quinta-feira, 17 de setembro de 2009

Era a própria imagem

Era a própria imagem do pré-sal: profundo e quase inacessível. Gostava de política, de futebol e, fundamentalmente, da mulher, mas os tempos levaram-lhe os gostos. Embora o alimento tivesse acabado antes que o apetite, também perdeu a fome. Orava, mudo, a uma espécie de sono pendente. Dava o ar de que se andasse dez centímetros a mais cairia num precipício. Até que descobriu na despensa um livro velho de Manoel Bandeira, que pegou de raiva, e o transformou em objeto de estimação. Sob o velho travesseiro, fez dele um apoio rígido à eterna insônia. No pé dianteiro direito, do banquinho pendido, utilizou-o para acertar seu nível. Deu livradas nos mosquitos, abanou-se, lançou-o no sofá e voltou a pegá-lo. Virou distração às mãos, sem nenhum tempo para cronometrar horas ou dias. Só foi abri-lo na tarde chuvosa, de café ralo. Então quis morrer tão completamente, que um dia ao lerem seu nome num papel perguntassem “quem foi?”. Mas descobriu que a eternidade está longe. Um dia serei feliz? Chegou a matutar com o poema. Viu que sim, mas não há de ser já...

Um comentário:

  1. Caro Alaor,

    Profundo como o pré-sal! Este seu texto me dá a idéia de um "haikai em prosa".
    Muito legal.

    Abraço.

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