quarta-feira, 6 de janeiro de 2010

Pouco olhava

Pouco olhava a sua volta. Fosse atento e Alceu não se surpreenderia com a arte abstrata ou surrealista, ambas ali. A mãe nenhum dente tinha, mas falava compulsivamente, como se os tivesse engolido todos. O pai, manco da esquerda desde o atropelamento na ferrovia, era dado à cachaça. Dedilhava a viola sempre que a mulher se punha a tagarelar. Quis Alceu ser artista, mas nem precisava disso. Nasceu no cenário propício. Imitava a natureza essencial, bom naïf. Vez por outra tomava cascudos maternos e paternos: “que mania de pintar os outros mais feios do que são”. Então se escondia. Comprava a tela, com a balela das migalhas que recebia como guardador de carros no bingo, e dá-lhe tintas puras. No fundo, coloria a vida, sem se saber cinza.
Foi que o “descobriram” na assistência social. Foi que o levaram às galerias ricas, para mostrar a todos como pobre faz. Foi que se remediou. Foi que foi. Virou artista à vista dos tantos. Seu ego cego só não suportava as exposições coletivas. Ia, via, mas desviava a visão escorregadia. Abstracionismo é mesmo coisa de doido, concluía.

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