sábado, 31 de março de 2012

Apresente-se

Apresente-se para o suplício. A fila é aquela ali, à esquerda. A outra, da direita, leva à tortura, e é destinada aos idosos e pessoas com necessidades especiais. Esse banco, cliente, é um obstáculo criado para que ninguém retire seu salário, aposentadoria ou pensão sem sofrimento. Vamos entrando. Sou seu gerente. Quer levar um esporro do segurança porque trouxe as chaves de casa no bolsinho da bolsa de napa? Dirija-se àquela máquina, no centro, detectora de justificativas para constrangimento. Reclamações? Enfeite seu epitáfio com elas. A flor é plástico, mané, vá cheirar seus arrependimentos em outra agência...

sexta-feira, 30 de março de 2012

Era de se esperar

Era de se esperar pelo óbvio. Aquela fleuma não era advérbio, mas uma interjeição “enfim”. Só aquilo mesmo, por conclusão, paciência. Assim que o conheceu, Jamile o imaginou um gentleman. Sotaque carregado, grassando pelas palavras em fina alteração de artigos definidores, que mais pareciam indefinir a situação: a amor, o conquista, o paixão, a beijo e até experimentar o dor. O gringo era planeta em órbita do tédio. Uma fachada do nada. Um intocado entocado. E logo pôs as incompetenciazinhas pra fora. Jamile, então, se deu conta da relação estelionatária na qual se metera. Com jeitinho latino começou latindo, rosnou e na mordida arrancou-lhe a ambiguidade. Marcou aquela bunda branca com o pé direito, e foi comer tutu de feijão.

quinta-feira, 29 de março de 2012

Queixa das nuvens?

Queixa das nuvens? Sim, Adréia queixava-se, porque as nuvens a bisbilhotavam. Com frequência, tais queixas eram feitas às pedras. Estas, sim, estáticas e discretas, que jamais deixavam seu lugar no mundo para espionar Andréia, nos momentos em ela saia furtivamente com seu amante Orival. Havia o detetive, contratado pelo marido de Andréia, mas o sujeito era tão indiscreto com seu terno lilás que, descoberto, forçava os amantes a satisfazerem seus impulsos nos banheiros de bancos, armários de produtos de limpeza ou sob as mesas do curso de bricolagem, que Andréia frequentava com o consentimento do esposo. Houvesse um sentimento que Adréia jamais admitiu possuir e seria o de mania de perseguição. Mas quem estaria interessado nisso? Exceto o marido...

quarta-feira, 28 de março de 2012

Isso não está

Isso não está acontecendo! Ele falou consigo mesmo quando os larápios circundaram seu conversível. Pensou em erguer os braços, mas temeu que o gesto pudesse chamar atenção e enervar ainda mais os dois motociclistas e seus garupas. Tocar no porta-luvas, nem pensar. Pediu a Deus um jeito de fazê-los entender que entregaria tudo o que pedissem, sem desconto ou pechincha. A disposição da cena lhe favorecia uma arrancada veloz, mas pensou que estaria forçando uma tragédia. Desperto ao ápice, porém com a lentidão dos lerdos, pediu calma. “Calma!”, berrou no pensamento. E manteve a calma, como no pedido. Os quatro riram invasivos. Até que o da direita ergueu o capacete e, com olhar irônico, perguntou a ele se sabia onde ficava a padaria mais próxima.

terça-feira, 27 de março de 2012

Ou minha alma

“Ou minha alma está louca, ou não tenho alma”, autodiagnosticou-se André, parafraseando coisas de Foucault. Entre convulsões e insensibilidades diversas, o rapaz cismou que havia morrido há uma semana, mas sofria dessa pequena peleja com a alma, que se recusava em deixar seu corpo à deriva nesse mundo. O psiquiatra não riu, e foi pior. André entendeu que nos casos de morte não se deve mesmo rir à toa. Tinha no fundo do olho aquela dor, causada pela percepção sutil da luz solar. “Morte é treva, doutor. Quando fecho meus olhos e acordo só à noite, estou curado da dor, mas não da morte”. À sugestão do médico de uma internação, André considerou-a desnecessária, pois seu plano mutuário para velório, enterro e túmulo estava em dia. Fosse o caso, e o melhor mesmo seria acionar um advogado, para intimar a empresa fúnebre a cumprir aquilo que rezava o contrato.

segunda-feira, 26 de março de 2012

Dei de ser

Dei de ser outro. Sempre desejei não declarar e foi a conta. Boca de siri, rolha, um túmulo. Voz do silêncio. Sabe que é melhor assim. Veja você, o delegado, sutil como um morcego de sótão durante o dia, queria que eu lhe contasse da tia Diva. É, da Divina, minha falecida tia – que Deus a tenha. Insistia em querer saber por que eu fui o primeiro na corrida do testamento, em que todos os parentes ficaram para trás. Eu, eim? Depois quis saber da visita que fiz à velha na véspera do acontecido. Por que não chorei?, essas coisas... Xereta ele. Mas quem morreu primeiro foi o tio Cláudio, justinho um mês antes da morte da irmã. Não contei nada pra não dar o que falar.

domingo, 25 de março de 2012

Vida campesina

Vida campesina e seus bucolismos. A maledicência voando, de fofocas em fofocas, como pássaros silvestres. Vizinho de cerca interessado em pular a cerca com a vizinha de cerca, feito carneirinhos contados, antes do sono. Desejos mútuos de colheitas fracas ou quem sabe uma geada apenas do lado de lá: o campo branco de névoa e o preço da terra, de repente, baratinho pela quebra. Tramas de pragas, simples, tal colcha de retalhos de tecidos capazes de levantar coceiras. Mas muita camaradagem, na necessidade. Um cafezinho coado à hora, biscoitos quentes, doces de leite e sidra. Na precisão, o conforto. Nenhum despropósito, a propósito.

sábado, 24 de março de 2012

Coram-nos

Coram-nos essas ações de Délio. Quando saímos com ele, o sujeito mais bonovox que conhecemos, nos disfarçamos de árvores. Simbiose de aparências, para que o ridículo nos fosse leve. Aquela mulher lavando a calçada, por exemplo, foi cilada. Nália a deve ter plantado ali, talvez até aberto a torneira, pois sabia que aquele era caminho obrigatório de nossa ida com Délio ao restaurante vegetariano. Palavrórios pândegos, não fossem ofensivos. Délio destratou a dona com um discurso preservacionista de horas. E nós, ali, ouvindo que o mundo morreria de sede. Mal saímos do mico, os três rapazes estavam metros à frente, fazendo churrasquinho na varanda voltada à rua. Coisa de Nália, sem dúvida. Délio os chamou de assassinos de bichos. Claro, deixamos Délio e suas belicosidades. Acreditamos em tudo, mas no fim do mundo já é demais.

sexta-feira, 23 de março de 2012

Querer bem

Querer bem que queria o beijo, mas com qual desejo? Porque, na rave, não achava os rumos, perdida na batida oca dos pressentimentos rítmicos. Deu os lábios ao bebedouro próximo, e sorveu o líquido com arrebatamento, como uma anã sobre uma escada alta. Passou a enxergar as prósperas bocas: ressecadas, carnudas, molhadas, omissas. Pediu licença ao seu recato, benção à libido, compaixão à margem de erro. Fez que fazia uma ideia e deixou escorrer os gestos. Aos estalos ou aos âmagos das línguas, beijou, beijou, beijou. Detrás dessas superfícies, decidiu que sim, que assim mesmo, fosse como fosse, haveria de acertar. Babou com urgência, se limpou com cisma e tomou mais um uísque, sem acusar a vida de negligente ou vazia.

quinta-feira, 22 de março de 2012

No começo foi

No começo foi o fim. Assim, trocadilhesco mesmo, porque foi hilário. Falta de equilíbrio, meio que gole de xarope, quase copo de cachaça ou outras drogas. O costume é que mudou tudo. Virou quase um vício. Não consegui mais ficar sem aquele ar, vento no rosto, brisa fresca. As pernas foram pouco a pouco endurecendo. Os músculos pediam. A alma? Essa não vivia sem. Hoje chego a passar horas. Manhãs inteiras. A coisa é tão envolvente, que já comprei a segunda bicicleta.

quarta-feira, 21 de março de 2012

De jeito nenhum

De jeito nenhum! Não fico mais. Vou terminar com aquele traste. Nos últimos três anos, desde que comecei a namorá-lo, só fiquei com uns cinco caras, acha? Trigo tem medo de água, porque incha, engorda, eu eim? E ele ainda folgou: eu dava cama, comida e até nesaldina colocava na sua boca, quando estava de ressaca, largado, acabado. O que eu ganhei em troca? Uma prisão domiciliar. Nem tão caseira assim, porque íamos nas festas juntos, enchíamos a cara juntos, vomitávamos juntos, comíamos a grama dos jardins juntos, quer mais amor? Minha mínima disposição tem um tanto.

terça-feira, 20 de março de 2012

Três das vinte

Três das vinte e cinco nuvens tinham um tom mais cinza. Duas apresentavam pontas irregulares, pouco ovaladas. Quatro pareciam querer fugir daquele céu, sabe Deus para onde. Cinco formavam um conjunto quase simétrico. Quase, por causa daquela que se elevou um pouco além, à direita. Apenas uma, inconformada, não parecia dar bola ao “bando”, esparsa como um avião, que há muito não passava por aquelas bandas. Naquele fim de mundo, a profissão de Severino era acender as luzes dos postes da fazenda, para quando o patrão cismasse em chegar à noite. Há dois meses, treze dias e nove horas que ninguém aparecia por lá.

segunda-feira, 19 de março de 2012

Despropósito

Despropósito foi bancar o investigador. Bem que poderia ter deixado de lado. Perpetuou uma certeza, cuja magia estava justamente em não saber ao certo. Essa mania de devoção à precisão resulta nisso. Ai sai praguejando a vida, coitadinho, sofrido, humilhado, essas coisas. Ela já havia sido substanciosa. Com volume e abundância que possibilitava tudo. Os prazeres que lhe proporcionou foram incontáveis: viagens, restaurantes finos, ótimas ocasiões e até, de certa maneira, sexo. Pra quê mexer com o inevitável? Quando começou a gastar desenfreadamente bem sabia que toda essa maravilha poderia acabar. Não foi por falta de aviso. Conselhos de amigos e até sugestões, assim, de soslaio, ele ouviu. Agora, depois de tudo isso, ir ao banco e tirar um extrato logicamente era querer saber demais. É claro que o limite do cheque especial de sua conta estava estourado!

domingo, 18 de março de 2012

A estampa

A estampa era de onça, Juraci se portava tigresa. Não era bem um baile, porque já não havia bailes. Convescote? Esse, então... Era um desses acasos ubíquos que reúnem os dilemas e as vaidades de cada um. Juraci, sólida no salto, fez olhos de ver por cima, mãos que não se cabem e movimentos lentos. Ouvia como pedra, sem dizer suas opiniões. No decorrer, decorria. Resignava-se em respirar fundo, às vezes. O óbvio das falas parecia lhe entediar, mas não tinha outro compromisso e ficava como uma sósia de si mesma. Quando chegou Humberto, algo possível, já não tinha animo. Infausto consumado. Guardou na bolsa o leque de rosas e disse um boa noite formal, quase imperceptível. Juraci parecia jamais ter existido, não fosse a estampa de onça.

sábado, 17 de março de 2012

A obra da solidão

A obra da solidão Ondina nunca chegou a ficar pronta. Chamava por nomes os tijolos, por apelidos os cimentos, por pseudônimos os prumos de nível. Valia-se dos desvios para nunca deixar clara sua condição de viúva. Misturava datas às argamassas, amalgamava épocas e dos fingimentos saia sempre uma versão do falecido. Agora é que são eles, parecia querer dizer a toda pergunta que lhe faziam do de cujus. E prontos, como paredes sólidas, vestiam risca de giz, linho puro ou jeans, combinando com a t-shirts na qual não se lia a estampa. Ondina omitia sempre a estrutura de sua cobertura, falando o que dava na telha. Chegaram a dizer, inclusive, que tem centenas de amantes.

sexta-feira, 16 de março de 2012

A chuva

A chuva se escondera no céu da vila, esperando o tempo certo para molhar as pessoas. Agora, com todos meio úmidos, o Sol graceja com o calor de seu lençol amarelo-dourado. Soltando a vida na mão da rua principal, Zaneta lançou seu grito de lá da esquina, que veio ecoando pelas casas e janelas, fez o desvio do menino Márcio, depois se desfez, sem que a gente entendesse bem as palavras que carregava consigo. O povo daqui é gozado. Vão da vida pra morte e mal notam. As garoas nem chegam a brincar de enchente, e Zaneta, coitada, anda assim pelo tempo. Geme às vezes, ri de nada e solta uns estampidos públicos com cheiro de gorgonzola. Os clamores, feito esse de hoje, em voz alta, só aparecem depois que chuvas baixam. Devem ser de sede, de vontade de beber em alguma bica que está lá no alto. E que a gente, aqui no nível do mundo, nunca enxerga...

quinta-feira, 15 de março de 2012

Digamos que sim

Digamos que sim, Orlando nunca disse. Contradizia-se e contradizia a tudo e a todos, ao ponto de afirmar que jamais fora contraditório, apenas que não conseguia, de estalo, concordar com nada. Depois cedia. Chegava até a apoiar. Ao primeiro salário que lhe fora oferecido disse que não, e trabalho por menos. Menos, menos a primeira versão. Chegou a negar que seria pai, quando a mulher lhe comunicou a gravidez. Agora tem três filhos. Todos legítimos seres de uma negação.

quarta-feira, 14 de março de 2012

Num cárcere

Num cárcere de colcheias a palavra livre apontava para a impossibilidade daquele filme promover a fúria de Hélio, sua libido ou maus costumes. Não lhe conteve, entretanto, as flatulências, quando crianças riam do policial trapalhão, incapaz de prender o menino fujão. A cena se dava na estação de trens, e logo mães e tias descompromissadas associaram aquele cheiro ao do freio da locomotiva, envoltas que estavam com a terceira dimensão, que vinha da tela e do par de óculos ridículos. A sequência veloz de imagens e dos gases de Hélio, polenta de três dias do restaurante por quilo, levou a plateia à interação plena. Era como se os lixos expostos no telão propiciassem a quarta dimensão aos sentidos públicos. Até que uma avó, displicentemente atemporal àquela sessão infantil, apontou o indicador para a poltrona de Hélio, identificando-o como coautor de Martin Scorsese naquela obra. Definitivamente, Hélio era impróprio para todas as idades.

terça-feira, 13 de março de 2012

Os retângulos

Os retângulos distorcidos que compunham a calçada tonteavam Toni, que andava em círculos. Passatempos de infância que viraram vício e trauma, depois de crescidos nos muitos tédios. Sempre ali, rumo a lugar nenhum, Toni entregava suas frustrações aos passos intercalados, em pas de deux com sua imaginação, fonte de hipérboles verdadeiras e alarmes falsos. Vendo-o, o povo achava que comprava desproporções aos seus poucos problemas. Fazia do dedal um balde, da linha a corda, na qual se enforcava. Mas, para Toni, aquilo não se propunha a espetáculo. Não era palco nem picadeiro, e tampouco se interessava em vender os ingressos. Porque não havia ápice, ora bolas.

segunda-feira, 12 de março de 2012

Caso houvesse

Caso houvesse benefício? Dizia Horácio, meio indagador, a qualquer proposta que lhe surgisse nas falas. Foi o que disse a Décio, quando este lhe propôs um passeio à cachoeira, onde o barulho da água submergia todos os outros sons. Lá, Horácio percebeu na boca de Décio a existência de palavras, além um mau hálito de metros, só pelo mexido pouco uniforme que os lábios faziam entre os respingos e ruído. Na dúvida do que dizia, respondeu “caso houvesse benefício?”, o que levou Décio a deduzir sem ouvir. E daquela insólita fala de surdos, viu o amigo sacar da carteira umas notas de dinheiro bom. Pensou: o benefício? Mas, por via da dúvida, recusou a proposta. Sabe-se lá por qual motivo esses loucos querem me beneficiar?

domingo, 11 de março de 2012

Inventou, distraído

Inventou, distraído, suas próprias elucubrações sobre as uvas passas. Sabia que as pobres passavam pelo longo processo de desidratação para minguarem feito ele, ali, parado, macambuzio, mas não supunha o mal que causariam ao Tao, o seu cão guloso que lhe roubara algumas dezenas delas. De nenhuma digestão à congestão foi um passo. O bicho devolvia a vida às uvas, reidratadas, enormes, vistosas naquela nojenta poça de lanço. A brutalidade do mundo exterior depois da profundidade displicente. Jurou de morte dos panetones, condenou salpicões, amaldiçoou pães e quitutes que se utilizavam daquilo. Tolerante, enfim, chegou à conclusão que damascos secos seriam ótimos substitutos à existência de um mundo glutão.

sábado, 10 de março de 2012

Bastante distante

Bastante além de muito longe Samir enxergou na mulher a víbora que de perto se ocultava. Dissimulação a distância, percebeu na bina, quando o número exposto não bateu com a intenção nem com o choro de saudade. Não era da casa tímida aquela voz da esperta, como ele observou pelo cheiro. Dali à luz, foram breves concatenações. Nunca houvera depressão da esposa quando se ausentava a negócios. Jamais se isolara horas do mundo, imersa em fronhas de travesseiro, como dizia. E as reclamações quanto aos amigos comuns tinham procedência na própria vileza da patroa, que lhe vendia a condição de vítima. Samir sofreu o baque, mas não muito. No fundo pressupunha que aquela angelical criatura criava demônios em seu paraíso artificial. O basta, enviou por e-mail, que ela nem abriu, julgando se tratar de um “spam do tolo”.

sexta-feira, 9 de março de 2012

Ops!

Ops! Quando ambiciona tomar de mim essa pouca verve, Jurandir mostra toda a sua pequenez. Tenha dó! Meu Pessoa é um fingidor, e ainda por cima revisa revista médica buscando literatura nos nódulos... Agora, ter que enfrentar plágio antes do jantar é meio que previsão de congestão. Jurandir é um bosta! Anta manca, beija-flor sem bico. Vai que vira Nobel? De quem admitirá influência? Musil, Cortázar ou Rulfo às vezes? Nem julgo Jurandir. Porque o Jurandir em cada um nós é meio prêmio Jabuti. Daí, de repente, escapa um fogo que queima, um retrato na parede que dói, um óbvio de letras que buscam um corpo que lhes pertença. Mas, pô, Jurandir, viver é mais que perigoso, e nesse gozo, use seu talento. O meu tem jatos de inúmeros prazeres, e você será mais um.

quinta-feira, 8 de março de 2012

Depois, o que

Depois, o que ele disse? Quis saber a amiga. Você pode supor, com aquele par de óculos, esperar o quê? Nada, nadinha? Pior, convidou-me para ir ao seu apartamento. Oba! Então não foi tão manso assim? Não? Conheci a senhora mãe dele, por conta das “melhores intenções”. No creo!? O cara se dizia sério, cheio dos bons propósitos... Bons pra quem, cara pálida? Tomei um chá de camomila com a velha me olhando de cima embaixo, cheia de ciúme e desconfiança. E...? Ele me levou pra casa, direitinho, e foi quando pediu licença pra dar dois beijinhos no rosto. Ah? Finalmente pude dizer um “não”... verdadeiro!

quarta-feira, 7 de março de 2012

Guardado em algum

Guardado em algum fundo, o choro de Monike ribombou no colo do irmão. Antes, após aquele pecado recém passado, sofrera de arrependimento, mas não havia chorado. Com a ajuda do amante, estendera Nelson entre os papéis velhos malcheirosos, plásticos atentos, pedaços de bonecas e de coisas da vida, presentes no lixão da cidade. Mais do que ocultar o cadáver quis encobrir sua história de traições, iniciada na doença do marido, há três anos. Teve que aguardar a noite para que ninguém visse o carro parando, e de dentro dele saísse aquele corpo envolto na colcha de casamento que ganhara de presente da avó. Lá, só o medo a motivava e o pavor a corroía, nenhuma lágrima. Instantâneos de lentidão e violência. O peso de Nelson, que nunca reparara. Nenhuma palavra no trajeto da volta. Mas, o encontro com o irmão mais novo, parece que lhe explodir a velha mágoa. Voltar à vida, depois da morte, pareceu-lhe muito irreal.

terça-feira, 6 de março de 2012

Tudo por aqui

Tudo por aqui vai de bom a melhor. Na semana, descobri uma poupança gorda, de vinte anos, da qual havia me esquecido. Já viu, né? Mas acho que a coisa começou mesmo há uns trinta dias. O check-up deu negativo pra todos os males, bem no dia em que o compadre trouxe de presente um litro de uísque de 24 anos. Não te contei, mas fui sorteado com um cruzeiro de mês e meio: Europa! Tudo pago. Brinde da fábrica onde comprei o carro zero com o dinheiro da aposta feita no Tigrão. Azarão. Um corpo e meio de vantagem sobre pangaré que pegou em segundo. Aliás, fui o segundo colocado no concurso pra fiscal federal. Tô bem! Até fiquei com dó do primeiro, que não merecia aquele infarto fulminante num momento de alegria como esse.

segunda-feira, 5 de março de 2012

E quem é

E quem é que sabe? Por aqui vem um ou outro, de vez em quando. Pega televisão, até pega. Mas, se não dá na televisão a gente aqui desse ermo não fica sabendo de nada. Árvore não conta caso e vaca não fala. Às vezes o vento traz uma ou outra conversa vinda de longe, da festa que se ouve em noite calma, que vem lá da vila; dos sinos da igreja com badalos de missa ou morte, no mais, é puro silêncio e grilos. Passarinhos? A gente sabe os créditos de cada um. O sujeito chegou aqui contando tristezas e admitindo fome. A gente não nega ouvido ou um pedaço de pão pra essas coisas. Nunca eu poderia imaginar, senhor delegado, que ele fez o que fez.

domingo, 4 de março de 2012

Buscou hipérboles

Buscou hipérboles para se enganar naquele programa de índio. Tudo era calçado, então não havia resquícios de terra para ferir os olhos com eventuais redemoinhos. Depois, aquele era o melhor lugar do mundo para se conversar sobre asnices. Caso houvesse outro, o mundo o desconheceria. Festa de quinze anos é festa de quinze anos: debutante, o ápice dos três quinquênios, um décimo do sesquicentenário! Que efeméride! Havia um quê de reflexão naquelas inúmeras horas de espera pela valsa. E, não, nem todos aparentavam transtornos bipolares, déficit de atenção ou a mais pura histeria. Havia o garçom. Gente boa. Orlando... sim, Orlando, era o nome dele.

sexta-feira, 2 de março de 2012

Depois voltaram

Depois voltaram. Os falecidos Figueiredo tiveram que fugir daqui, é lógico, quando estavam vivos. Lembro-me de antes, quando os irmãos Figueiredo fizeram carreira na política. Daqui até ali no alto compraram tudo. O mais novo morreu matado. Desavença de umas cabeças de gado, uns novilhos ou outros bichos. Foi quando Antonio, o mais velho, transferiu fraternalmente a culpa de todas as falcatruas. A morte foi um bom negócio para os Figueiredo. O mais velho foi num enfarte. Os filhos e sobrinhos são uns amores de criaturas. Como dizer, assim, gente boa. Direita. A gente pode confiar. Não são iguais a esses novos ricos que saem desacatando os outros. Já nasceram bem.

quinta-feira, 1 de março de 2012

Barulhão

Barulhão. É que a catraca trava, trocador reclama, passageiro chia e o motor parece esbravejar. Só se veem as bocas, muitas, que abrem, que fecham, que abrem, feitas pra dizer qualquer coisa ruim, mas não se entende nada. Será esse o pecado capital? Moço, sou do interior, e dai? Sem mais nem menos, já me aconteceu. Perguntei à velha se viu se chegou na Luz, disse de ombros que não sabia se tinha visto. Nem a moça pintada, que se parece onça, prestou atenção. Ocupada dos dedos aos olhos com um celular cor de abóbora, sem parar. Pensa que isso não aflige? Falei, nem sei pra quem. Faz horas que a cidade cresce e esse ônibus não chega.