sábado, 16 de outubro de 2010

Telefone toca

Telefone toca. Vicente põe a orelha à escuta. Sorte ser só xará e não próprio Van Gogh, ele pensa, enquanto encaixa o aparelho no ouvido. A mulher. Aquela que definiu como um cometa em sua vida: rabo enorme que passou. Num lapso faz novos planos. Saírem, sim. Velha mania romântica de procurar desilusões. “Isso não foi nada”, ameniza, quando ela se lembra do trauma. Entre parênteses íntimos completa: “mas doeu muito, maldita”. E concorda com tudo, como se nada tivesse lhe solapado a alma. Adversidades ocorrem, imprevistos acontecem e o perdão é o mais sublime dos sentimentos de um homem de bem. Ele, Vicente, fenômeno burocrático do escritório, segue para o bar, na hora marcada. O celular estridula. “Não vai dar? Tudo bem”, fala manso. Mas a raiva cega atinge-lhe os neurônios. Com rancor e ódio, saca o canivete suíço do bolso, e decepa inclemente sua orelha esquerda.

Nenhum comentário:

Postar um comentário