segunda-feira, 5 de julho de 2010

Petrificada pelo aceno

Petrificada pelo aceno imóvel a Valentim, quando o avião já partia cruel, derramando fumaças, Nise entendia-se abatidamente sozinha. Melancólica proeza para justificar sua existência de mulher honesta. O marido aviador tinha nas asas as pernas, e vivia a caminhar pelas nuvens. Como que diante de uma porta fechada, Nise não atravessava nunca a fronteira do desconforto. Preferia os shoppings às praças, os salões de beleza aos teatros. Depois, havia sempre uma certeza, Valentim voltava para as noites de ruídos metódicos de um amor exíguo. Nise pastoreava as aeromoças, cheirava as roupas e atrapalhava seus brios com perguntas desconexas. Valentim não se abalava, provinha. Que era, afinal, o que bastava à volúpia de Nise. Pudesse adivinhar os destroços e as ruínas que provocava no marido, Nise jamais lhe invadiria a vida. Estaria no céu, como ele sempre esteve. Só deixou de observar que nuvens mudam. E num vôo para Paris, Valentim descobriu que a felicidade poderia baixar de uma retribuição às gentilezas de uma comissária de bordo, como um trem de pouso, tranqüilo e seguro.
(Paraty, 5 de julho de 2010)

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