
quinta-feira, 31 de dezembro de 2009
Ferro enferrujado

quarta-feira, 30 de dezembro de 2009
Com a agonia pândega

Com a cabeça chacoalhando fragmentos da dança que não terminou, do copo que entornou capenga, da catharsis no palco dizendo-se a reencarnação de Hendrix, Marco Aurélio balbuciava palavras inaudíveis aos poucos passantes. Nem demorou demais a expor seu ridículo em golfadas de mal estar, que fizeram os dois enormes seguranças afastarem-se de seu entorno podre. Situação mais do que propícia para Marco Aurélio avançar em direção à porta da casa noturna, colocar as mãos trêmulas em cone imperfeito e gritar a parcos pulmões: “volte pra mim, Madalena!”.
terça-feira, 29 de dezembro de 2009
Pedradas isoladas

Não eram pedradas de meninos, eram de maldades. Amálgamas sonoras a trovões do tempo, do céu. Um tempo em que ainda não moravam no barraco de zinco. Um céu que então tinham como cobertura da vida. Foi culpa da ascensão. Juliete quis subir. Filhos pequenos. Só a força cavaria a rocha. Só ela, tiraria intrusos, espalharia rusgas e edificaria o teto. Na revanche, as pedras inevitáveis. Aquela inclinação de terra fora o quintal de Olegária, a mesma, do barraco de cima. Vizinha de pedra, carrancuda e magoada pelo quintal perdido.
Com chuva, pedradas. Um jeito tirano de por medo nas gentes do barraco de baixo. Até que veio temporal inclemente. Muitos meses de água em quinze minutos. Ao invés das pedras, o barraco de Olegária chegou inteiro no telhado de zinco de Juliete. E elas, e filhos, e gatos, e seus trecos, desceram. Irmanadas às pedras.
segunda-feira, 28 de dezembro de 2009
Cara e característica

Foi na frente do salão da igreja avivada que o delegado João Lobo e sua equipe tiraram a vida do rapaz. Prisão, júri e condenação foram realizados ali mesmo, e não demoraram mais do que cinco minutos. À ação do moço de pegar os documentos na bolsa de couro que trazia, já levou três tiros, e recebeu a ordem para entregar-se. “Pra que essa boca tão sanguinolenta?”, ainda gritou Lobo, com o revólver em punho. O moribundo balbuciou engasgado: “meu nome é Antonio Carlos. Sou organizador da parada gay”. Lobo percebeu o equivoco e riu do erro, um riso amarelo. José Belo, contam, continua fazendo coisas feias.
domingo, 27 de dezembro de 2009
Trocar em miúdos

Pos advogado e protocolou na Justiça o pedido de localização do túmulo e exumação do corpo de Bento Santiago, o Bentinho, e de seu filho Ezequiel. A finalidade era a de revolucionar de vez os estudos literários brasileiros: promover um teste de DNA, que eliminaria determinantemente a dúvida quanto à traição da senhora Capitolina, dizia Rosário. O arguto advogado cobrou-lhe os tubos, e até localizou o túmulo de um Bento Santiago, no cemitério de Caju, morto em 1905. E, por uns inúmeros outros cruzeiros, o de um Ezequiel Santiago, morto em 1946. Tratou da papelada, recebeu o grosso dinheiro de Rosário e executou o processo e a ação. Com o evidente resultado negativo em mãos e completamente descapitalizado, Rosário procurou a Academia Brasileira de Letras. Na entrada, observou o malicioso riso da secretária, quando declarou sua intenção. Rosário rezou-lhe um terço de difamações, e saiu do prédio aos gritos: “aqui ninguém é sério. Todos temem a verdade!”.
sábado, 26 de dezembro de 2009
Imposto é que ele

Doze horas sem comer, ansioso, dirigiu-se ao laboratório de análises sanguíneas. Aproveitou para verificar seu estado geral, o que foi um erro. O DNA demonstrou que Lauranda, de fato, não era a sua filha. O ácido úrico, porém, estava extremamente alto, o que significaria o fim de suas cervejas com os amigos. Medicado, voltou para casa contorcendo-se com diarréias, efeito colateral dos remédios para o ácido. Pálido e desconsolado, ainda dirigiu-se à mocinha que criava como filha: - O sangue só prescreve tragédias. Eu bem que supunha, Lauranda, que esses exames todos resultariam em inúmeras cagadas!
sexta-feira, 25 de dezembro de 2009
Manjedoura: 1 ponto

- Mefistófeles, ô Mefi, vem cá jogar, moleque. Acabei de ler o manual do War Presepe, esse game de presépio que o Papai Noel me deu. Trouxe lá dos Estados Unidos. Olha, você atira com essa bazuca vermelha, que fica aqui no meio. Cada coisa que você mata vale ponto. Tem uns que são fáceis, mas aqueles três ali, ó, a Sagrada Família, são difíceis de ir atrás e acertar. A mulher sempre foge no jumento, então precisa matar o jumentinho primeiro, pra passar para a segunda fase. O que mais vale é Menino Jesus, aquele bebezinho. É o mais difícil da gente seguir!
quinta-feira, 24 de dezembro de 2009
Os gestos ritualizados

Pior quando dá pra falar de si como expressão da novidade, do bom gosto ou da alta personificação da criatividade. Já disseram que cada palavra tem seu próprio feitiço e, se trocarmos uma pela outra, a bruxaria desanda. Margarida, nem aí. Não percebe a ausência do todo e o esbanjamento do resto, enquanto fala. E como fala... uma tagarelice feliz. Sim, Margarida só consente trocar alguma dor por muita conversa, senão sofre.
Conto pra vocês bem baixinho, porque ela pode acordar, já deixei ali na sala a minha mochila de viagem. Antes que o pequeno monstro acorde, com sua lista de vulnerabilidades, vou sumir com a minha alma. Até o purgatório é melhor que esse inferno.
quarta-feira, 23 de dezembro de 2009
Catapultado ou abduzido?

terça-feira, 22 de dezembro de 2009
Cantou antes do galo

Se Tuca reservasse sua marca de nascença a Tarsício, aos filhos e gatos tudo iria bem, mas a caprichosa deu para torná-la conhecida dos moços da vila. Tantos, cujos nomes não se diferiam muito do dos gatos. Tarsício decidiu debandar. Com a van cheia de filhos, deu partida para a fuga, quando, de dentro da casa, ouviu uma Tuca aos berros: - Vê se não me volta sem duas dúzias de pães e um saco grande de ração, heim?
segunda-feira, 21 de dezembro de 2009
Cinza como o concreto

As aspirações daquela manhã voluntariosa quase reproduziam o sonho de Ubiratã de se mudar de vez para o campo. Trocar o sala-e-quarto por uma chácara possível, como na música antiga de viés hippie-cabeça. Assobiar ao sabiá a atender ao celular. E se o aniquilamento daquela cor da manhã, entre o preto e o branco, pudesse enfim resultar num desenho psicodélico, ele não teria dúvida: tomaria outro ácido ou plantaria sua horta de chicórias verdinhas, além de alguma alface.
domingo, 20 de dezembro de 2009
Oferecida como

Com o industrial Rubens, mal apertou o parafuso do afeto. Deu-lhe o que queria, levou-lhe o que não supunha: euros e ouros. Já a Marlene de então, o homem ainda a buscou na região, antes da concordata. Foi como Bernardete, no entanto, que pode de vez parar com a vida heterônima. O armador japonês construiu-lhe um estaleiro, e “Berna” decidiu, enfim, tocar o negócio com o próprio trabalho. Enviuvou cedo, é verdade, quando o empresário nipônico afogou-se dias depois da lua-de-mel. Tempo raso, para deixar a jovem esposa com uma filhinha mestiça na barriga. A mãe a registrou como Umbelina. Umbelina Tahika. Os parentes do marido estranharam, mas lei é lei.
sábado, 19 de dezembro de 2009
Indecifrável providência

Criou essa história para encená-la na conclusão do curso de teatro. Incendiário sem isqueiro, julgou que arrasaria na nota final, arrebataria o público e receberia louvores de seus mestres, pela competência do enredo. Planejou o discurso, no qual agradeceria um a um, nominalmente, aqueles que colaboraram para o seu êxito. Discurso longo, comum a todos os discursistas que não tem muito conteúdo a falar.
Encenado o esquete, olhou atento para o professor Paulo, ator tarimbado. O homem revidou-lhe o olhar, baixou a cabeça e disse entre os dentes: - “passo sua nota mais tarde, com licença, preciso tomar um copo d’água”.
sexta-feira, 18 de dezembro de 2009
Sempre enxergo

quinta-feira, 17 de dezembro de 2009
Auroras atrás

Agora Georgete é poça. Tão parada que virou madeira. Boneca russa num improviso sucessivo de georgetes atrás de georgetes. Uma menor do que a outra, para caber dentro de uma mesma Georgete vaga. Pode ter sido pelo uso em série de “todavias”. Adequação de Georgete às situações extremas, nas quais passou a se desculpar pelas inundações que causava. Mas pode não ter sido!
Georgete perdeu os prodígios aos remansos. Estacionou suas águas nessas várzeas sorrateiras da maturidade. Nem bungee jump Georgete pratica mais. Do alto de sua experiência com a vida, Georgete ficou com medo de altura. Cristal do seu próprio espelho, pelos próximos poentes.
quarta-feira, 16 de dezembro de 2009
Chuvinha fina

Fingindo horror, somos os raros bichos que têm o que fazer quando a natureza implora para que não façamos nada. Deve ser por causa do raciocínio. Ideias. Deveríamos nos deixar matar por nossas ideias, ao invés de induzir os outros a acompanhá-las. Isso, sim, que é ser assassino. Já teve homem que incutiu nos outros ideias tão mirabolantes, que milhares morreram por causa delas. Melhor que a chuvinha, assim, fina, adube de vez a terra onde pisamos, nossos futuros rumos e caminhos. Olha aqui o Janjão, vira-lata sabido, dorme, como se o chão fosse o céu. É da natureza dele...
terça-feira, 15 de dezembro de 2009
Não exijo justiça

A maior satisfação de quem sabe das coisas sempre foi o silêncio, dizia Jaime, que se pos a berrar com Fátima, assim que a coitada lhe trouxe uma cerveja quente.
Por isso me apresento sempre com a amabilidade que eu gostaria de ter, e que acredito possuir. Acho, até, que transpiro narcisismo com esse meu jeito doce. Injusto é que não o sou, nem serei. Assim, pacífico, sei que espanto a ira.
Quando a indignação quer se apossar de mim, cerro os dentes, aperto com força meus dez dedos às mãos fechadas e costumo chutar o primeiro objeto inanimado que me aparece à frente. Tenho consciência: justiça só vale para os seres vivos.
segunda-feira, 14 de dezembro de 2009
Humanos direitos

Errou inclemente ao indicar Carlão Bala à fila dos que iam. Ir, significava o mal, para os maus. Bala era o próprio bem, entre os bons e maus, apesar do codinome dúbio. O crioulo forte, recebeu o apelido por sua fé em Cosme e Damião, que o levava à farta distribuição de doces entre os meninos da favela. Bala comeu o doce que o diabo salgou. Voltou à vida na vila meses depois, baleado e entristecido. No dia dos santos de sua devoção, esperou horas no distrito policial até a chegada do sargento Sandoval. Dirigiu-se a ele com seis balas de coco, e lhe entregou envolto em amabilidades. “Você não teria direito a isso, humano, mas espero que elas sirvam para adoçar sua chibata retórica equivocada”. Sandoval não abriu a boca. Foi procurar um dicionário, para saber se punia ou não o humano errado.
domingo, 13 de dezembro de 2009
Foi a maneira

O delegado Tonião Barreto baixou os óculos, e por cima das hastes superiores olhou fixo para o cidadão que falava sem parar, coberto apenas por uma toalha, que lhe estampava sobre as costas o personagem Piu-piu:
- Olha aqui, ô bicho doido. Você pode dizer o que quiser, aí com seus argumentos, mas da próxima vez que andar pelado pelo calçadão central da cidade vou enquadrar por atentado ao pudor. Tá entendido?
sábado, 12 de dezembro de 2009
Era um entusiasmado

Os anos se passaram, a população de Pau de Fora crescia à escala decimal. O amor de Jasmino pelo lugar, no entanto, era cada vez mais arrebatador. Fez uma ponte, onde não havia rio. Ergueu um morro, para instalar um Cristo Redentor. Do buraco, fez a piscina pública. Contam os últimos habitantes que Jasmino só superou suas façanhas empreendedoras na inauguração do cemitério que, segundo ele: seria composto por vários túmulos de mármore branco. Na manhã daquele dia, Jasmino se suicidou na porta da necrópole. O cadáver tinha nas mãos um bloco de flores, esculpidas em alvo mármore.
sexta-feira, 11 de dezembro de 2009
Dado aos afazeres

Naquela cidade, há tempos, sumia meninos. Primeiro foi Carlinhos, no esplendor dos doze anos. Veio a seguir Valdir, já quase à beira dos quatorze. Pedro Vaz fizera onze. E o pobre Juarez não tinha mais do que dez, quando seu corpo foi encontrado, com lamentáveis marcas de destruição moral. A lenda urbana apontava um monstro rubro, que brilhava como seda à luz, aos olhos de testemunhas vagas e incidentais.
O faz-tudo Febrônio era solitário. Um contratado eventual para dar jeito nos vulgares problemas elétricos, hidráulicos ou de qualquer espécie na casa das pessoas ou nas coisas públicas. Quando saia de casa tinha, antes do gesto, um chamado de alguém. Mas gostava de conversar com meninos, o que só pela seda a cidade percebeu.
quinta-feira, 10 de dezembro de 2009
Bruxuleava risos

Bastava um casual encontro na cozinha, na sala ou na varanda, para que a dona da casa derramasse um palavrório sem fim, que invariavelmente terminava nos preços em dólar, euros ou libras, dos vinhos que a mulher bebera, dos pratos exóticos que comera ou das passagens dos barcos que navegara. Claribel não cambiava aquilo. Para os parcos passes dos ônibus periféricos que apanhava, para chegar ao trabalho, sempre precisou implorar o dinheiro àquela patroa. Mas ouvia as falas da fartura. Fazia parte do serviço, pensava, calada.
O melhor áudio da vida Claribel deixava para as tardes de domingo, quando Dorival, mecânico honrado, seu namorado, sussurrava-lhe baixinho no ouvido: “um dia vamos nos mudar dessa cidade de loucos, minha Belzinha”.
quarta-feira, 9 de dezembro de 2009
Xinxim só sem dendê

A moça continuou solene a faxina sem fim, até a repulsa... Fabrício a tomou por trás, feito a sem-vergonhice que Godô, o poodle solitário da casa, tinha o hábito de fazer com as pernas das visitas. Fingindo gostar daquilo, a mulata não mudou as regras do jogo. Virou-se como uma loba e lambeu o tarado do queixo aos olhos. Babou-lhe no nariz e chupou-lhe a orelha esquerda. Assustado, o rapaz recuou. E meio chorando, meio esbravejando, soluçou a advertência: “sexo só sem baba”.
terça-feira, 8 de dezembro de 2009
Vô Júlio nunca

Dizem que as histórias de quase todos os imigrantes são parecidas. Podem ser, mas só da minha o vô Júlio fez parte. As outras estão vagando por aí, sabe Deus onde...
segunda-feira, 7 de dezembro de 2009
Era de cristal

Tanto escutou, tanto pranteou, que deu na telha de Kath dar um basta à vida besta. Nem tinha terminado a faxina da sala do doutor, quando pulou do décimo andar do escritório. Colocou antes, no correio, uma cartinha a ele, onde contou tudo, desde o dia em que ela chegara do interior e o vira pela primeira vez. Guardou a lembrança na memória da esperança: primeira figurinha de um álbum que nunca conseguiu preencher. Claudnei nunca entendera nada de corações de mulheres. Ainda nessa hora, imaginou que Katherine promovera a cena derradeira apenas para, como dizer... sacaneá-lo.
domingo, 6 de dezembro de 2009
...outrossim, levaremos

O primo Waldir incumbiu-se de levar os aperitivos mais caros. Ele pode, né? Anda metido com a política na cidadezinha dele. Não quero dizer nada, mas você viu o carrão que ele comprou? Peça, portanto, apenas àquela degenerada da sua irmã que ao menos faça um doce, já que nunca fez nada na vida.
Bem, na esperança de que esse será mais um Natal inesquecível de nossa família, despeço-me, cordialmente. Até o dia 24 de dezembro.
sábado, 5 de dezembro de 2009
Menos por fraqueza

Perdeu a pose no clube, quando João Trinca, cansado de suas fantasias mirabolantes, lascou na roda uma máxima de canto de boca: “Olha, Orlandivo, outro dia Deus me chamou para consertar o Diabo e eu não dei conta, não. Se Ele te procurar, pode dizer que é meu amigo!”.
sexta-feira, 4 de dezembro de 2009
Orientado era o que era

Orientado era o que era. E por nunca se perder, decidiu ganhar a vida como piloto de rally. Estudou mecânica, arrumou o velho Opala e com o dinheiro acumulado dos últimos cinco décimos-terceiros comprou um computador de bordo. Não era lá muito crédulo na perícia de Alice, sua mulher, de quem reclamava das faltas ou dos excessos, mas era ela quem estava à mão. Pilotaria o Opala, enquanto ele seria o navegador.
Largaram, com um intervalo de dois minutos do carro anterior, e mantiveram a regularidade, similar àquela que mantinham no casamento, consumido pelos muitos quilômetros e baixa velocidade. Passaram poças, trilhas, buracos e crateras. No limite da glória, Alice o beijou, “meu navegador”, disse dengosa. O resultado veio logo: primeiro lugar, na estréia. Sorte de principiante, intimidade confirmada, meses de luta para o merecimento dos dez mil reais. Foram comemorar no Bar do Pulo, beberam e pularam. Na saída, a fatalidade: o carro deu de frente com uma carreta carregada de frangos para o abatedouro. Ele morreu na hora. Alice sobreviveu, capenga e desorientada. Jamais soube onde foi parar o dinheiro do prêmio.
quinta-feira, 3 de dezembro de 2009
Dado o espaço

Passou na revenda e levou um carro zero à mulher. Da joalheira, comprou um pequeno colar para a amante. Mas foi no açougue que fez a festa: esnobando farturas para o churrasco com os comparsas. Só não imaginava que Dorival, o braço-direito, resolvesse ceder a mão para o cumprimento dos adversários, e as meias para armazenar os mimos financeiros da contra-informação.
À polícia, que descobriu a bandalheira e colocou tudo na mídia, justificou-se convicto: “tenho uma conta no açougue, doutor. Estou devendo, inclusive, oito peças de picanha!”.
quarta-feira, 2 de dezembro de 2009
Pousou manso

Era metalúrgico, de ombros largos, cabelo semelhante ao pelo das ovelhas, aloirados. Não se lembrava bem se, no dia do crime, atacara a moça com uma faca ou pedaço de madeira. Sabe que bebera um café preto e três cachaças, pagou e saiu da birosca, quando voltava da fábrica. Então um homem sério iria aceitar zombaria de cachorras-do-funk? Depois, se lembrava de uma sinistra calmaria. O teto da casa, idêntica a tantas, naquele conjunto habitacional girava único. A noite, estranhamente lisa e sem ruído, se quebrou com a porta, na ponta do pé de bota do policial nervoso. Levaram-no, perigoso, sem nunca ter ofendido ninguém.
Contou a Alma que, já rapazinho, quebrara o dedo do patrão numa desavença, o resto, disse-lhe várias vezes, é passado.
terça-feira, 1 de dezembro de 2009
Com a nitidez

segunda-feira, 30 de novembro de 2009
Verve musical

Convidou a turma para ir a casa dela assistir seu concerto. Carecia conserto. Não que se rejeite um convite, mas ouvido também tem limite. Isso não se faz, Arnesto. Pois não é que a bruxa lascou “Brasileirinho”? Foi a própria representação do povo no diminutivo: pobre, capenga e tropeçado. No fundo o que deu foi uma raiva pândega. Só rindo da ousadia! À boca pequena, quase soprado, um olhava para o outro e pensava num lugar apropriado para ela enfiar a flauta, e bem que poderia ser na transversal, pra coisa saber que com música não se brinca!
domingo, 29 de novembro de 2009
Conto vagões

Nesse meu aniversário de oitenta anos deram-me uma locomotiva de brinquedo. Vai ver imaginam que eu goste de trem. Odeio! Conto todos porque sempre pensei em explodir um deles pela metade, mas nunca cheguei a um número absoluto que fosse a metade. Daquele, bem no meio. Eles mudam de quantidade. Deve ser para atormentar minhas contas. Safados. Na dúvida, mantenho essas dinamites no guarda-roupa há quarenta anos. Se não errei até agora, espero mais um pouco. Quem sabe padronizam, para o meu prazer.
sábado, 28 de novembro de 2009
Quando perguntavam

Seguia a orientação para luz que têm as plantas. Falava em “perda de tempo” para quem insistia em “ganhar o tempo” com a mesma desfaçatez com que os cachorros fazem sexo, quando encontram uma cadela no cio. Respirava anônimo. Soletrava pensamentos. Murmurava pausas. A letargia da existência era para ele a própria essência de existir. Mas percebeu a ironia de Orlando, quando este o apelidou de “Nobody”! Foi com um gemido de pesar que olhou para o ex-amigo. Um descontentamento incidental conseguiu, enfim, roubar-lhe a atenção, e com a vagueza da distância entre um pingo e outro de uma garoa, levantou os dois ombros simultaneamente, como se concluísse: “e daí?”.
sexta-feira, 27 de novembro de 2009
Hora do lanche

Ao sair da sala olhou para trás. Vaso com flores frescas sobre o aparador, tapete em linha exata à escrivaninha, as pequenas almofadas arrumadas à esquerda do sofá comercial, portas internas fechadas. Tudo na mais perfeita ordem, pautada pelo rigor da empresa. Apertou o botão do elevador e olhou para o botão de chamada, como se visse o infinito. Desceu estática com dois outros homens que já se encontravam no elevador. Foi ao estacionamento e entrou em seu carro. Tirou do porta-luvas o frasco amarelo, e com a água da garrafinha que estava no console tomou dois, quatro, seis, oito, doze comprimidos. Ajeitou-se no banco e esperou pelo resultado. Enfim, sairia da rotina.
quinta-feira, 26 de novembro de 2009
Profética

Oito horas depois, durante o resgate do centésimo primeiro corpo daquele incêndio terrível, um bombeiro menos graduado jurou ter ouvido de uma das vítimas, já moribunda, juras de verdades obscuras: “foi uma mulher, foi uma mulher. Ela parecia soltar fogo pelos olhos”. Mas relato perdeu-se na história da tragédia. Ninguém liga para alucinações, palavras mortas ou profecias.
quarta-feira, 25 de novembro de 2009
Impliquei com

terça-feira, 24 de novembro de 2009
Não era mau

Essa espécie de loucura, similar a das virgens que se julgam grávidas, fez de Percival um malquisto notório. Um antipatizado até pelos cachorros do bairro, que ele teimava em colocar para dentro de suas respectivas casas. A ruga de reflexão que carregava entre as suas sobrancelhas, porém, foi desfeita com a visão de Iolanda, a morena-jambo sagaz e sestrosa, que se mudara para lá havia pouco menos de uma semana. Com a leveza de um lutador de sumô, arriscou uns galanteios à moça, que lia sentada num banco da praça: “você deveria passar um protetor solar 30, para sua pele não sair nunca desse tom lindo que tem”. Indignada, a jovem o olhou da testa à ponta do sapato, diagnosticou a figura, e simulou uma conversa com uma amiga íntima: “na página 23 desse livro, a mocinha manda o cara ir à merda”...
segunda-feira, 23 de novembro de 2009
Duplicou a aposta

domingo, 22 de novembro de 2009
Já tá pensando

A urgência impregnava a cobiça. O anseio se fundia aos sussurros. Apetite e aspiração provocavam os hormônios sintonizados. Graciete fez o que pode para poder fazer. O namorado repetiu ensaios de proibições passadas.
Michael ergueu curioso o par de orelhas amarelas. Como se farejasse e festejasse a chegada da dona distante, pôs-se a babar sonoro: au, au, au, au, au, au, au, au, au...
sábado, 21 de novembro de 2009
Os cabelos

sexta-feira, 20 de novembro de 2009
Então fariam

Começaram bem. A fidelização dos fiéis chegava a 87%, o que lhes garantiria uma retirada de 3% sobre a receita dos donativos. Que passaria a 4%, caso atingissem a marca dos 90% de retorno. Mas, tanta metamorfose, os deixaram irreconhecíveis. Quando alardearam que eram, já, o próprio Deus, o pastor-gerente os demitiu, por justa causa.
quinta-feira, 19 de novembro de 2009
Prosaico e separado

Na margem do pequeno rio próximo à cidade, sob a copa da figueira, trocaram juras eternas de ódio à profissão de escriturários. A ânsia tátil, no entanto, não passou das baguetes com patê de atum, retiradas delicadamente das cestas, debaixo do pano xadrez.
quarta-feira, 18 de novembro de 2009
Dançar flamenco

Foi no colégio do bairro que a menina conheceu a imigrante espanhola Dona Guilhermina, teimosa professora, que insistia em manter as “raízes hibéricas” dos alunos. A japonesinha logo começou a ensinar seus pais a falarem a suposta língua nativa do Brasil: “holla”, “muy bien”, “a mi me gusta” e outras expressões corriqueiras. Mas gostava mesmo era de dançar, e não tardou em aprender sapateado ao som das castanholas. Destaque na pequena escola rural. Destaque na média escola municipal. Destaque na grande escola estadual, Carmen foi convidada a dançar para o presidente do país. Num gesto magnânimo, o poderoso político foi cumprimentar os pais da bailarina, após o espetáculo. O Senhor Yamagushi, depois de três genuflexões e de sorrir sem parar, respondeu-lhe aos cumprimentos, sem pensar muito: “muchas gracias!”.
terça-feira, 17 de novembro de 2009
Os lábios erguiam

segunda-feira, 16 de novembro de 2009
Vida cantora

domingo, 15 de novembro de 2009
O silêncio vincava

Tico-Louco ficava se rindo, com os olhos até vermelhos, da arte prazerosa. Amanhã à noite, na mesma horinha das duas e meia, arremedaria um estouro de boiada, um incêndio, essas coisas de medo. Depois pensaria nisso.
sábado, 14 de novembro de 2009
Conforto? Gosto
Cega e banguela ela perdeu o luxo. Tá ali, no sofá da sala, quietinha, a besta.
sexta-feira, 13 de novembro de 2009
Disfarçando a encabulação

quinta-feira, 12 de novembro de 2009
Otávia, onde você

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