sábado, 15 de agosto de 2009

Como o dedo de Deus

Como o dedo de Deus de Michelangelo, que há séculos continua criando adões, Roberval estava melhor do que ontem, menos débil, menos sujo, menos teimoso. Renasceu depois que conheceu Fernanda. Falava com ela dele, mas dela também, no fim. Deu para dividir-se, enfim, como se cortasse com fina lâmina de elegância algoz, aos pares, as inúmeras pernas de uma centopéia da alma. Avante, perna esquerda. Contenha-se, direita. Aos pulinhos, extravagantes bípedes perdiam os rumos, mas Roberval tentava aboiá-las, guiá-las, com o canto monótono e triste. Levava a mão livre à testa, como recurso impaciente, quando tudo falhava. Era feliz a intervalos, mas a placa-mãe de seu cérebro mantinha-se consternada. Pior foi ver Fernanda cansada de pedir jabuticaba, para adoçar sua boca resignada de receber azeitonas. Tanto sal seca o desejo. Com o dedo em riste fez-se Eva, desfez-se de seu adão, e deixou correr aos pares as pernas múltiplas que ele tanto desejou.

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