segunda-feira, 28 de junho de 2010

Eram duas janelas

Eram duas janelas diminutas, como os olhos de um rato acuado na sombra. Por elas, Idalina olhava a rua parcimoniosamente movimentada. Tinha a casa, ideias e dinheiro guardado, mas não tinha a lenda como certeza. Inventara há tanto que fora feliz com o também imaginário marido aviador, que seus pensamentos já voavam pela incerteza da história. Era maquiladora de mortos por profissão: sempre pronta a deixar belos os rostos sem vida. Naquela noite, depois de responder alguns e-mails de relacionamento, ficou indecisa entre uma taça de vinho ou os pontos do tricô. Optou pelos dois: a imprecisão do cérebro e a destreza das mãos técnicas. Fez que misturou incompatibilidades, dada a sua pouca resistência às bebidas alcoólicas. Quando bateram à porta, Idalina já estava fora dos pontos. Tricotava torto sem reparos. Atendeu ao moço da funerária com um sorriso maroto: “Entre, Tácito, tome uma taça do vinho que abri. A feiúra daquele morto pode esperar o encontro com Deus, mas sua Idalininha aqui está como o Diabo gosta, pela hora da morte!”.

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