quinta-feira, 31 de maio de 2012

O abuso

O abuso começou na quinta dose. Na primeira, foram apenas palavras. Cresceram à condição de balelas, na segunda. Ao final da terceira ainda era passível de perdão – sentimento cuja distância se tornou quase inatingível, na quarta. Afrânio vacilou. Sabia que levar aquele destilado oculto no bolso do outro lado ao batizado do sobrinho seria um ato de heresia a si – incapaz de conter-se. Objetar o padre, cantar a madrinha, difamar o coroinha e entornar a água benta seriam consequências óbvias, ainda que pouco usuais para a cerimônia. Exagero foi o xixi na pia batismal... com aquele membro minúsculo.

quarta-feira, 30 de maio de 2012

Pela manhã

Pela manhã o anão saiu em busca de emprego. A falência do circo transformara mais a sua vida do que a dos três tristes tigres magros ou a do elefante órfão, ora bem hospedados no zoológico. Os fantásticos cães patinadores vivem ainda de pequenos números mambembes, em frente ao barraco periférico de Deisy, a decrépita trapezista e adestradora, que cobra simbólicos ingressos no chapéu, para fazê-los deslizar sobre skates. O anão bateu nas portas e recebeu risos, como se tropeçasse nas lápides de suas próprias sepulturas. Passou a beber mais do que o seu tamanho. Mais alto que todos, decidiu se arriscar no contorcionismo sobre as mesas de bares. Passou os
pés pelas mãos, até se entrevar e virar uma espécie de vaso no hospital psiquiátrico, onde é regado todos os dias por enfermeiros e loucos que esperam, quem sabe, a sua transformação em flor.

terça-feira, 29 de maio de 2012

Amarelo milho

Amarelo milho era a cor das tranças de Flamínea, o resto era ruína. Certas dores, queixas que recém-chegavam em todos os minutos, pontos obscuros no caráter. Uma vastidão de problemas nos quais cada chama resultava em queimada. Mas que tranças! Devorava os olhares sem clemência ou salvo conduto... até que, o tédio de Flamínea. Bem que tentaram psicotrópicos e placebos, garanhões e mancebos, tiveram muito amor e perdões, tudo em vão. Nada anulava o corpo e o gênio que sustentavam os fios, a cor da espiga madura, aquela luz... que tranças!

segunda-feira, 28 de maio de 2012

Tinha planos

Tinha planos plausíveis de estudar piano no período noturno. Georgina, então, comprou um tênis confortável, capaz de se ajustar harmonicamente aos seus passos, que a levariam ao conservatório relativamente próximo. A roupa seria casual. Afinada ao propósito: jeans e quem sabe umas poucas camisetas novas. Passaria um hidratante nas mãos, seguramente a parte do corpo que seria mais observada pelo professor, ou professora, tanto fazia. Na papelaria do shopping achou bacana aquela pasta vinho, de couro trabalhado, na certa a composição perfeita para o transporte de peças e partituras. Como vira na televisão os cabelos da pianista russa balançarem muito quando tocava, pensou que uma tiara prata seria ideal, para impedir que o ritmo desalinhasse os seus próprios. Meses de intensos preparativos para o curso, e Georgina se convenceu que sempre fora uma desafinada.

domingo, 27 de maio de 2012

Decrepito ainda

Decrepito ainda colou a rosa no furo certo do vaso. Olhou para ela como quem vê o mar pela primeira vez. Seguiu em passos lentos à poltrona da patroa e simulou uma associação ao gesto anterior. “Nossa, minha velha, quantas meninas assim, em botão, eu seria capaz de trocar por você”. Ouviu um resmungo indiferente, um cheiro algo flatulento e percebeu sem aflição que mais uma vez era ignorado. Sentou-se, ligou a televisão num programa de auditório, no qual havia nádegas que rebolavam. Trocou todo o seu mundo por aquela tela: viva e colorida. A mulher bem que percebeu seu interesse pelas imagens, uma motivação comum nos últimos quarenta anos de convívio. Achou melhor deixá-lo lá, com as ninfas oníricas, enquanto ligava para as comadres, com as quais poderia comentar, desopilante, as impertinências daquele “idiota”.

sábado, 26 de maio de 2012

Empurrou a manteiga

Empurrou a manteiga rumo ao marido, mas não partiu o pão. Sequer a faca, sempre cedida por Carla, possuiu seus dedos, para chegar às mãos Josélio. Houve silêncio, café requentado, recusa da carona até o ponto de ônibus. Seguiram como sombras sobre o tapete quase persa da sala, num desdém tácito ao cumprimento das obrigações cotidianas. Nenhum desvario romântico aos cheiros mútuos dos perfumes, um até mais de menos. Meio dia, duas horas, quatro e os visores digitais dos celulares permaneceram escuros: sem ligações ou mensagens. Ela engoliu a contragosto um remédio para o tédio irremediável. Ele jogou com o estereótipo, e ligou a televisão para inserir o futebol em seu mundo. A jantarem junto, lanches, montados na medida das fomes individuais. Carla e Josélio viveram um dia daqueles...

sexta-feira, 25 de maio de 2012

A morte é

A morte é quando já não estamos, então há motivo para tê-la. O rabisco “já vou” deixado por Everaldo, no pequeno blocos de receitas do médico daquela UTI infecta, permanece um mistério. Foi quando pareceu que iria despertar de vez. Tinha algo de semichoroso nos olhos, as mãos trêmulas já pareciam viúvas, mas um riso provisório ainda lhe escapava pelo canto da boca. Tivemos uma conversa franca na véspera, e Everaldo disse que tinha a noção exata de seu saldo. Também não soube precisar que saldo era esse. Pediu para que eu lhe perdoasse o rancor, porque seus diálogos durante o coma não tinham sido lá muito camaradas. Não disse com quem conversou. Eu soube da notícia na noite seguinte. Ele, pelo visto, já sabia.

quinta-feira, 24 de maio de 2012

A doença do cara

A doença do cara! Polenta diária, porque a periquitos dava certo. Não haveria natureza insistente em titubear com a receita. Ao bem da verdade, o fubá mal não fazia. Ocorreu que Irineu se transfigurou ao ganhar aquela obesidade amarela, piorada pelo apelido de Sol, pelo qual passaram a lhe chamar, não pela luz. Ainda que não batesse em cego pelas costas, logo foram atribuídas a ele raras maldades que jamais cometera. Galinhas pondo defeito no ovo. E Irineu começou a charlar, feito ave falante, quando a ocasião lhe intimava respostas. Papos de tucano ou de periquito australiano. Saraivadas de indefinições sonoras, que acabaram por isolá-lo do convívio na vila. Ninguém nunca soube se foi loucura ou performance, mas Irineu se auto instalou em uma enorme gaiola no centro, onde permaneceu até a morte, ocorrida quando as boas almas deixaram de lhe oferecer papinha de milho.

quarta-feira, 23 de maio de 2012

No auge

No auge do sustento optou por parar. Demonstrou com o gesto toda a moderação que lhe doía. Um misto de prudência e falta de coragem, afinal, sempre marcara Leôncio, que somente a si próprio lamentava o sangue derramado. Por ponderação lhe escapou Celina, o cargo de entregador, a participação no videoclipe. Toda a constelação de possibilidades estelares sumiu aos poucos de seu céu. Nunca entendeu direito a falácia ou a amnésia que lhe tomou a mão para entregar-lhe a faca. O preço lhe foi posto sabe Deus por quem. Mesmo entre as vozes, que afirmou depois ter ouvido, junto as energias emergidas do nada, a única que distinguiu foi a do delegado moreno: - Por que você fez isso, rapaz?

terça-feira, 22 de maio de 2012

Exigem gravata

Exigem gravata para evitar dorsos. Nenhuma emoção abaixo da cintura. Eventualmente, um black-tie. Dramas relacionados, somente se regados a champanhe. Ações intempestivas significam exclusão sumária. O clube tenta minorar o sofrimento dos abastados. Na claque dos convertidos, Humberto Mattoso Souza e Silva abre a carteira. Deve apontar cinco negócios para todos ganharem muito. Rápido. São simpáticos nas distribuições fáceis e ascensões. Inflexíveis a prejuízos. O sinistro levou bola preta. Ninguém é padre, no máximo, psicanalista. Não estranhos para aquela fartura. Sem exceção, já consideram as sociedades secretas e os ditadores uma obsolescência de seus passados ancestrais. Ali, as coisas, hoje, felizmente, estão mais claras.

segunda-feira, 21 de maio de 2012

Onde todos

Onde todos, torpes, confabulavam sobre como elegerem-se na política, Liovaldo plantava hortaliças. Era a chácara do doutor, ele, o jardineiro. Ouvia ao longe letras soletradas: pê, esse, dê, bê, tê, vê e outras; de perto, os trinados de pequenos pássaros, que ali sorviam a água fresca da horta úmida. Gargalhadas, som discreto de ervas daninhas arrancadas. Brindes de uísque, simpatia para espantar serpentes. Exagerados palavrórios, esterco para adubar o chão. Liovaldo, em sua estreita eficiência, ouvia aquilo desatento. Havia, em si, um compromisso íntimo de plantar e colher, semear para produzir.

domingo, 20 de maio de 2012

Apresentou-se

Apresentou-se como o escandinavo, com excesso de bagagem. Falava línguas, descortinava horizontes, produzia maravilhas. Por desenvoltura, era capaz de curar apatias, pasmar doutos ou arquitetar softwares. Mais corsário que navegante, dissuadia as cismas. Um bom falante de aparência mediana. No entanto, e sempre há um no entanto, não contava com a aberração na forma de Bete. Toda Tróia, entrou na vida gringo com seus pecados e parentes. Numa das muitas brigas, deitou veneno no prato daquele turista de seus dias, e o viu virar os olhos, já com a arrogância agônica. Estrebucha, trouxa. Ainda o fez escutar, entre os aplausos dos irmãos e primos.

sábado, 19 de maio de 2012

O médio em riste

O médio em riste. Um rompante esticado pela janela do carro. Trajetórias de fúrias. Disputa anacrônica por uma ultrapassagem. Retrovisores emparelhados. Bizarros olhares em disputa por superações. Propulsão sincrônica. Bombas relógio. Uma espessa falta de sentidos à mínima proximidade. Ruído esplendoroso. Traições dos pneus às retas óbvias. Sinuosidades répteis marcadas no asfalto. Milhares de mínimos pedaços de vidros improvisados reluzindo sobre a pista. Uma roda roda muda virada para céu. Uma universal incapacidade de durar. Uma cena feita agora de silêncios. Pelas janelas, nenhum dedo, só visões horripilantes.

sexta-feira, 18 de maio de 2012

De cabeça

De cabeça para acho, Társio negava sempre um é isso ou aquilo. Sujeito inerte às interpretações e julgamentos. Sentenças, nem pensar! Ou não, era a conclusão inalterável de seus vereditos. Um ente irresoluto entre o bruto e o condescendente. No sábado, combinou com Vilma um cinema, um filme, num shopping. Assim, um qualquer um. Vilma, afinal, lhe dilatara as pupilas, atiçara o miocárdio, sugerira um sumo de paixão naquele poço de hesitação. Poria amarelo ou bastava o cinza? Um par de tênis ou sapatos sociais? Independente de qual roupa, Társio se recusava a mudar sua conduta e ir à luta. Logo sentiu um arrepio de arrependimento. “Podemos não ir?”, arriscou ao telefone, ao menos uma vez. Possessa, Vilma rompeu a relação mal iniciada, e Társio, entre o triunfo e a frustação, tratou de tirar suas conclusões: daria certo, mas não prestaria.

quinta-feira, 17 de maio de 2012

Empilhados

Empilhados com rigor mortis, os abacaxis intactos pareciam obedecer ao comando de Janus, feito pelotão em ordem de sentido. Mascotes sondavam os vãos elaborados pelo velho. Buscavam o segredo para aquele exímio equilíbrio da pilha. Janus e seus tantos anos guardavam ocultas as incisões cesarianas que dissimulavam nas casacas, sem melecas ou vestígios, capazes de desaperceberem os olhos dos muitos fregueses que paravam para comprar as frutas. A simetria daquilo era um merchandising prestes a produzir o pão, o leite, o lucro de Janus – apenas um vendedor de abacaxis de beira de estrada, que tinha a calma de um monge e a precisão de um atirador de elite.

quarta-feira, 16 de maio de 2012

Na falta

Na falta se fazia sem. Ali, a fartura era mesmo um acaso. Sopa de pedra, carro sem roda, pipoca apesar do milho. Mocinhos se viravam. Moças contavam coisas. Até os cães sabiam que os ossos dependeriam de acidentes com bichos. Nascia-se, mas sem convicção. Se chuva, sorte, naquele Sol forte. O ceguinho entrava em vertigens, o manco era perseguido pelos rastros falhos na areia, a dona porque dava era bem vista. Todas as diferenças vagavam com licença poética. Com esta, se construíam casas, crianças e brinquedos. Pobres? Apenas os mortos. A vigília pela vida, nessa complexa operação, era problema coletivo, sem anestesia.

terça-feira, 15 de maio de 2012

Garfo à direita

Garfo à direita. Do outro lado, a faca. Concernente à pessoa de Horácio, aquele era o começo. As disposições se multiplicavam. O guardanapo haveria de estar sob a faca, de maneira a abrir margem calculada também à taça (ou ao copo, nas situações menos formais). Um homem feito de demarcações, era Horácio, que encarava a obsessão como virtude. Imune ao improviso preferia não comer. Ou morar, se a mesa fosse colocada à deriva do círculo central da sala. Exagerou a tal ponto nas formas, que Madalena se furtou em lhe conceder seu conteúdo. Vosmecê é um ferimento em minha pele de jambo, falou desleixada. Horácio logo apanhou os esparadrapos. Haveria de curá-la aplicando-os em cruz. Dois centímetros em cada ponta...

segunda-feira, 14 de maio de 2012

Do assunto

Do assunto do momento era um completo isento. Desinformado ao ápice. Melhor assim, dizia de boca e convicção cheias. Pouco sabia da política, nenhuma crítica, ilhota em meios aos mares. - Andam lendo pastiches por aí, ouvindo acolá, acessando assuntos o tempo todo. Para o erro do mundo criam alternativas e doenças tardias: depressões, transtornos, sustentabilidades e milhos com gosto de bacon. Sinto tanta cretinice que até poderia me deitar num desses berços esplendidos, ao som do mar e à luz do céu coberto, para aprimorar o ócio que me completa. Se seria uma perversão, porque estaria pelado, pouco me importaria. Não carrego nenhuma conclusão, exceto a de que os velhos são mais maravilhosos ainda quando crianças.

domingo, 13 de maio de 2012

Água pela cintura

Água pela cintura é exagero do parasita do 405. Mostrei à minha vizinha hipocondríaca aqui, do 506, que o vazamento em meu apartamento nem de longe se aproxima daquele do 1104, ocorrido há uns cinco anos. Todas aquelas mulheres de vida fácil, do décimo andar, o de baixo, só não ficaram a ver navios porque era impossível levar um transatlântico àquela altura. Processaram o estelionatário do 1104, por lucro cessante. Ele, é claro, deu calote, mas a velhinha histérica do 904 murchou os quatro pneus daquele carrão que ele tinha (que depois a financiadora veio aqui no prédio, deu toda aquela baixaria, e o tirou dele, por falta de pagamento). Já chamei o encanador, disse ao síndico corrupto, agora não tenho culpa se o cara é enrolado. Depois, como o pobre cano da minha pia iria prestar? Se aqui nada e ninguém vale um pingo d'água.

sábado, 12 de maio de 2012

Orgulho e convicção

Orgulho e convicção não eram estados na alma de Edelmiro, eram constantes. Daí a julgar tortas todas retas óbvias que Emília lhe apontava. Não aceitou o descanso na gripe, respirou o insalubre trabalho, segurou buchas no costado. Morreu como um peixe, debatendo-se por água, com os olhões vidrados. Emília tratou de repor aquele encosto teimoso, quando se deu com Gumercindo, tímido e indeciso. Ouvia para tudo os conselhos da mulher. Sarou de gripes, trocou de emprego e se desligou das desavenças. Emília, à beira da bílis cerebral, passou a entreter seus tremores criando ao moço ordens absurdas, que o bom companheiro cumpria com a mansidão dos simplórios. Sempre ordeiro, obediente nas ocasiões, risonho. Só chorou naquela manhã fatídica, na qual a mulher se enforcou na despensa.

sexta-feira, 11 de maio de 2012

Salvo engano

Salvo engano ou conduto, hei de seguir sempre sem deixar me estraçalharem as mágoas. Abolindo essa escravidão, a reta vibra pelas linhas tortas, em movimento infantil, apanhando a fruta daqui ou parando para observar, ali, a folha de outono que cai sobre o balanço de corda. Assim, fazendo as pazes, evito guerras prováveis, das quais meu exército de dissimulações indiferentes já sai vencedor sem nenhum tiro. Confiro, respiro, conspiro e me inspiro para as variantes de uma espécie de saber emocional, que tergiversa em danças espirituosas, bailados alados, motins sem intenções ou fins. E riso explícito, explique-se, porque a máxima da vida é mesmo não dar a mínima.

quinta-feira, 10 de maio de 2012

A condição

A condição de Adelaide parecia muito pior do que de fato estava. Parecia distinção se lhe perguntássemos sobre sua saúde. Tinha dores e respostas para tudo. Da fala sôfrega à perna ligeiramente manca, queixava-se de um mal maior ao menor sintoma de uma banalidade. Sua bondade, porém, não fazia distinção. Alegrava feirantes e ambulantes, padeiros e aventureiros, elevando todos à condição de médicos graduados, para os quais expunha seus diagnósticos terrivelmente irreversíveis. Andou melhorzinha, quando o jornalista da gazeta, num reverso às histórias de Adelaide, arriscou um exercício ilegal da medicina, e lhe receitou doses diárias de notícias tristes. Como ela logo constatou, no entanto, a coisa funcionou como aquela melhora que se tem antes da morte.

quarta-feira, 9 de maio de 2012

Ameaçou o que

Ameaçou o que existia: sua situação de chefe na consciência dos colegas. Menos pelo descontrole da fala que pela tentativa insana de os corromperem para o silêncio. Não deveria ter chutado a máquina de fotocópias e reproduzido pistas daquele mau humor, que dissimuladamente o habitava. O provocado curto circuito no computador servidor foi um desserviço às horas furtivas que todos usavam para curiosidades múltiplas ou redes sociais. O fim do fôlego, porém, foi causado pela ameaça à Dona Júlia, a faxineira, cujo único desvio foi de impedir que a culpa por tudo aquilo recaísse sobre si. Das demissões, ninguém admitiu que ele ficasse...

terça-feira, 8 de maio de 2012

Cochicho

Cochicho se preciso, mas não gosto. Quando a música não para, o barulho se avoluma ou dá uma vontade boba, então... Não que seja de propósito. Não fosse um esquecido, nem lembrava. Foi pro Heitor que eu disse “lavo as minhas mãos”, assim, num sussurro cochichado, quando queriam saber minha opinião sobre isso e aquilo. De coisa que não tem alcance eu canso, não falo ou então... Tem situação mais besta? A gente tá lá, viu o filme, e logo um pulha quer saber se gostei. Mania de tudo comentar, tudo querer saber. Ah, eu parto, me aparto logo. Vai que é por isso ficam pintando por aí a minha língua de preta? Ela me habita e pronto. Sabe a Cléia? Um dia, assim, mais silencioso, eu te conto.

segunda-feira, 7 de maio de 2012

Certamente porque

Certamente porque o azul desse céu há de escurecer até um tom que deixa de ser, não digo agora sua cor. Essas incógnitas do olhar, eu juro, não são distrações. Estão aí, sim. Tão mais reais quanto a abelha que gruda em nossos cabelos sem finalidade alguma. Todos pensam que isso é óbvio, porque ninguém escurece com tal intensidade da tarde para a noite. Meio tolos, comparamos tudo a nós mesmos, esquecendo por esses lapsos que, nesse momento, não somos o centro do universo. Aliás, devemos sê-lo somente na hora da morte, quando nossa grandeza de então deixará um pouco mais de ar, para que outros respirem.

domingo, 6 de maio de 2012

Entrou no carro

Entrou no carro sob a chuva. Jamais a havia visto. É para me proteger, ela disse, antes de enfiar o indicador no dial do rádio, porque não gostava daquele jazz que tocava. Sensível aos pingos ela era, explicou depois, e ele, sem outro espaço, ouviu. Então falou coisas dignas. Do tipo que remete aos inesperados momentos aos quais gente, assim como eles dois ali, se vê submetida. Acontece. Meio sem mote ou tema, ele disse é. Ela, então gralha, gracejou acerca do destino, que deve haver, porque senão... Meio julgando cilada ou pensando nos azares que nunca pode evitar, ele sugeriu um destino específico. Te deixo onde, exprimiu, meio interrogativo meio três pontinhos. Sei lá, “aquilo” ali displicente respondeu. Ele freou o carro, pensou um imperativo desça, mas atenuou com um bom, então... No sinal da avenida o senhor pode encostar à esquerda. Ah! Cuidado com o buraco, naquela esquina há vários.

sábado, 5 de maio de 2012

Desordenado

Desordenado como uma gripe, o vilarejo cresce sem dar trelas às profecias para as idades dos habitantes. Suas irregularidades étnicas e estéticas são narizes que escorrem. Tosses disfuncionais, apenas pelo prazer do som, que tanto desprazer promove a todos os outros que o ouve. Há meio século ou pouco mais ele me convida a vivê-lo. Quando mudo a trajetória, gera recursos. Se recuo, cria um fausto consumado, tal tivesse a força de um pacto pela permanência da alma. Aquele ali, meio fura bolos, hoje está mais para mindinho. Dona Tânia era a mesmíssima besta quando Taninha. No poço do cataprum agora há enchentes. Febre alta, céu cinzento. Um Sol que não minimiza calor, nem no inverno, nem nos limites de algumas licenças temporais. Mau meio esse meu meio. De agora em diante o óbice cai na gandaia. Ainda que essa última espécie da geração tenha aprendido a gostar de música maneirista portuguesa e pizzas de aliche.

sexta-feira, 4 de maio de 2012

Dada a fazer

Dada a fazer prestígios, Gabriela foi desacreditada maliciosamente pelo amargo proprietário da doçaria. A primeira vez reclamou do suposto chocolate granulado de segunda. Depois, da consistência: muito duros ou muito moles, meio à similaridade de seus humores. Mas o homem não tinha planos que se equiparassem às críticas, nem grandeza capaz de separar a insensatez do discernimento. Gabriela bem que tentou reforçar no leite condensado, dulcificar os movimentos, tornar ternos os arranjos de maneira a propiciarem boa visão. O desprezo do homem, entretanto, chegaria às raias da obscenidade, não fosse a interrupção dos laxantes, que Gabriela passou utilizar nos docinhos diários, antes de lhe servir como amostras. Constrangido por outros impulsos, o já nem pensou mais em dizer mal dos prestígios.

quinta-feira, 3 de maio de 2012

Como todos

Como todos, Alexandre acreditava naquilo que diziam os fabricantes em suas propagandas, e passava fome. Jamais aprendeu a ter dúvidas ou a arte do esquecimento das mensagens publicitárias. Cria, porque lera, vira ou ouvira. A fome surgiu do regime com uma “ração humana”, que engolia desgostoso em companhia de um refrigerante energético milagroso e eficaz. Faminto, engordara dezenove quilos, sem deixar de multiplicar os slogans dos produtos que assimilava feliz, e que já impregnavam suas vastas medidas. Como um enorme ente platônico, travou a fala na frase: “emagreça sem pressa”, que repetia ligeiro, ao menor sinal de vergonha que pudesse lhe propiciar uma indagação alheia. “Povo inculto”, dizia.

quarta-feira, 2 de maio de 2012

Sicrano, não sei

Sicrano, não sei se tem barbas ou não. Alto ou baixo? Louro ou moreno? Essa indeterminação de sua pessoa, na parte que não me toca, lembra o Fulano. Sujeito sei lá. E se quer saber, pouco me importa também, quando chegarem, quem chegará primeiro. Não fiz distinção no horário dos convites, assim, colocando um intervalo de dez ou quinze minutos entre um e outro. Inclusive, pouca ou nenhuma notícia tenho sobre Beltrano. O que penso é que todos devem ser baixinhos, para deixar que qualquer outra pessoa, com CPF, RG e nome próprio ganhe importância sobre eles três. Enfim, devem ser idênticos, “até no fato de acreditarem que são diferentes”.

terça-feira, 1 de maio de 2012

A meia distância

A meia distância do mal, Dourival respondeu que sim assim que o fim de Monique lhe foi entregue pelo chefe. Era véspera de um feriado besta, e fora de Dourival a ideia de pedir que emendassem, logo atribuída à moça, quando o chefe chegou para as satisfações. Disse que não disse, mas que ela dissera. “Insufladora, comunista”, berrou o líder, antes de demiti-la. Um tanto constrangido, Dourival a encontrou na saída: ele para casa, ela para a rua. Bem que oferecia um calhorda adeus, quando sentiu entre as pernas o peso do tênis barato elevado à força de murro bem colocado. Tentou em uivos pedir perdão, mas Monique decidiu que ele emendaria o feriado... por recomendação médica.