terça-feira, 30 de novembro de 2010

Garantia é tia

Garantia é tia da obrigação, irmã da intenção, mãe da segurança. É obter tonalidade, sem perder a cor, incursão no projeto. Jorjão era assim. Definia as coisas com ares retóricos de uma certeza absoluta em tudo o que dizia Por dedução, falava merda. Seu pendor tendencioso às próprias verdades invalidava as observações alheias, até o dia em que Nayara o fez tropeçar em suas certezas. Com uma indiferença budista e resolução de gerente de fábrica coreana, a moça criou amplitude nos intervalos das falas, e deixou Jorjão remoendo suas próprias assertivas. E foram, e sempre e com tal vazio, que o moço não queria nem mais ouvir sua própria expressão. Cansou-se de si. Contam que emudeceu, para o bem da dialética.

segunda-feira, 29 de novembro de 2010

Etrusca

Etrusca, búlgara ou eslava sonsa, Rosiclene dava ares importados à desimportância de suas conversas soltas. Presa dos desejos bêbados e loucos de homens avessos, movia-se erótica na justeza flácida de micro-roupas, quase sempre de última moda das estações equívoco-verão ou outono-inferno. Deu-se que se recusou a dar-se; porque naqueles dias; a Marquinho Tinho, dono da boca. Então etrusca, búlgara ou eslava não lhe valeram lhufas. O malacabado sucedâneo de exportações exóticas para naturalidade em berço improvisado, no qual nascera em barraco, na própria vila, levaram Tinho à súbita decisão nacionalista: “Aí, Mina, aqui é nóis na preservação das ‘espécie’ nativa. Demorô. Nóis é chuchu que dá na terra mesmo, morou?”.

domingo, 28 de novembro de 2010

Jornadeou da casa

Jornadeou da casa para o quintal, com o chinelo de dedos e a gripe que tinha. Da touceira de capim cidreira apanhou três folhas, macerou-as, cheirou-as e as, as, as...astchim, espirrou plural marcando a terra com gotas viróticas. Furará o dedo se de certo cacto do deserto apanhar só a florzinha vermelho-esverdeada? Tinha pé plantado ao Sol, e Abílio disse que aquilo era bom para constipação. Arriscou o dedo e o sangue. Nem doeu, e era por boa cura. Desacorçoado da disposição ferveu a coisa. Bisonho chá de gosto pedroso, que engoliu a goles autistas. Até hoje não sabe se foi isso ou aquilo. Da gripe está bem melhor, só há, parece, uma seqüela no cérebro, meio letárgica meio lisérgica. Abílio diz que passa, quando o cacto florir novamente.

sábado, 27 de novembro de 2010

Consulta iniciada

Consulta iniciada, taquicardia. A ansiedade em simbiose com o medidor de pressão: inflava, esvaziava, em busca de ar para inflar de novo. Adolescente, enormizava as coisas. Não há maior dor. Não há amor superior ao que o Júlio César sente por Helena, já aos dezessete anos de idade. Ele diz e confirma... mas não sabe se sobreviverá. Aquela dor nas costas de três dias, só pode ser câncer no pulmão. A diarréia de anteontem, sintoma de AIDS. Hoje, acordou meio pálido: leucemia. Os vorazes glóbulos brancos estão engolindo os vermelhos. O dedo do pé continua roxo, depois de receber sem querer o vazo de antúrios da mãe, que caiu da mesa: gangrena! Um pé esquerdo, portanto, à beira da amputação. Esses olhos sinistros do Doutor Diego dirão já já alguma coisa. Ele tremula os lábios, vai falar... “Você não tem nada, não, Julinho. Vai embora e desencana...”.

sexta-feira, 26 de novembro de 2010

Na bacia

Na bacia das almas esparramou as palavras para todos os lados, julgando lógico seu mosaico de advertências. Olhares curiosos entupiram-lhe a atenção, até que esbravejou indagativo: “nunca ouviram a verdade?”. A avalanche de despropósitos logo virou riacho em remanso ante a perplexidade geral, mas Naldo não estava imune. Ninguém entra em histórias que não têm desfecho. Ele haveria de se explicar. Por que mandava todos evacuarem o bar, se havia tantas mesas vazias? Em nome de qual deus queria privar do vício aqueles que ririam melhor e por último? Naldo foi se afastando... encostou no balcão. “Incendeio-me e desapareço!”, ameaçou. Os presentes avançaram, chegaram nele e retiraram o copo de cerveja que tinha nas mãos. Gentilmente, como se amnésicos, pediram a Naldo para que não começasse a beber tão cedo, antes de todos chegarem.

quinta-feira, 25 de novembro de 2010

Deu conta

Deu conta, de repente, que do cotovelo coçado pra passar o tempo brotava umas gotinhas de sangue. Calculou, então, fazer horas que esperava pelo tal advogado. O assunto exigia paciência, mas imaginava que fosse apenas no decorrer de sua solução. Com o disfarce dos anjos, apertou o cotovelo no braço do sofá marrom. Evolução dissimulada para limpar a pele e vingar-se do dono. Até que a displicência deu sinal de vida, e o jurisconsulto apareceu, para apertar-lhe a mão com um bom dia. Boa tarde, disse de volta. O homem não gostou do insulto. Enchendo de rugas a testa tensa, o cliente pediu desculpa, e levou a cabo o sacrifício de contar ao atrasado suas pendengas presentes, futuras angústias. O advogado disse que tinha jeito, mas não disse qual. Mandou que voltasse amanhã... sem aquela pressa.

quarta-feira, 24 de novembro de 2010

No fundo da gaveta

No fundo da gaveta papéis já meio marrons tinham anotações cosmopolitas. Um provável manuscrito aos pedaços, cujas narrativas renegavam a pequenez daquela casa, da cidade e do próprio país que lhe forneciam a língua. Certa crueldade, ironia às vezes bem humorada, fascínios de olhares distantes daquilo ali. Também se auto previa cercado de bibelôs no futuro, e eram estes que adornavam a cômoda onde havia aquela gaveta (e seu respectivo fundo). Sabido o autor. Autor? Seria autora? Mas por que tantas premunições naquela linguagem caprichosa? Algo havia dado errado em sua vida por ali. Dizia que deixara as canções alegres para escrever o tal relato. E o que revelava era que, naquele mundo autônomo, despertadores não acordavam ninguém.

terça-feira, 23 de novembro de 2010

Muito solidário

Muito solidário e tal. Distribuiu cachorros-quentes com suco e tal. Também falou que a gente não precisaria mais se preocupar com a condução e tal. Ele cuidaria de asfaltar as ruas esburacadas, sem custo pra gente e tal. Nossa saúde seria igual a de um tal de primeiro mundo e tal. Máquina de raio x, ambulância, médicos à vontade e tal. Escola teriam duas: uma pros pequenos, outra pros grandes e tal. Não era homem de gabinete, era de diálogo e tal. Poderia, inclusive, chover e tal. Haveria um programa contra goteiras, reformas dos telhados e tal. Enchentes não teríamos mais, tudo drenado e tal. Nem ladrão, nem bandidinho de moto, nem crack e tal. O adversário dele podia falar, esbravejar e tal. Com ele era assim e tal. Então votamos nele e tal qual...

segunda-feira, 22 de novembro de 2010

Portanto é pouco

Portanto é pouco! Grito em compasso aberto não muda minha acusadora observação acerca do demente do Clemente, que baba interjeições quando não faz isso aí, ó... berra. Se quer sofrer inevitavelmente, vendo tudo, mas fazendo de conta que tem os olhos fechados, que negue a vida de vez. Fica aí, atalhando pelo caminho mais longo. Empatando as bodas. Lúcia Helena é pura sombra sem contrastes. Filha séria, vai e volta, envolta, sem coragem ou casa para casar e deixar o pai. Otacílio faz que sim, espera. Não quer assumir a melancólica proeza de ficar sem o pai na festa, justo no seu casamento. Adília tirou o noivo dos sonhos. Deu pra cultos, a inculta. E todos masturbam as horas, adiam as datas, em função e aos praguejares pertencentes apenas ao Clemente, pai doente. Quer saber, estou definitivamente fora. Essa família não merece. Esse afeto se encerra aqui.

domingo, 21 de novembro de 2010

Filme idêntico

Filme idêntico à vida era aquele. O mocinho amava a mocinha que amava o mocinho, mas havia bandidos. Falsários internacionais davam as cartas aos falsários nacionais e ambos queriam dominar o mundo e as riquezas. O mocinho estava na trama, em defesa dos interesses nacionais; a mocinha entre as pessoas do mundo, dominadas. Nenhum milagre alegrava a vida, falada a parcos pulmões, quase mórbida, em ambos os lados: conspiração e respiração ofegante. O céu trabalhava relampejando como coadjuvante. A lógica escassa só apareceu na penúltima cena, quando tudo haveria de se tornar mais visível, mas era à beira da morte de muitos. Uma promissora esperança ainda pairou antes da paisagem que denotava o final da sessão. E a gente ali sentada ao lado dos piruás da pipoca, mexia energicamente a língua na vã esperança de retirar com ela as casquinhas de milho entre os dentes. Com a vida reduzida a uma telinha de televisão de vinte polegadas.

sábado, 20 de novembro de 2010

Prudência e olfato


Prudência e olfato nunca foram o forte de Laércio. Produzia insuportáveis flatulências em elevadores ou velórios, com a desfaçatez de um pardal aos defecar sobre a toalha de linho branco na qual pousou para ciscar algumas migalhas de pão. “Porco”, ouvia às tontas, mas não se importava. Aliás, “anta” também lhe cairia bem. Sujeitão escroto e sem noção. Inconveniente de merda. Parlapatão impróprio. Coisa ruim. Boca de bueiro, bunda fétida, buraco de esgoto. Escapamento de privada, chaleira de chulé, vapor de bosta. Vulcão de rato morto, em erupção permanente. Turbo de odor. Traseirão gaseificado.
Porque esse negócio de proteger personagem que peida, só porque o criamos, é coisa que me recuso a fazer. Terminantemente.

sexta-feira, 19 de novembro de 2010

Caligrafia torturada

Caligrafia torturada. Coerência metafísica. As baboseiras mentais de Idalícia são explícitas. Mezzo vulgaridade, mezzo moléstia daquela cabeça emperiquitada por cílios, brincos e coisas ativas por dentro. “Idalícia não tem infra!”, diz Betão, seco e sórdido. No fundo entendo aquele seu quê de gueixa saquêzada. Inacessível à reflexão ou mesmo papo besta. Não há neurônios que não se esfacelem com tanto álcool. Só toma cerveja para ficar sóbria, caso contrário, destila “usque e vóka”, que é como trata os íntimos. Tufão ou vaca fria, Idalícia se põe parceira das estrelas, todas as noites, de todos os dias, anos, décadas. Impropério noturno que não sabe viver à luz. No fundo, que nunca teve, Idalícia é até gente boa. Divide irmãmente a herança familiar, em quantos copos forem necessários... e brinda a cada fragmento!

quinta-feira, 18 de novembro de 2010

Para crianças

Para crianças mataria a sede e seria “o canal”. Divisor de águas entre os escritos adultos e infantis, Reagan Silva pôs-se a contar fábulas, com finais edificantes. A da Joaninha Estela foi o marco zero. Havia um pendor tendencioso na tal criaturinha pintada. Ainda que vermelha com bolas pretas, imaginava-se passando incólume pelo verde da mangueira, disfarçada de mandruvá, com uma folha de manjericão carregada às costas. Sob mil pretextos não ouviu a irmã, joaninha já mais velhinha. A matusquela Estela cismou de comer agrotóxico, beber inseticida e ficar na chuva, só apreciando os pingos – seres minerais do mesmo tamanho que ela. De tão louca caiu do galho, e logo sentiu a chuva ácida: o xixi de Thor, pastor alemão. Ele não podia sentir o cheiro de manjericão, que logo o demarcava. Estela morreu, segundos depois, e Regan Silva lamenta pastoso, no boteco da esquina, a incompreensão das editoras com sua arte infantil.

quarta-feira, 17 de novembro de 2010

Percalços passados

Percalços passados deixaram Alexandre sem chão. Dizia-se caetanamente um ser em construção; já era ruína. Fazia de conta. Meio água de sede inútil. Carpinteiro poupando pregos. Doente com a saúde que só vendo. Mediano meridiano, medíocre do arco ao sofá, onde sentava cínico, com os desvios em prontidão. A um palmo da miséria, enriqueceu o vocabulário. Esbanjava palavras com a loquacidade de um feirante. “Mentiras baratinhas”. “Leve duas histórias e ganhe a terceira”. Barganhava um punhado de sentidos, sem moedas ou valores. Só pelos desígnios incontroláveis da manutenção do mito Alexandre, ex-grande. Se lhe descortinassem a farsa ou averiguassem os saldos, restava o adverso. Infortúnio falante. Mas ninguém se atrevia a lhe incutir verdades. Em reconhecimento às firmas negadas, todos tiveram culpa no cartório.

terça-feira, 16 de novembro de 2010

De súbito

De súbito, por um tropeço inexplicável, fiquei subjugado pela ilimitada noite escura que antecede o sono. Um ardente interesse naquilo que estava acontecendo, mas parecia não acontecer nada. Senti como se me lançasse num recatado véu de sombras, mesmo não tendo ideia de que cor era o lençol que me cobria. Não era lenta a agonia do abandono, nem desamparo era. Destino comum e difuso apenas. Depois de breves respirações mais profundas, todos os meus músculos pareciam alisados no colchão ortopédico. Náufrago em irremediável sono, distribuía sentimentos delicados e demasiadamente frágeis a um cérebro que se recusava processá-los. Estranhamente, como se me nascessem asas e pelos pelos sovacos senti que virava anjo. Só não pude entender o final daquela história. Não houve vôo, nem nenhum sentimento de realização no ar. Devo ter dormido, afinal.

segunda-feira, 15 de novembro de 2010

Hipócrita equivocado


Hipócrita equivocado, acertou no elogio. Depois porcamente lambuzou-se, porque o tempo passa. Arrependido da contratação, o chefe escondescondeu suas intenções, para jogar com moeda idêntica. Aquilo haveria de render a forra! Mal acabado o dia D chamou Juvêncio num canto, ditou louvores, admirou-se se, aprovou atos e palavras, mas, lamentavelmente... meandrou conceitos, tergiversou situações e... rua! Sem mais mínimos detalhes. Juvêncio tentou lamento, pranteou argumentos e até ajoelhar-se fingiu. Tarde! Melhor reduzir despesas com eventuais joelhos rotos da calça à prestação. Então donzela estuprada, simulou o apelo. Altivo funcionário, proferiu competências. Malandro cambaleante, asseverou chantagens. O chefe aflito falou em nova chance, mosaico notório de pequenos golpes. Juvêncio ainda sorriu inútil, antes de pedir aumento.
(Rio de Janeiro - RJ)

domingo, 14 de novembro de 2010

Elo do escândalo


Elo do escândalo e erguerei estátuas aos envolvidos! Não serei porrete na mão de cego, se não posso ser báculo pontifício. Às favas com o fedor das vítimas! Tenho a alma pincelada de pechas alheias, e já chega! Na hora de mandar matar fui voto vencido, agora querem eleger-me? Ziguezagues não alisarão meu ego. Tenho créditos a zelar e uma importância histórica na condução dos destinos dessa conceituada empresa. Tenho um país secreto no cérebro e decisões tomadas, no cofre. Aqui, não, sujo de sangue e ingratidão, não! A freira morreu porque quis; foi avisada da perversão circense dos senhores todos. Os outros mortos também sabiam. Não existe exegese para a nossa conversa mansa, os senhores sabem, são cultos. Freqüentam arte e lêem clássicos. Só sairei dessa empreiteira em silêncio se a pasta vencedora da licitação estiver aqui ó, sob meu braço forte. Caso contrário, amigos sócios, feitiço só pega se for bem feito! Tenho dito.
(Rio de Janeiro - RJ)

sábado, 13 de novembro de 2010

Quebrou o lacre


Quebrou o lacre... e viu que era bom. O prazer percorreu-lhe o corpo, saciado enfim após suar por horas. Nunca nutrira pelo chá grandes paixões, exceto nos tempos de gripes, mas aquele, gelado, no lugar adequado, deu ânimo. Tempo não havia para as boas sensações de provisório. O ruído da fábrica era inequivocamente rápido para deslumbramentos. Como querer fazer amor e não ter com quem: orgasmo implorativo, aquele chá, naquela hora. O pai contava sempre do bem da água para o corpo. Palavras com frescor. Agora, depois de anos, de encabulamentos, daquele chá, compreendia com inocência inquietante a voz do pai. Parecia prestar venerações no estalo do palato. Reverência retardada, sentia que era. Talvez até nunca a descobriria, sem aquele chá.
(Rio de Janeiro - RJ)

sexta-feira, 12 de novembro de 2010

Trocar o lugar

Trocar o lugar à mesa era a estratégia. Um bom meio para mudar de assunto, porque o assunto parece mesmo mudar, quando se troca o lugar à mesa. Não suportava mais, imóvel, aquela conversa de Guilhermino. Discurso grandioso quanto à generosidade e nobreza dos bêbados, dito com as feições descompostas. Virou política, a prosa. Que logo se transformou em monólogo de Guilhermino, sobre as falcatruas e corrupções. Maniqueísta como torcedor fanático, repleto de argumentos vulneráveis. Horas assim e lesmas andam devagar. Mas a pressa pouco significado tinha a Guilhermino, que tomava-lhe o braço sempre que dizia “é cedo”. A paciência cruelmente derramada, passou do elefante ao Jó. Era uma canção sertaneja, que Guilhermino insistia em cantar para comentar a letra, quando Tales espalmou a mesa. “Dá próxima vez, arrume um cachorro, Guilhermino”.

quinta-feira, 11 de novembro de 2010

Então do nada

Então do nada surgiu o vaso. Do alto. Vinha de algum dos andares daquele prédio cinza. Bateu poucos centímetros à frente de Eduardo. Susto de indulgência, espanto de puta merda. Reflexão peremptória, no embalo do estalo. Milagre ou destino? Irresponsabilidade odiosa ou vacilo de alguém. Eduardo era puro sobressalto e reflexão. Estático como na fotografia da mesa da escola. Mole nas pernas, duro pela ventura. O quase inerte olhar mirou o céu, fitou os lados, baixou ao chão. Parado, o Eduardo, sobre os cacos, mancha de terra e margaridas mutiladas. No sexto andar, Natalino inchou o peito. Vociferou com Graziela, rouquejou pigarros e sentenciou o segundo veredicto. “O que vai, agora, vadia, é sua televisão!”...

quarta-feira, 10 de novembro de 2010

Conciliação não

Conciliação não passa pela poeira da estrada, que fica para trás. O giro das rodas traduz a pressa de Nilson. E pensar que ontem, ele pensa, ainda choraram juntos, no enterro da mãe. É tarde em todos os sentidos. Quase seis, no relógio arrancado do pulso da irmã. Já quase morta? Ele pensa que não, mas não para. Ela não deve ter morrido, mas padece muito. Foi merecido. Se o primo não tivesse visto e denunciado, eu seria um tolo, um profanado moral, pensa Nilson. Que se danem os parentes, deixa-dissos odiosos. Acelera em fuga e não para para pensar na surra, no choro, gritos e gotas de sangue. Irmã cretina, reforça Nilson, convencendo-se da justiça praticada. Ele agora foge, mas a canalha mereceu. Não se furta terço de ouro das mãos e da devoção da defunta. Tinha história. A mãe sempre rezou com ele pela paz entre os filhos.

terça-feira, 9 de novembro de 2010

Antes do angu

Antes do angu, que aflição. Olhava as nuvens indecisas com a fome de Cabral por terra à vista. Foi lenta a agonia da chegada à cidadezinha. A pé no ermo das matas as estradas são intemporais. Sabe-se lá quantas horas faltam até próxima parada onde haverá gente. Pulavam soluços no esôfago, a fraqueza doía. Então meio tantã pensou ter visto uns assados, arroz soltinho e água fresca. Generosa visão de uma pedra escura e mal posicionada no caminho árido. Dissolvia-se em calor, enquanto cubos de gelo tilintavam-lhe o cérebro sôfrego. Deve ter caído de solidão, não se lembra. Da cama pobre, paredes com barro e palha, é que o quadro recomeçou a se formar na memória. A velha parecia-lhe freira, e ele, num altar, entre flores do campo que o ladeavam nos criados mudos. Então... o cheiro. A ansiedade do estômago, o angu fumegante. Nem uma pieguice qualquer conseguiu recitar em agradecimento. Lambuzou-se ao eco de cada colherada que lhe chegava à boca. Enfim, fênix.

segunda-feira, 8 de novembro de 2010

Silêncio de crocodilo

Silêncio de crocodilo. Olhar de águia. Braços de jibóia faminta e a frieza de um sociopata. Umbelino foi trabalhar como padeiro, não se sabe o porquê. O pai sempre sentiu um frêmito desejo de vê-lo na corporação policial. Tradição familiar. A mãe o queria padre, justamente para contrabalançar as histórias de violência que ouvia em casa. Com a regularidade de um metrô inglês, Umbelino deixava sua casa às quatro da madrugada, rumo à padaria não muito distante. Naquele domingo, porém, foi abordado por dois pivetes, que lhe exigiram o relógio e a carteira. Disse que não aos malresolvidos e titubeantes assaltantes, com a naturalidade de uma criança quando lhe pedem o brinquedo favorito. Ouviu irredutível às ameaças de morte. E já seguia seu caminho quando sentiu a bala transpassar-lhe o braço esquerdo. Raivoso, saltou sobre os dois e os segurou pelos pescoços, cada qual com um braço. Sentiu outras balas pelo corpo, e outras... Mas sua rigidez cadavérica foi responsável pela prisão de ambos, que não conseguiram fugir àquelas garras. Na expressão defunta, Umbelino demonstrava uma devoção sacerdotal. Agrado definitivo ao pai e à mãe.

domingo, 7 de novembro de 2010

Pitonisa invertida

Pitonisa invertida lia o passado ao futuro. Na vila, logo formaram fila, como se cada qual já não soubesse de seus tantos erros e eventuais acertos cometidos. Só Saião não quis conversa. Esquivou-se da rua onde a tal vidente morava e lançava suas cartadas. Os dias encarregaram-se da desconfiança que os demais moradores passaram a nutrir por Saião. O que aquele “turco” ocultava do povo do lugar? Se todos já sabiam que Haidê não era honrada, Taís não admirava ninguém, Fanny era triste por um amor passado, Valdívio era um ambicioso mesquinho, Quental tinha medo de sair de casa, Leo tinha medo de gatos e Nilma escondia-se na Lua Nova, não haveria motivo para Saião correr das cartas. Com rudeza odiosa, tomaram-lhe pelos braços e o postaram na marra à frente da tal profetiza. A mulher ainda tentou disfarçar, mas logo revelou o inevitável, com presteza dos submissos: “pode deixar, Seu Saião, como o senhor me trouxe aqui pra vila e paga meu salário em dia, vou dizer que sempre teve um bom coração!”.

sábado, 6 de novembro de 2010

Uvas azuis

Uvas azuis com abóboras roxas. Dava pena quando Célia queria colorir a conversa. Não poderia ser só daltonismo, um componente leso adicional, em algum canto daquele cérebro inquieto, provavelmente se encarregava de estimular-lhe a insensatez. Você precisa comer essa formiga verde porque ajuda a eliminar os calos dos pés. Diga ao vento amarelo que passe lá em casa para tirar a nuvem bege de cima da televisão. Caso encontre o cachorro lilás da vizinha, fuja, ele ataca a todos com aqueles dentes alaranjados.
Só achei injusta a surra vermelha que o padeiro Valdir aplicou-lhe sem piedade. Célia só insinuou que, enquanto ele passava buzinando dourado, para vender aqueles pães verde-musgo, sua mulher dava voltas com o cinza do Sérgio, porque os tinha visto... na praça prateada.

sexta-feira, 5 de novembro de 2010

Hematomas redondos

Hematomas redondos eram praxe. Marcas de lanhadas, não. Felipe achou-as estranhas quando as viu pelas duas pernas, ao amanhecer. Combinara com Fabiane os murros, chicotadas, não. Achou melhor tirar satisfação a optar pela vingança imediata. Aguardou a próxima noite, noite alta, madrugada. Ela apareceu. Tinha os punhos cerrados, ávidos por golpes, mas vinha junto com Sandrine, que tinha, sim, um velho chicote na mão. Felipe sentiu um soco. Dois, três e muitos, mas Fabiane se afastou, cedendo espaço para Sandrine assumir a sentença de algoz ao réu inocente. Felipe levantou-se irado, e deu sem dó safanões dispersos nas duas megeras. “Exercício pra circulação não é fetiche, Fabiana!”, gritou enérgico. Os olhos da mulher encheram-se de lágrima, e ela cutucou um “vamos” no braço de Sandrine. Voltou-se a ele, aos soluços: “não brinco mais!”.

quinta-feira, 4 de novembro de 2010

Bulir com Buda

Bulir com Buda não é a maneira mais cristã de aproximar de se aproximar da fé. Oriana disse imperativa a Tito. Ele, com ignóbeis pensamentos voltados ao imaginário templo Zen, no nordeste indiano, que lhe ficara na memória, como resto de algum filme entre os tantos que assistiu de kung-fu, professava-se cristão avivado. Ela, como uma criança brincando com estrelas, ardia-se pelos temas esotéricos, astrológicos e, é claro, tudo o que vinha da Ásia oriental. A paixão se deu na livraria quando, num clássico desajeito da traição, encostaram suas respectivas costas enquanto folheavam livros distintos, na seção de religião. Dali, para o café, de lá à praça. Depois, como quem acaba de ganhar um hamster em forma de mulher, ele a pediu em namoro. Ela, sentindo-se destampar um caldeirão de carmas, disse que sim. Viviam muito bem e amantes quando conversavam sobre política, esporte ou artes... todas elas.

quarta-feira, 3 de novembro de 2010

Gratinou batatas

Gratinou batatas enquanto calculava a idade que tinha ou os anos que faltaria para nascer, na perspectiva de vários eventos. Homem na Lua, em 1969, nove anos. Os três astronautas? Armstrong, Aldrin e Collins. O disco The Dark Side of the Moon, 1973, treze anos. Morte de John Lennon, 1980, vinte anos. O livro Robinson Crusoé, escrito em 1719, duzentos e dez, vinte, trinta, não, quarenta e um: 241 anos antes de nascer. Primeiro computador pessoal, comprado em 1989, vinte e nove anos. Ataque das torres gêmeas americanas, 2001, quarenta e um anos. Notícia da morte de Tom Jobim, 1994, trinta e quatro anos. Nascimento de Bob, seu cachorro basset, 1976, dezesseis anos. E os fatos lhe passavam à memória como os inapagáveis estalos dos discos de vinil. De repente, feito uma sombra que escurece o mundo sem ocupá-lo, concluiu grandioso: como a história da humanidade é curta!

terça-feira, 2 de novembro de 2010

Vergonha velada

Vergonha velada Abelardo a tinha de seus joelhos. Sentado na borda da piscina, tratava logo de afundá-los, numa incômoda posição que lhe exigia sustentar-se apenas com a extremidade das nádegas. Ali, ficava horas, enquanto Fabiana,a mulher, esbaldava-se, com joelhos e complementos ao sol, que parecia não ter fim. Estirada sobre a colorida toalha, fazia sinal para que ele esperasse mais um pouco. A lenta agonia de Abelardo, refletida no alto da bunda marcada pela borda, era quebrada apenas nos raros momentos nos quais levava à água o corpo todo, mas de dentro da piscina não enxergava Fabiana, e também não suportava deixá-la de joelhos expostos aos olhares dos demais freqüentadores do clube, especialmente dos homens. A situação tomou tensão quando Orlandão, conhecido conquistador, foi à Fabiana tomar-lhe emprestado o bronzeador. Da borda, Abelardo utilizava os dois braços para dar sinais a ela que enxotasse o garanhão. Cômica figura de bunda presa e mãos ao alto. O paquerador agachado, com os joelhos quase à face de Fabiana, piscou à mulher: “acho que seu marido está se afogando fora da água!”. Ambos riram, quando Abelardo finalmente andou em direção a eles. Tinha uns joelhos horríveis.

segunda-feira, 1 de novembro de 2010

Outro corte

Outro corte no coração, definitivamente, não. Agora, com Lia, tinha um quê de John e Yoko, em silhuetas difusas no contra luz. Duas uvas, precocemente maduras, já transformadas em vinho de qualidade. Único e insuspeitado prazer. Até o dia da janela. Viu que Lia olhava pelas grades, como se além da visão também sua alma estivesse gradeada. Vaga como aquele céu sem nuvens. Uma extensa planície de ideias formou-se à vista de um Fabrício silencioso e abalado. Meio ansioso, meio pobre diabo decaído pela suspeita de outra iminente intenção de final. Temia perguntar se “tudo bem, Lia?”. Naquela hora, ela responderia, e já não haveria como segurar o sonho de ardor contínuo. Tentou disfarçar falando do filme que viram juntos na noite anterior: Tropa de Elite 2. A virada de Lia, olhar que lhe conferiu, a cara do mais autêntico tédio já caracterizaram um filete de sangue... “Tá bom”, ainda tentou Fabrício, “vamos falar de futebol”.