segunda-feira, 31 de agosto de 2009

Onde já se ouviu

Onde já se ouviu: alma volátil? Pois, Humberto, jurava que a tinha. Como tudo o que queria ele conseguia, nada lhe restou. Aliás, aqui embaixo, só lhe resta ir para o céu. Entornou fortunas deitando cartas, evidentemente sem sorte, nos jogos de azar. Alguns segundos para os resmungos, novas tentativas, anos do trabalho alheio de uns, volta a alheias mãos, de outros.
Humberto era uma trama desgastada. Um incorreto por certo, de cativante docilidade para conceder vitórias a outrem. Então teve amigos, mulheres e muitas cenas. Bisbilhotou o mundo em todas as suas latitudes e longitudes, até vir para aqui.
A poucos confessa que a alma já não voa mais. Só aos íntimos. Assim mesmo se diz farto de luz, esperando a hora de fechar os olhos. Quer porque quer enxergar no escuro. Diz que falta pouco para sua experiência, enfim, se concretizar. Nesse asilo, poucos entendem o que ele diz.

domingo, 30 de agosto de 2009

Daquele entardecer

Daquele entardecer em diante ninguém mais viu Janjão. Passava os dias sempre por perto. Rodeava cozinha, contornava os quartos, girava o quintal e ladeava a porta de Lenita, com a crença canina de que ela iria voltar. Dava dó, e ele lá.
Fazia quase três anos que ela se mudara para Madri. Casara com Pablo, casara com Miguel, casara com Juan. Quase um marido ao ano, e a fidelidade de Janjão não se importava com a perfídia, nem cessava com a distância. Na fazendola interiorana, do sertão de Goiás, poucos sabiam dizer o nome daquela cidade para qual ela, por carta, agora avisou que iria se mudar, muito menos ter ideia de onde “aquilo” ficava: Vladvostock. Só entenderam que ela se casara com Arman, um diabo de um russo que era médico na Espanha. Leram a carta no finalzinho da tarde, e Janjão deve ter sentido o cheiro das mãos distantes de Lenita, sei lá. Vai ver descobriu, com seus botões, que ela nunca voltaria...

sábado, 29 de agosto de 2009

Como duas folhas

Como duas folhas no caule, Heitor e Gorete, não se largavam. Mesmo antes do crime, sempre agiram sob violenta emoção. O mais conceitual e famoso atenuante para os crimes passionais, a “violenta emoção”, começou com tabefe de Gorete, na face esquerda de Heitor. Não viu incoerência alguma no gesto. Despir-se no mar, até a quase nudez, era permitido e comum, como argumentou Heitor, porém nos mesmos trajes, dentro do quarto, com sua cunhada Claudete, denotava uma espécie de trilha secreta para o romantismo, concluiu Gorete, encolerizada.
No revide, o rapaz acabou se excedendo na força, e lançou a noiva sobre a quina do criado-mudo, sem dizer uma palavra. Emudeceu de vez, de pavor, ao perceber que a amada não reagia, absorta a olhar o teto, sobre o filete vermelho. Pediu silêncio aos gritos da cunhada, com o indicador ereto sobre os lábios embicados. Pôs-se de pé, para olhar aquele quadro do alto, e desatou um choro que nunca mais teve fim. Foi ouvido da cela 1 à cela 12. No manicômio, é mantido sedado, para o silêncio dos loucos, enfim.

sexta-feira, 28 de agosto de 2009

Haver adrenalina

Haver adrenalina, isso houve. Não se faz uma curva a 140 quilômetros por hora, sem uma pontinha de emoção. Banguela da boa. Não contava com o buraco e o cachorro, e olha que do primeiro eu desviei. Não sei precisar, mas acho que é sexto ou sétimo cachorro... Poucos, pelo tanto que já andei. Buracos, já cai em muitos. A estrada é longa, meu velho, ainda mais as mineiras.
Faço sempre isso aqui. Cansei, paro. Tem colegas aí que boletam, eu não. No máximo, no máximo, três ou quatro xícaras desse café que você está vendo. Tem esse pozinho aqui, ó, que arrumei lá em Punta Del Este, numa entrega pra um cassino chique demais. No segundo café ponho uma colherzinha rasa. É bom para a atenção. A gente pega o caminhão e toca, toca sem parar. Impressionante como os caras inventam umas coisas legais, né? Bom pra cachorro.

quinta-feira, 27 de agosto de 2009

Parou no alto lá

Parou no “alto lá”! O policial lhe pediu a carteira e mediu-lhe a vergonha, ambas vencidas. Mas foi ao observar a cruz no peito, as vestes litúrgicas no banco traseiro e as insígnias episcopais adesivadas no painel do carro, que o soldado dos homens verificou tratar-se de um “soldado de Deus”. Padre, era o atropelador. Bateu e fugiu, como fizeram muitos dos oficiais romanos, ao tirarem uma casquinha de sordidez no corpo do Cristo, quando a caminho da cruz.
A fé não fora tamanha, para motivar a solidariedade aos atropelados. O álcool se incumbiu do resto. E não era o vinho do cálice da salvação, não. Pagãs latinhas de cerveja, entornadas ao susto.
O plano contra os pecadores foi logo estabelecido: o padre voltava de uma benção a uma churrascaria recém-inaugurada, disse seu advogado, que ouviu do delegado: “é, doutor, a carne, mesmo se for picanha, é fraca!”.

quarta-feira, 26 de agosto de 2009

Samambaia que se preze

Samambaia que se preze devolve aos metros a água que recebe. Molhá-la dia sim, dia não, passou do prazer à obsessão. Queria quilômetros aos litros. A pobre afogava-se pela raiz, sem corresponder em grandeza ao gesto abjeto do jardineiro amador.
Como punição ao imponderável, Cloroaldo, cujo pai havia trocado no nome o dê de divino pelo erre de retardado, podou a planta ao “estilo penitenciária”. Máquina zero. Um talinho imperceptível de vida junto ao caule, na folhagem decepada. Sorte que mudou de ares: da casa para o apartamento. Ele, o mutilador. Samambaia ficou lá, ao tempo: Sol quando calor, chuva quando água.
Águas se passaram, Luas em fases, Sol às estações. Cloroaldo fez visita surpresa lá pelos anos futuros. Ela derramava metros, como se risse dele em cada vão das folhas verdes. Surpreso, tentou entender aquele estranho amor pelo descuido. Não fosse uma planta, e ela parecia se saber vingada.

terça-feira, 25 de agosto de 2009

Experimentos cheios

Experimentos cheios dos vazios da língua me enchem o cérebro de fome. Baba Beckett, espirra Joyce, e saúde. Muita saúde e nenhuma saúva, o mundo de males é. Violentação. Para a noite não há palavras, escuras, só de manhã se pode lê-las. “É natural que as coisas não sejam tão claras durante a noite, não é mesmo?”. Experimentação. A falha entre a forma e o conceito. Freqüentou e disse. Se o entrecho é animal, nomes de bichos se imbricam nos vocábulos. Fluvial, caudalosos rios. Mineral, minas pedras. Fala sem rumo, pelos pêlos e pelos cotovelos. Sem fim.
A perturbação pela abundância é coisa para luta de classes. Marx, dito assim, é Freud. Daqui, Dali cessa a tinta. Troca a si pelo real: o farfalhar de tic-tacs, do seu relógio torto, pela palavra do fio de bigode.
Intertextual é o coice, desfechado pela pata burra dessa descarga elétrica que sai das teclas.

segunda-feira, 24 de agosto de 2009

Estômago empanturrado

Estômago empanturrado, mau humor à flor da boca, um pobre gatinho entre o antebraço e a pança, que miava sôfrego, em duo ao som das flatulências. Seu mal eram os animais, de estimação ou degustação, enxergava neles a salvação do mundo: correndo pela casa ou bem preparados à mesa. Quando se casou com Valdete fez questão de lhe deixar claro, com a boca cheia e uma pontinha de prazer: - só como verdura no tempero da carne.
Carne era sua perdição e conforto. Valdete, magra e mirrada, fora criada no mato, poder-se-ia dizer, a mato. Não se matavam os poucos animais existentes naquele sertão, por sobrevivência e princípios. Quando chegou à cidade, dessecada e definhada, deu sorte de conseguir emprego logo ali, onde também lhe ocorreria “o milagre” de se casar com patrão. Pura pilhéria do santo, a quem rezou pedindo rumos e um marido. Sem saber que onde se ganha o pão não se come a carne, sentiu-se enjoada, meses depois: bovinamente grávida.

domingo, 23 de agosto de 2009

Doravante as rugas

Doravante as rugas. Seu retrato já merece espaço junto àquelas molduras rococós que estão na sala, com as caras de seus antepassados. Para cada pensamento, um medicamento. Pode preparar o testamento e decorar a extrema unção. Não é pra já, quer dizer, não sei, não consigo imaginar dor que nunca senti, mas lembre-se de que quando o seu coração parar, vários outros estarão pulsando regularmente. Você, humanista que sempre foi, deve ficar feliz por isso.
- Doutor Carlos, o senhor é um escroto! Em 1959 chegou aqui na vila um médico, vindo do Sul, que me deu cinco anos de vida. Saí daquele consultório disposto a me jogar embaixo do trem, mas pensei melhor, e voltei lá, no dia seguinte. Levei essa garrucha 45 aqui, ó. O nome do finado era Odécio. Bati na porta, entrei, e fui logo dizendo: - Doutor Odécio, o senhor é um escroto!

sábado, 22 de agosto de 2009

Não farei dele um homem

Não farei dele um homem mau só porque colocou Clara no seu devido lugar: à lama. Ninguém pensou nele quando ela foi se deitar com Júlio. Tinha acabado um erro e começou outro. Tudo outra vez.
Quando chamei Júlio tinha certeza do desacerto. Lourdes fala mal de mim, mas é ciúme. Arranca seus devaneios das vontades irrealizadas, para defender Honório, aquele porco chauvinista, que só tinha perversão no lugar do amor.
Minha euforia foi frágil demais. De mais a mais, sempre desejei Clara, mas estava fraco até para levantar o dedo mindinho, gripe elefantina, sei lá. Ela chegou como outro vírus. Chamam virose, aquilo que não conseguem definir.
Achar que desejo é perversão é coisa do lado casto da Clara, que de casta não tem nada. Fazia vezes de moça séria. Eu que sei das mordidas, dos cremes, das algemas... Forçava e recuava. Puro carnaval, com ares de quaresma. Sei que Lourdes amava Júlio, mas com o tempo isso muda. Estamos bem melhor, os dois, juntos.

sexta-feira, 21 de agosto de 2009

Auge de festa

Auge de festa é o fim. Lembro-me que falava da música como se tivesse a certeza de vários séculos. E a música era essa, nova, composta agora. Depois fui como uma lesma que cai do galho buscar outro litro de vinho. Acho que não tinha o tinto, agora não sei, não conhecia a infelicidade rosé. Acordei num só suor, parte indiferente àquilo tudo, feito narrador de história.
Como se prendessem passarinhos de várias raças numa mesma gaiola, no primeiro momento, todos ficam mudos. Sins, sins, nãos nunca, por gentilezas. Depois foi uma babel de sons agudos, graves, médios, distantes. Voltei de mãos vazias para mim mesmo, sem saber se foi bom. Lá, eu, estive lá? Trago na boca um sabor de antegosto do prato principal. No cérebro, não trago nada. Deveriam usar em terapia esses lapsos, igual sonhos. Claro, na hora da nossa ressurreição.

quinta-feira, 20 de agosto de 2009

Rezei outra prece


Rezei outra prece ao sono que, danado, continua lá, pelos quartos ou quintos do inferno. Não sei porque é assim. Fico perdido onde nunca estive, desejando não morrer antes da minha hora. Agora mesmo, calado, tive sucesso em dizer algo pra mim: “ô Dalberto, se você não dorme mesmo, por que não escreve sobre a falta de sono?”. Meio que acordei, sem dormir, como se tivesse encontrado Deus nesse sonho que não era mesmo bem do mais dormido. Vou acabar pegando no sono da humanidade inteira. Ficar errando por aí, num torpor de barriga para baixo, vendo imagens feitas para palavras, não para os olhos, que ficam fechados esperando a vez de desaparecerem desse mundo.
Esses olhos de espreita, os mesmos velhos dois, sapecadores de bênçãos e maldades, gentilezas e friezas, invejam a circunferência da terra. Mesmo nessa escuridão, não param nunca de rodar.

quarta-feira, 19 de agosto de 2009

Conferiu o bilhete

Conferiu o bilhete e... bingo! A exatidão das formas dos números era clara: 21.817, cachorro. Ganhara, enfim. Foi para casa, gorgolejou um copo com água, mexeu o líquido nas bochechas, engoliu tudo e acordou o demônio, que dormia há quinze minutos. Matou-se com um tiro certeiro no céu da boca, como se revivesse antigos contos de Tchecov.
A clemência deixaria grandes condenados. Disputas de bens e aritméticas que não lhe retribuiriam plenamente a paz. Durou o momento, porque o tempo lhe seria longo demais. Nem bilhetes, nem o bilhete. Ninguém soube de sua esperança gorada. Virou lembrança odiosa de um corpo estirado no sofá da sala, covarde afamado, como se a ridícula televisão ligada fosse transmitir, em instantes, o jogo seguinte de seu time contra um adversário invencível.

terça-feira, 18 de agosto de 2009

Menos hedionda

Menos hedionda só se vista de máscara, calada e preferencialmente a distância. Os pés “o que é que há?”, compostos em cento de vinte graus, a protuberante barriga sobre a braguilha aberta, como amparo aos vastos tratos, não abrem margem a questionamentos sobre a existência do diabo.
Pois comendo o jiló fresco socado ao sal, em mordidas alternadas com o pão de mel, enoja o pobre que a ela se vê obrigado a dirigir, a fim de pagar a conta de seus víveres. Caixa. Sim, a inconveniente é caixa da loja de conveniências. Deixa a fila crescer enquanto, aos bocados e sobras, pára a lida, como agulha antes de completar um ponto. Olha irritada ao próximo, e mastiga a pergunta óbvia, em tom agudo: “o qué qui vai?”.
Vi Polidoro perder ordem. Oposto essencial à interlocutora, contou as moedas, depositou-as sobre o balcão junto com a latinha de massa de tomate, e com voz de lorde, na calma de um dever, dirigiu-se a ela, profundo e grave: “vai à merda, ô coisa!”.

segunda-feira, 17 de agosto de 2009

Os braços balançavam

Os braços balançavam mãos entrelaçadas. Tinham ainda algumas palavras à sua disposição, mas assobiavam. A tônica da felicidade, que caminhava neles, superava os prazeres imediatos. Contemplativa.
Não tinham acabado com uma alegria e já começavam outra. Era vida a dar certo na sensatez. A sensação e estado tal não admitiam manchas ou leviandade, nem sobreviviam à custa de desinformações ou ignorâncias. Não. Sabiam-se em cores, apesar do mundo em branco e preto. Duravam venturosos.
Tanta existência assim chamava a atenção dos conhecidos, ávidos por abrirem perspectivas de momentos idênticos ou vida similar. Mas, por alguma razão, a inveja distraída já eliminava os êxitos. A representação desajeitada dos desejos era torpe. Mal cabia no suor de mãos entrelaçadas.

domingo, 16 de agosto de 2009

Passarinho não bebeu

Passarinho não bebeu, deixou de mover moinhos. Então dei com os burros. Desta não beberei. Foi abaixo, mas muita vai rolar, passar por baixo da ponte. Por que cargas? Por na fervura, por no feijão, que eu quero sombra e ela, fresca. O óbvio uso da palavra água fazia Fabrício, de peixes, signo dela, afogar-se em frases feitas. Era mais fácil, do que as criar, novas. E, sobretudo, o protegia das reações, no alto de seu lugar-comum: “não fui eu quem disse”.
Atiraram-lhe a primeira. Botaram-lhe aquela em cima. Sem deixar ficar uma sobre a outra, impuseram-na em seu caminho, em seu sapato. Angular, de toque, filosofal. Quem com pedra fere, com pedra será ferido, aprendeu o besta, à custa dos incontestáveis efeitos das frases exaustas.

sábado, 15 de agosto de 2009

Como o dedo de Deus

Como o dedo de Deus de Michelangelo, que há séculos continua criando adões, Roberval estava melhor do que ontem, menos débil, menos sujo, menos teimoso. Renasceu depois que conheceu Fernanda. Falava com ela dele, mas dela também, no fim. Deu para dividir-se, enfim, como se cortasse com fina lâmina de elegância algoz, aos pares, as inúmeras pernas de uma centopéia da alma. Avante, perna esquerda. Contenha-se, direita. Aos pulinhos, extravagantes bípedes perdiam os rumos, mas Roberval tentava aboiá-las, guiá-las, com o canto monótono e triste. Levava a mão livre à testa, como recurso impaciente, quando tudo falhava. Era feliz a intervalos, mas a placa-mãe de seu cérebro mantinha-se consternada. Pior foi ver Fernanda cansada de pedir jabuticaba, para adoçar sua boca resignada de receber azeitonas. Tanto sal seca o desejo. Com o dedo em riste fez-se Eva, desfez-se de seu adão, e deixou correr aos pares as pernas múltiplas que ele tanto desejou.

sexta-feira, 14 de agosto de 2009

Não sei levar

Não sei levar adiante as canções perdidas nas latas vazias de pêssegos em calda. Simulacro oco de doces lembranças, arremedando microfone de emissoras, vozes no eco e paixões metálicas. Pior dizendo a mim mesmo, desafino no sonho de rato em seu dia de rei. O meio à mão e a voz que tosse notas a ouvi-las harmônicas. Logo notas.
Pena, vovô vigor que você não veio. Muda vovó reza, que lá da inhaca salvava rainhas. Brinquedo quebrado ao brado de mau menino. Xixi na cama malcriado amálgama à pele morena do Sol de dia inteiro. Não brinco mais disso...

quinta-feira, 13 de agosto de 2009

Borracho ao cubo

Borracho ao cubo, Pedrão da Turca arriscou palpite seco, no jogo de porrinha: “Guê gui ô acho qui cê tem nasmão? Dôi pau!”. Havia três. Dois com ele próprio, e o outro com Jura, o dono da birosca. “Guero zogá outra, zeu zagana!”. Jura achou melhor não. Os hábitos agressivos de Pedrão logo acenderiam labaredas imaginárias naquela inocente diversão. “E aê, ô Jura? Bor guê zê tá gom zua vida ganha num qué arriscá, bra bagá a bartida? Sabendo que a conversa de bêbado começa com palavras soltas e, como na vida, quanto mais palavras usadas tanto pior o caráter de seu conteúdo, Jura se esquivava, dócil, mas firme.
Pedro da Turca cambaleou ao velho fusca e apanhou, trôpego, o 38. Voltou não menos mal, e o apontou para Jura. Sem relutar, soltou o estampido, que para a sorte do comerciante lançou o projétil na parede do alto, próximo à imagem de Nossa Senhora Aparecida. Vamos apostar quantas balas você ainda tem aí, Pedrão? O zonzo topou: “zinco!”. Quatro, disse Jura. Pedrão abriu o tambor da arma para contar e já tomou um safanão forte. Deitou ao chão o revólver, o corpo mole e a empáfia. “Eu vigo bazado ca tua valta de esbírito esbortivo, Jura. Zê berdeu, ô mané!”.

quarta-feira, 12 de agosto de 2009

Profilático o encontro

Profilático o encontro. Agora vamos mostrar o que poderíamos ser. Mas você acha que terminarei assim, com a loucura mansa das virgens que se julgam grávidas? Estou que é o só fio, depois de puxada e desenrolada de todo o tricô da vergonha. Menos visgo e mais sensatez, vai Camila, são os ossos do orifício. Do ofício, você quis dizer? Seu ofício, Camila, cá, lá e entre nós, sempre será um orifício, não é? Parece que você arremeda os gringos (diz e ri, trucando palavras). É habitual a quem convive com você. Tenho clientes “made in brazil”, meu bem. Sei... na escassez. Quando você quis ficar noivo eu bem que avisei da minha vida avessa. Parada, Camila. Encerrada. Você fazia a gentileza de brecar a história, ou não se lembra? Era fim do prazer-delivery mas, depois dessa, parece que você levou a cabo sua missão maior. Nossa, Orlando, como fala bonito, esotérico. Hã-hã. Isso mexe com meus hormônios. Esse é só um detalhe anatômico em você, engessa que passa. Coitada de mim, Orlando.

terça-feira, 11 de agosto de 2009

Predisposição ao bem

Predisposição ao bem não me falta, o mau é que eu não consigo me livrar do mal. Ainda ontem, por exemplo, enquanto lia uma daquelas frases de Proust, que dá pra gente desligar o abajur, ir à cozinha esquentar um arroz, comer, ir ao banheiro, brigar com o cachorro, atormentar a mulher, por a filha de castigo, assistir às chamadas do jornal na televisão, requentar o café no microondas, queimar a boca, xingar a louça, encontrar a guia de imposto perdida, maldizer o governo, tropeçar nas tiras do chinelo, passar gelol no dedão e frase não acabou, pensei, cá comigo: tô surtado!

Deixei que o senhor Swann seguisse lá o seu caminho, e abri o alcorão, pra ver se a coisa do alto ajuda. Procurei nele os desfechos malignos, que pudessem justificar tantas derivações islâmicas de meu humor ibérico, em carcaça brasileira. Mas só havia o bem universal. Demasiadamente humano para os meus atos. Senti-me um fedelho, incapaz de achar o tempo perdido.

segunda-feira, 10 de agosto de 2009

Entusiasmo excessivo

Entusiasmo excessivo acaba deixando sobras. Oldemar contava de suas pescarias como quem se apaixona pela primeira vez. Tudo muito intenso e inverossímil. O peixe que quase pescou era tão colossal quanto as suas embarcações fabulares. Só não gostava mais de Hemingway porque este não havia nascido em Barretos.
Tinha espasmos de minhoca sôfrega na ponta do anzol, coceiras da solidão com o caniço na mão, a distraí-lo com obviedades na forma de insetos inexistentes ou roedores teóricos. Gostava de viver assim. Barretense do Mississipi. Visionário dos cardumes que via demais nas últimas 24 horas, sem falar nos últimos 48 anos. Morava, como todos nós, no presente do indicativo, mas vivia no futuro do pretérito em perífrase: iria chegar lá. Por isso o povo da redondeza estranhou a verdade definitiva que o envolveu, quando o caminhão de cana esgalhou-lhe no velho fusca. Estava a caminho da pesca.

domingo, 9 de agosto de 2009

O sapo suplicava


O sapo suplicava vou-vou-não-vou-não-vou-vou, ela ficava às moscas. Comida de sapo, degenerando os desejos, louca para levar a solidão pra fazer compras. Naquele ambiente bucólico-distante, de medo, medo de nada de verdade, Fátima não saia da casa, sede da fazenda. Namorou improvável o moço da novela das oito, sem ser vista aos beijos com a tela luminosa. Pedalava a Singer, auto-punição, agora, para se identificar como a mulherzinha da história, na costura das fúrias. Troco ruminado para depois. Desforra prevista à truculência do Batista, que pousara lá o Cessna 172, ciumento, para deixá-la à margem da pista clandestina. “A casa é naquele rumo. Tem tudo lá, inclusive o rio do lado. Cuidado com as cobras”, disse o canalha que a seguir voou. Um mês ou mais. Viva alma, só de bichos. Não é pouco. O amor que virou passado está bem guardado nas vagas lembranças. Batista só desconfiou de Mário, seu sócio no tráfico. Se tivesse certeza, Fátima não teria pousado. Cairia do céu, como as chuvas, que nessa época do ano descem pesadas.

sábado, 8 de agosto de 2009

Uivos bestiais

Uivos bestiais ao meio-dia só pode ser coisa do Abel. Deu pra ser lobisomem no jogo de rpg, e a gente é que tem que engolir o sangue. Dessa vez ele desceu às grutas da vileza humana. Seu demônio da guarda faz com que passe a noite inteira lá, no computador, coagulando silêncios e desprezando as horas. De repente, durante o dia, vira o Bebel-gente-boa, na sua identidade secreta, aqui, de carne e osso. Só que tem isso: uiva, extemporâneo.
Apesar da comprovação científica de sua lobisomisse, que ele jura ser certificada por clérigos, juízes, cirurgiões e homens notáveis – todos com a idoneidade comprovada pelas regras do rpg, Abel diz que, no fundo, ainda se sente um pouco humano. Não despreza uma bisteca suína bem passada, nem uma latinhas de skol geladas. Suzana, sua namorada na vida eterna, diz que ele é o máximo. Pra ser sincero, não sei. Mamãe fala o tempo todo que o que ele precisa é trabalhar.

sexta-feira, 7 de agosto de 2009

Soergui com um sopro

Soergui com um sopro, de susto. Tão mínimo, que parecia sem limites. Não fiquei decepcionado, nem surpreso, a idiota da Beth tem dessas manias. Improvisa os jeitos de me acordar para a vida. Pior foi quando deixou cair a mandíbula pra respirar com a boca no meu ouvido esquerdo. Quer coisa mais incompatível que essa pretensão erótica? Acordei com falta de ar. Sinto esse frenesi diário há anos. Aqueles alvi-olhões em cima dos meus. Às vezes vacilo, como os olhos do Buriti, meu vira-latas, que me fitam, mas quando eu os encaro, ele é obrigado a desviá-los de mim. Só que, com Beth, o Buriti sou eu mesmo. Incólume de bom senso, ela diz que “brinca assim” por caridade, para evitar gritos ou safanões no clarear dos dias. E vamos em frente, nessa fertilidade de contratempos e incidentes. Dizem que a gente muda, se continuar vivendo... Sou feliz, mas como eu li no Beckett, é menos divertido do que eu pensava.

quinta-feira, 6 de agosto de 2009

Olha, que massa

Olha, que massa! Deixe eu ver. Isso aqui, ó, dá pra mais de vinte vezes. Como assim? Você pega deste lado, inclina, depois é só chacoalhar um pouco. E não dá muita pressão? Às vezes, sim. Mas o melhor é que mesmo sob pressão ele reage instantaneamente. Não acredito? É, você só tem que manter a mão desse jeito, sem dobrar para a direita, nem para a esquerda. E não corre o risco de explodir? Bom, eu nunca soube de um caso em que isso acontecesse, de qualquer maneira, é bom ter sempre precaução. Você vai mostrar pra todo mundo? Nem pensar. Depois podem dizer que o criei apenas para assustar os outros. Então pra quê você perdeu tanto tempo nessa geringonça? Ara, eu tinha que demonstrar que era possível chegar a esse ponto. Mas, se você não vai mostrá-lo pra ninguém? Você já não o está vendo? Estou! Então, olha, pra mim basta!

quarta-feira, 5 de agosto de 2009

Pastor de escorpiões

Pastor de escorpião, com perdão da má peçonha, lá é coisa que se faça? Pois estava lá, no bucólico cativeiro, o Ernesto. Tinha muitos, que criava para extrair o veneno. Pela riqueza do sítio e a pompa do almoço, pensei, esse negócio é bom.
Saí matutando, mas não demorei à caça. Futuquei terrenos baldios, depósitos de imundícies, montes de lenhas, de pedras... tudo o que não presta meti a mão. Queria um casal, para começo de empreendimento. Consegui! Na primeira ninhada, uns 70 filhotes. Gastei os tubos com equipamentos, para iniciar a venda do veneno. Tudo o que ganhei não pagou os médicos. Ceguei com picadas.
Não fosse a filha ler o jornal, não saberia da prisão do Ernesto. Matador profissional, dizia a notícia. Homem, lá, com seus duzentos óbitos. Todos, quase perfeitos, ele injetava uma coisinha, venenosa que só vendo, na jugular das vítimas.

terça-feira, 4 de agosto de 2009

O Sol recém-aceso

O sol recém-aceso, desnecessário como criança, nos fazia averiguar o que havia por trás das pálpebras. Hitleriana manhã, depois de uma catira parabólica, que só deu trégua à pinga com a discrição eletrodoméstica do catireiro que, aos brados, puxou a toalha verde-ibitinga e falou: “Êta purgatório, que esse céu virou! Vâmo dormi, cambada!”.
Não sei se o que bate ainda são as palmas. Trocaria-as sem pestanejar pelo silêncio. A terra em transe deve ser minha nostalgia da poeira e tocos sob os pés batidos. Sorte que havia aquelas azeitonas pretas. Comida distante da musa do ritmo, alimentada a torresmo e queijo fresco. A porta de acesso à torneira está inexoravelmente fechada, outros vagares não levam à água. E a boca espeta as peles, ao toque da língua aos lábios. Umidade relativa dos dentes, zero. Pancadas de chistes e trovoadas ao norte do cerebelo. No sul do umbigo, as calças vão amanhecer geladas. Bom dia.

segunda-feira, 3 de agosto de 2009

Carolaine Cléli

Carolaine Cléli puxou com força. Muita. Imensa era a resistência de seu culote àquele short amarelo minúsculo, mas conseguiu. Persistência era o seu forte. O velho auestar preto ou saltão vermelho? Vacilou. Mas o tênis “orna mais”. Confortou também. Para o “Funk da Maria Mole” é preciso gosma e ritmo. Pancadão grudento.
Rebolou, buzão acima. Paquerou o trocador torpe. Já viu aquele mano na balada. Foi.
Toque que toca assim excita. Já viu, né? Peito gira, short aperta, neguinho junta. Vai rolando um catar aqui, o rompante ali, quando viu. Escreva o que disse. Não, não precisa escrever que eu escrevo aqui: Carolaine Cléli vai ser mãe! Outra vez, em quinze anos.

domingo, 2 de agosto de 2009

Mexeu com o juízo

Mexeu com o juízo de Márcio. Foi o primeiro a fazer, e pior, ele bem sabia. Ainda que sem bilhete, o noivo se omitiria à razão. Ignorância não dói, e sem o escrito não vale. Mas, não. Até para comer um franguinho assado a humanidade comete violência.
Tim-tim por tim-tim, ela colocou lá: “Caro Márcio, nem pense em vingança. Imagine o que faria meu pai, pelo que você me fez. Se ele não fez. Então não faça. Fazer o quê? Fiz agora, sem você!”. Foi a conta. Depois de deixar a avó no médico, correu a ela, sem entender de amor. Deu a cara à humilhação, uma rosa vermelha, um perfume barato e cantou Caymmi, com voz sofrida: “quando eu me zango, Marina, não sei perdoar”...

sábado, 1 de agosto de 2009

A grama verde

A grama verde guarda a umidade da manhã. Roberta fez o pé, mas pisa espesso. Paradoxo do fino, na verdade do grosso. Belo que amassa as folhas, limpo que lambuza o sujo. Nem ai, para a friagem de estio.
Uma dessas solidões nas quais a alma brada para o universo como gato no cio. O riso ficou na sala. Jurandir, no etéreo. Seu rosto se modifica com os pensamentos. Um estado novo, que ainda não preserva, nem tem memória. Sente o excesso. Som melodioso fazendo trilhos e trilhas às pequenas felicidades e infelicidades da vida, juntos, como arquivos de um mesmo disco.
Os sonhos futuros que pousaram no mesmo galho, há anos, levantam vôo, juntos em tempo, mas cada qual para seu destino. Juntos, como adjetivos e advérbios, redundantes.