê-lo? disse apenas “fim flaro”, com a língua presa, que fempre fubstituía o esse pelo efe.
Era de um pedantismo em êxtase. Apegava-se aos clássicos sempre que as discussões partiam para a literatura contemporânea. Tinha a Ilíade na ponta da língua (como você sabe, presa), sempre disposto a afogar o verbo, ainda que este soubesse nadar em águas bem mais palatáveis.
Pois foi no Sarau de Bia D’Ouro e Silva, balzaquiana benemérita, que decidiu atacar de Sófocles, mais para bufão do que para súdito do Édipo Rei. Ouvintes enveredaram para a sussurrada prosa paralela, jocastas dormiam, creontes gargalhavam discretos, com as mãos sobre as bocas, quando o narrador se irritou, definitivamente, hora e meia depois: “fenfibilidade de fuínos essa que vocês tem”.

terça-feira, 2 de fevereiro de 2010

O aloprado chorou

O aloprado chorou quando a utopia vingou. O mocinho, enfim, beijava a mocinha no final do filme. Potencializado pela ilusão, voltou para casa com os olhos marejados e o cérebro indócil. O escapismo vivido há pouco na comédia romântica tocava-lhe a alma pelo contraste de sua dificultosa relação com Argemira. Como na história do mocinho e da mocinha, ocorrera entre ele e Argemira sucessivas trocas de olhares climáticos. Juntos, passaram por situações de enfrentamento a vilões, como na tarde em que Jurandir pagou o famigerado sorvete de morango à moça; lutaram contra a natureza, naquela chuva que pegaram juntos no retorno do piquenique da igreja; trocaram insultos leves, por ocasião da recusa de Argemira ao convite para a quermesse; mas entre os escombros de tantas aventuras, a história do amor não lhes reservou um final feliz.
Pegou o telefone, e ligou seco para Argemira: “Você assistiu ao filme do Cine Royal?”. Emudeceu, estático, e nem quis comentar mais nada, quando a ingrata disse que sim, mas que não havia ido sozinha...

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010

Atravancou a catraca

Atravancou a catraca do ônibus por equívoco. Errara a condução. Com sua língua de igreja, como uma cantilena melodiosa, arrastou um “por favor, motorista, preciso descer”. Todo o padreco é viado assim? Protestou o obeso trocador, para quem quisesse ouvir e ver o jovem seminarista procurando, ansioso, a porta dos fundos do veículo, vestido de túnica cáqui com um quadradinho branco na gola. “Filho”, insistiu fastidioso o aspirante a padre, “peça àquele homem de Deus que pare essa coisa”. E já ouviu como resposta uma grossa gargalhada do gordo, que contava moedas: “ô Ticão, home-de-Deus, pare essa merda que o padre tá puto!”. Ele que se foda, retrucou o motorista, lá na frente, mesclando resmungos com o barulho ensurdecedor do motor.
Com a lepidez de um anjo, o seminarista saltou a catraca, deslizou ligeiro, desviando-se dos passageiros aglomerados, chegou ao motorista e, num gesto transtornado, puxou o freio de mão, parando o ônibus de supetão. Desceu a escada olhando feio para o condutor... “quem você pensa que é para contestar os designos de Deus?”.