domingo, 5 de julho de 2009

Cantava e decantava

Cantava e decantava no jorro do chuveiro. A água morna já lhe cobria os pés, e apesar do desfavorecimento das musas, apresentava solene o próximo número, como se o banheiro do sala-e-quarto se localizasse no centro de um estádio de futebol repleto: “De Chico Buarque, Haroldo interpreta a canção As cartas”... Ilusão, ilusão, veja as coisas como elas são...
Água, eco, box e encanto o ensurdeciam no êxtase. Nem ouviu a insistência do interfone, que implorava por atenção. “De Caymmi, o fenomenal Haroldo exibe a saborosa canção A vizinha do lado”... que não liga pra ninguém, todo mundo fica louco e o seu vizinho também.
À porta, um estranho batuque insistiu fora do ritmo, com entonação surda e intensidade absurda. Como um se backing vocal revoltoso insistisse em se sobressair ao ídolo, Haroldo ouviu, numa das pausas: “cala a boca, seu corno!”. Ao silêncio dos muitos pingos que lhe molhavam a inspiração, Haroldo fechou o chuveiro. Mas, para se enxugar, ainda murmurou: “De Roberto Carlos, o intimista Haroldo traz a vocês O show já terminou”... Eu também vou tentar sorrir em nossa despedida...



Um comentário:

  1. Alaor,

    Começando esta manhã de domingo com uma boa leitura.
    Crônica bem escrita e com humor suficiente para preencher o espaço da pré-ocupação da segunda-feira.

    Maravilha.

    Abraços.

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