
quarta-feira, 31 de março de 2010
Das formas

terça-feira, 30 de março de 2010
Vetusta e besta

Na hora marcada, um marco: Dráuzio surgiu de terno cinza, gravata em linha e perfume bom por toda a parte. Pedaço de mau caminho, pensaram todas aquelas da platéia histérica. Tendência ao horizontal, imaginou Veruska, já mais afoita. Esqueceram todas do lapso iminente. O padre bem que tentou, mas Dráuzio jamais conseguiu pronunciar o “sim”.
segunda-feira, 29 de março de 2010
Dois tapinhas

domingo, 28 de março de 2010
Aposto que coisa

Quando sai pela manhã vi Amadeu na porta da loja, caído, respirando sem fartura. Chamei o resgate, que chegou logo. O moço da viatura já viu os dois furos no braço de Amadeu e alguma coisa pra fora em sua face. “Vampiro ou cobra. Olha a língua, como espicha”, disse. A peçonha tiritava no pouco espaço quadrado. Cascavel. Fora deixada numa caixinha para presente, no caixa... Cobra no caixa. Bem feitinha que só vendo.
sábado, 27 de março de 2010
Com repulsivo

Como uma horda de vampiros, os presentes àquele velório queriam sugar a emoção da pobre até a última gota. Levar consigo um naco, parco que fosse, da tragédia alheia.
Com seu conhecido hábito de dizer as melhores coisas nos piores momentos (ou vice-versa), Katyna colocou suas mãos sobre as mãos cruzadas do morto e confessou, baixinho, embora todos a tivessem ouvido: “Agora, sim, Clodoaldo, terei confiança na fidelidade desse corpo!”.
sexta-feira, 26 de março de 2010
Quando disseram

quinta-feira, 25 de março de 2010
Empecilho na hora

quarta-feira, 24 de março de 2010
Convidou Olívia

Paciência é o preâmbulo da impaciência, sentiu cabreiro. Frustração é a ausência de um prazer inteiro, pensou decisivo. Então convidou Fátima para um sol. Sabe como é, a praia, o calor da areia, a cervejinha gelada, a brincadeira no mar, deixaram os dois bem soltos para um namoro dissimulado. E se amaram, gostaram e continuaram. Hoje vivem felizes no apartamento reformado do casal. Raivosa, Olívia não pode “nem ver” Fátima na rua.
terça-feira, 23 de março de 2010
Na mala

segunda-feira, 22 de março de 2010
O bom do esoterismo

domingo, 21 de março de 2010
A já comprida

sábado, 20 de março de 2010
Saiba morrer

Saiba morrer o que viver não soube, bocageou o tagarela Antunes, no momento em que baixavam o caixão de Gotardo à sepultura. A viúva de saudosa gotejou tensões, e arriscaria a fala no mais baixo calão contra Antunes, não fossem as circunstâncias cerimoniosas. Engoliu o gosto infeliz do silêncio, mas prometeu a sim mesma retrucar o impertinente.
Pouco tem se passou até a condição ao seu intento. O descuidado amigo do marido morto pairava soberbo sobre as falas, na roda de amigas fúteis, quando a viúva se aproximou serena. Retirou o homem num canto, e disse-lhe ao ouvido o que ninguém mais escutou. Antunes retomou tirante a violáceo. Por certo as moças não entenderam sua lividez. Que foi? Fala, homem? O que a viúva te disse? Amordaçado pelo escrúpulo, Antunes apenas esquivou-se ao verbo: “nada, nada, foram umas coisas que o desgraçado do Gotardo disse a ela sobre mim”. As moças trocaram risadinhas, frias e maliciosas.
sexta-feira, 19 de março de 2010
O hábito de marcar

Mulher no parque: tomate. Pivete no beco: tomate. Motorista de táxi: tomate. Gay na sarjeta: tomate. Homem de terno: tomate. Sim, sherlocou Kassadhor, a próxima seria uma velha em casa. E foi ter com a avó, que não saía há séculos. Bingo! Cadú tirava a faca da bainha quando ouviu o click atrás da porta, e mirou o revólver engatilhado do delegado que apontava ao meio de sua testa. Pasmado, Cadú deixou a faca cair e esperou a morte. Na outra mão Kassadhor tinha um tomate, que espremeu entre os dedos para o horror do assassino. Cadú bem que tentou lamber-lhe os dedos...
quinta-feira, 18 de março de 2010
Das várias prisões

quarta-feira, 17 de março de 2010
Era o demônio

Era o demônio infante, com seus oito anos de idade e maligna astúcia. A mãe dizia que “não”. Que crianças não são ruins. Cria, a coitada, que Rousseau tinha razão. Até que a coisa, aquilo, ela, a criança, pintou com batom sutil a gola branca da camisa do pai. Sabia, é óbvio, as conseqüências, mas o genitor negara-lhe o jogo de vídeo game que queria, e queria, e queria. E riu oculto, da fúria da mãe com o pai; dos gritos de ódio da suposta traída; da defesa vã do homem inocente. Então simulou o choro sentido, o sofrimento de pureza infantil que, sim, cessaria, com o conquistado jogo de videogame.
terça-feira, 16 de março de 2010
Não determinou

A dessemelhança dos meios, ainda assim, igualava-se nos fins. José fugiria com Lena, filha de Paulinho Bubú, dono do tráfico na vila Elvira. Haveria, porém, que tirá-la do mocó paterno, o que seria, em si, uma missão para um batalhão de elite. Mas destemido e apaixonado, foi em frente. Evitou matar à toa (só não poupou os inevitáveis) a escolta de Bubú. E deu com Lena, lívida, sentada de frente na sala do pai. José corria até ela quando Bubú surgiu detrás do armário do canto, com o intestino debaixo da pança e a metralhadora sobre ambos. Dois, quatro, seis, muitos tiros em repetição. José tombou de amor e bala. Seria aboio seu grito, não fosse sampleado.
segunda-feira, 15 de março de 2010
Feito massa
Pena que a doce moça teve que dizer isso à polícia, num interrogatório que durou horas. Ninguém conseguia entender como Odécinho pode morrer naquele encontro com o poste, quando, distraído, olhava para Orlandinha, do outro lado da rua. A cegueira do amor não o atentou ao obstáculo do primeiro plano. E a primeira vista foi a última que viu, antes de quebrar o pescoço.
domingo, 14 de março de 2010
Pedi caipirinha

Depois vem um todo difuso, de sílabas soltas ou amalgamadas à lerdeza indolente das frases pouco apropriadas, de recompensa – sabe Deus por quê. Arte de ser oportuno ou impropriedade dos gestos? Como compartilhar o incompatível? A morte ou a merda, são desfrutes individuais: morro ou cago sozinho! Outro gole e um olhar ao verde da casca de limão partido. Estalo no palato, siberianamente gelado, expia os males.
sábado, 13 de março de 2010
Confesso que

Acho que é porque não me sinto completamente feio, só grotesco. Então com esse ar de fanfarrão nostálgico, vou abrindo ao amável e distinto leitor a possibilidade de textos repletos de despropósitos e carentes de compreensão segura. Iuanderstén?
Quando a confissão chegar à minha paixão por flores artificiais, móveis encapados com papel contact e sofá brilhantes de tecidos sintéticos, corte a trela, leitor. Você não merece bestificar-se.
sexta-feira, 12 de março de 2010
Deu ao filho

“Quanto mais me elevo, menor eu pareço aos olhos de quem não sabe voar”, confessava de si para si próprio. Até que deu de cara com a fisicamente enorme Claudilene Curry, a austera e redonda professora de filosofia da renomada universidade pública. Ao ouvir as asnices de Paulino, aquela quantidade enorme de humanidade desferiu-lhe uma citação shopenhauerana: “quanto menos inteligente o homem é, menos misteriosa lhe parece a existência”. Aquilo deixou Paulino indignado. Com a mesma cara que teve ter ficado o Cristo, quando Judas tocou-lhe com os lábios.
quinta-feira, 11 de março de 2010
Nunca lhe indagaram

Impunidade é uma certeza. “Não se pode vacilar”, ensina aos mais novos, professoral. Já formou vários, orgulha-se. “Alguns renegam, mas a maioria ainda passa por aqui, na delegacia, e deixa sempre uma lembrança pra gente”.
Bom pai de família e religioso exemplar, teme pela aposentadoria que se avizinha. Marcaram festa e tudo para o mês que vem. Como sofre de ansiedade, comum na profissão, já avisou que fará o pé de meia nos próximos dias. “Tem muito milionário safado que, agora, vai contribuir”, adverte ameaçador... e precavido.
quarta-feira, 10 de março de 2010
De porte

terça-feira, 9 de março de 2010
Reuniam-se no imponente
O conferencista quase sempre era um catedrático da universidade pública da área de humanas. Segundo ou terceiro escalão, mas com a pose de primeiro. Como pouco lia, quase não publicava e tinha uma contribuição nula à ciência, falava aos seus, ali reunidos.
- Uma flor, professor?
- Penúria! Dizia com sapiência aos poros, ante o olhar admirado e encantado da platéia, que tomava chá e absinto, porque tinham a ver com aqueles momentos. Os encontros poderiam compor o currículo Lattes de todos, não fosse um coveiro ignorante acabar com a magia do evento: - “Olha aqui, sem autorização da Prefeitura não vou mais deixar vocês ficarem aí, zumbizando”.
segunda-feira, 8 de março de 2010
Um sulco

domingo, 7 de março de 2010
A mostra de arte

Artistas mortos riam do céu, observando a corrida de compradores afoitos. Os vivos dessabidos agradeciam-lhes a influência. E aquele salão improvisado afundava. Um compre antes que acabe literal. Madames enchiam sacolas de bonecos vitalinos. Espertos enrolavam telas com anjos e caras de Poteiro. Embalavam Silvas e Ivonaldos. Os consumidores, porém, não levaram tudo. A areia com as obras acabou tragada pela Terra faminta. A arte submergiu no solo movediço.
sábado, 6 de março de 2010
Crio, sim

sexta-feira, 5 de março de 2010
Empombado com Kafka

Não contava, porém, com aquela audiência. Estranhamente, os presentes haviam lido a obra kafkaniana. Do moço moreno alto, da terceira fileira, começaram a sair as primeiras hastes, que serpenteavam no ar, tocando a face do conferencista. Logo outras hastes brotaram na obesa senhora da segunda fileira. E outras, muitas, todos os presentes envolveram o profanador de livros, com inúmeras hastes que lhes cresceram às testas. Antenas de insetos; se sabe lá qual. Ajustaram às bordoadas a face do homem aos picotes do livro. Obrigaram-no, por sinais e tabefes, a comer os pedaços do papel letrado, página a página, palavra a palavra, até que ficasse verde, sem fôlego. Então retornaram todos à condição humana, com o ar displicente daqueles que nunca presenciaram nenhum fato estranho.
quinta-feira, 4 de março de 2010
Queria visitar

Quem sacia a sede, se coça e ainda faz troça na seara alheia, hora ou outra descobre que a recepção virou desforra. Camilo não queria visita. Traçou vingança. Quando Rivaldo chegou, continuou a dedilhar o teclado do piano, como se nada... O litro de uísque estava ali, aparente e insinuantemente despojado no balcão do bar da copa. Rivaldo logo se serviu, e abasteceu Alzira, sem escusas ou licenças. Com os gelos tilitando nos copos, ofereceu ao anfitrião. Camilo sorriu enigmático: “não, não bebo isso!”.
quarta-feira, 3 de março de 2010
O atestado

terça-feira, 2 de março de 2010
Estilista de sucesso

Não deveria ter chegado ao ponto de eletrizar poltronas. Choque e gordura tendem a uma explosão sinistra. Mas seus íntimos propósitos viriam consolidar-se. Em entrevista à imprensa, ante a revolta das senhoras, foi enfático: “feios odeiam feios”.
segunda-feira, 1 de março de 2010
Seu assunto

Anti-herói de si próprio, jamais salvou criancinhas, ajudou velhinhas nas ruas ou deu esmola a aleijado. Até que encontrou Arquimedes, o ilusionista, que se dizia capaz de materializar os sonhos alheios. Sem receio ou fingimento, pôs-se a contar-lhe o sonho com Eva e Linda, a gêmeas xipófagas por quem se fizera apaixonar, a fim de promover-lhes a discórdia. Arquimedes envolveu-se na trama, e logo desmascarou o contador: “elas fingiram que te amavam”, sentenciou seco. Rubro e sem jeito, o rapaz calou-se, definitivamente. Nenhuma palavra, nenhum sonho. A desilusão no amor fora o pesadelo definitivo.