terça-feira, 31 de janeiro de 2012

Imbróglio besta

Imbróglio besta, com a alcunha de vendeta. Putz, juridiquês, doutor! Coisas do crime, caro Cartoval. Não sei, não, isso me lembra palavras de juiz, manja? Fedelho, bedelho, essas perambulações babacum est, diacho de um latim tirano. Ledo engano, Cartoval. Exceto o “besta” que é tonto, são vocábulos beligerantes. Arrasou, doutor! Mas, ara, será que isso me sara? Da vendeta? Não sei, Cartoval. Vai de você, compreende? Soprar minhas palavras ao vento de uma vingança é por um pé na sentença ruim. Então qual é manha pra evitar a prensa? O perdão, Cartoval, o perdão. Não elimine o homem. O que? Dar gosto pro titica? Agradeço, mas passo. Decifrar-te, Cartoval, é como compor caricaturas com as nuvens do firmamento. O senhor é meio boila, nu’é não doutor?


segunda-feira, 30 de janeiro de 2012

Duro e filosofal

Duro e filosofal deu uma pausa ao copo. Por que quem me ama precisa de dinheiro? E virou rápido outro trago. Nas redondezas da alma o clima lhe era nebuloso. Contou as notas, insuficientes para o amor, já sentindo a repulsa que causaria em casa. Nem uns trocados para os beijos de boa noite, uma conta de luz quitada para a clareza dos bons sentimentos. Sendo e cedendo, nunca seria essência eficaz de si próprio. Haveria que pedir mais uma, vagar nas redondezas do destino e se tornar imóvel ante as perguntas pelo pão, já consumido pela prole nos cursos de pilates, cabeleireiros e terapias pagas para lhes ensinar a viverem duros. A outra opção era o rompimento, que não lhe era caro, mas saía mais em conta.

domingo, 29 de janeiro de 2012

Plangente até

Plangente até as tripas, outrora Toninho disse que ria. Contou que viveu o espalhafato nas vidas passadas: uma em Brejinho das Almas, outra em Morradinhos, locais nos quais nunca foi rei ou príncipe guerreiro, porque a ordem política era outra, segundo seu vidente às avessas das sessões de regressão. Entretanto cumpriu sempre os designos de bon vivant, rompendo medos, adversários e hímens. Macho mor dos vilarejos distantes chegou a mandar na lei e na ordem, mas quem mandou morrer? Dessa vez nasceu assim, com esse ímpeto lascado para sofrer, mesmo depois de descobertos os fantasmas nostálgicos. E quando tenta fazer as vezes de audaz, intrépido ou vigoroso, o mal que causa é o da gargalhada alheia. Honorião do bar, por exemplo, desafiado por Toninho para duelar o amor de Vilma, morreu de rir. Morte muito lamentada por Vilma, diga-se.

sábado, 28 de janeiro de 2012

Fora um lapso

Fora um lapso pra lá de falso. Na casa daquela que viria a ser sua mulher, Alberto encontrou muito azeite, uvas, vinhos e queijos dos muitos tipos, mas também inúmeros cunhados. Deveria se dever àquilo o fato dela ser tão silenciosa. Como falar, se única mulher e mais nova? Jogo escondido, depois notaria. Lá, se calava, mas esposa no próprio lar se pos tagarelar como galinha d’angola: tô fraca, tô fraca, tô fraca, dizia com a força de uma leoa em êxtase. O bom Alberto, que desconhecia a máscara, passou a aguentar essa música sem parâmetro. Essa Ana tagarela e mala. Esse enfeite sem a mínima lógica, que lhe sentenciava epitáfios em vida. Preferiu visitas à casa da sogra, onde havia queijos, vinhos, uvas e azeite, ainda que divididos com inúmeros cunhados.

sexta-feira, 27 de janeiro de 2012

A doença metafísica

A doença metafísica de Carlão era a irresponsabilidade, a outra, apenas uma úlcera que ia e vinha. Jamais se curou da primeira, que o impelia ao esquecimento das papinhas e remédios para a segunda. Defeito espiritual, costumava dizer, crente que se edificaria a partir de um som de harpa ou meditação transcendental, ouvida e praticada no quartinho secreto mantido nos fundos de casa, com vista a um enorme edifício. Das janelas vizinhas ouvia estranhos mantras: “vista a roupa, idiota... a roupa, idiota... idiota”. Olhares curiosos aqueles. Sons hesitantes de bondade. Um xis mexendo na questão da sua existência. Ilustríssimos ecos de cabeças à toa. Por outro lado, extraía vida daqueles delírios soltos no ar. Chegava às alturas... e se esquecia da úlcera, como quando viera a esse mundo.

quinta-feira, 26 de janeiro de 2012

Não fossem

Não fossem os cinzas fios de tabaco, que aqui e ali rumavam para o infinito, e o cheiro do café recém coado naquele bar teria reinado, soberano. Às quartas-feiras, Délio estava lá com seu bloco de anotações e uma velha caneta, cuja obsolescência não fora capaz de extrair-lhe a elegância. Pedia um puro, sorvia e escrevia. O paradoxo surgia no nível do conhecimento, jamais no das ideias, mas da pessoa. Todos se relacionavam bem com Délio, mas ninguém nunca soube sobre o que escrevia. Eram movimentos curtos e olhares para ar. Goles às caras meditativas e prazerosas, baforadas por imaginários do além bar. Dissessem-no poeta, como no apelido, e ele não se ofenderia. Chamassem-no escritor, também não. Ou apontador de jogo do bicho, almoxarife, apontador, tanto fazia. Délio era assim, coruja, disfarçado de papagaio.

quarta-feira, 25 de janeiro de 2012

Tecido aos ecos

Tecido aos ecos da mãe esticada à plástica, Mércio resultou na herança, feito mimese hesitante das cores de Frida Kahlo. Ainda que mal lhe perguntasse qual bem lhe teria feito essa aparência buliçosa e fútil, por certo repassaria a bola ao analista. Certo é que as moças viam nele o máximo: um banquete de fantasias físicas ou regalo de afetividades eróticas. Mércio só de pensar jogava os olhos em órbitas, as mãos aos ares e a entonação da voz à rotações adversas. Paciência, pedia às amigas, que se recusavam em manter apenas a amizade. Sua fama, lançada em mil torpedos, caída nas redes virtuais ou geneticamente modificada por afoitas fãs, logo se tornou irreversível. E com a baba feminina lhe servindo de adubo, plantou ironias, semeou amores nos namorados das alheias e brilhou na passarela da vida. Bem ao gosto da mãe que ria alto, e em abundância, quase sempre vestida de amarelo.

terça-feira, 24 de janeiro de 2012

Contumaz comedor

Contumaz comedor de tremoços, Manoel de Oliveira tinha o propósito de acabar com a dinastia das azeitonas.
- Vejam vocês – um tremoço -, o homogêneo uso das azeitonas – mais um tremoço -, como elemento agregado da cerveja – outro tremoço -, penso se tratar de um cartel dos – novo tremoço -, portugueses obsessivos, que veem no oleoso fruto naquela não menos oleosa árvore – tremoço -, a solução definitiva para o acompanhamento fraterno – tremoço seguinte -, dos líquidos alcoólicos, demasiadamente apreciados – vigésimo quinto tremoço -, nas rodas informais de amigos e camaradas – tremoço.Seu intento somente não se concretizou porque parou a campanha, devido à elevação de sua taxa de ácido úrico. Uma tremenda gota, paralela ao desejo incomensurável de variar um pouquinho... com uma azeitona preta, pequena e saborosa.

segunda-feira, 23 de janeiro de 2012

O óbice caiu

O óbice caiu quando o óbito se deu. Sem Matilda, a mulher mandona, Mário se postou atrás da orelha de Milena, a filha de cabeça etérea e tronco largo. Nas palavras entrecortadas com rompantes de cismas pela conduta da moça, passou a profetizar catástrofes sobre seu destino de manicure em domicílio. Que o vento do destino poderia lhe trazer tarados. Que sei lá em qual visita haveria uma horrível cilada. Que isso não era coisa que se prestasse a quem se presta. Milena caçoou dos cacoetes do pai, sem compactuar com ele um risco de rímel nos supercílios ou uma unha de esmalte no mindinho. Com o descuido de uma gazela dopada e a ambiguidade de uma tesoura foi capaz de lhe dizer: “você está precisando de um trato no visual, papy”.

domingo, 22 de janeiro de 2012

Atrás do embaçado

Atrás do embaçado vidro e da cortina de chita as árvores ficavam marrom-prateadas. Corrompidas como as estradas de acesso ao carinho entre Paula e Bebeto. Este, com mania de enxergar as verdades conforme o cargo de quem as dizia. Aquela, acreditando em todas elas. Não poderiam mesmo reascender aquele fogo robusto dos propósitos comuns. Fosse o gerente o falastrão, e Bebeto cria que a noite estava bela. Fosse o contínuo, e nem noite seria. Mas o amor de Paula e Bebeto não se constituía bem naquela empresa de conveniência, aberta 24 horas, que ele levava para casa. “Você deve ter batido a nuca na calculadora e jamais descobriram o que se deu por dentro de seu cérebro”, ela chegou a dizer. Ele somou a observação à distância de Paula, e abriu a janela, para matizar as árvores.

sábado, 21 de janeiro de 2012

Pena as lufadas

Pena as lufadas de maus pensamentos terem passado pela minha cabeça. Quando pedi um tempo para pensar, já não havia o apoio de ninguém. Apareci na praça apenas para desaparecer corpo adentro daquele ônibus enorme, reaparecer na janelinha, olhar os bancos, as árvores, rememorar os dias e sumir pra sempre. Não quis assumir a paternidade porque não sabia se o filho era meu. De família, de família, só eu sabia de qual família era Eduarda, mas eu não tinha razão. A razão estava nas caras que me olhavam com ódio e desconfiança. Um pouco tarde, quando eu já estava longe, mas Deus me ajudou, como ajudou aquele loiro da farmácia, que se matou com um tiro. A criança, aí, sim, viram todos, era a cara dele.

sexta-feira, 20 de janeiro de 2012

Larápio patético

Larápio patético, Ptolomeu durou pouco no instituto astronômico, por furto aos dados. Julgou que ele e a Terra estavam no centro universo, e meteu os pés pelos anéis de Saturno, zanzando em torno das pesquisas de renomados professores do local. Culpa do pai. Não do Eterno, mas do seu. Com um nome desses...O rosto provinciano, beirando o primitivo, foi desconsiderado na seleção de funcionários. Azar o do recrutador. Uma palavra e seria salvo, mas o colega de turma não marcou presença na defesa. “Caso contrário é caso perdido”, disse Paulo Leminsk, o chefe do observatório, já meio cego de glaucoma. Ptolomeu foi punido com envergadura. Pagou o plágio sem direito à réplica, equações ou uso do telescópio.

quinta-feira, 19 de janeiro de 2012

Perca tempo

Perca tempo. O chão está coberto de formigas idiotizadas. Você pode pisar em cada uma delas, aqui e ali. Suas bundas com ferrões nas pontas fazem crecks atonais a cada pisão. Componha uma sinfonia de crecks, porque sim. Imagine o bem que fará àqueles que não forem picados? Sem falar na castidade das formigas, pós-creck. Depois do som não existe vida eterna, nem melodia ou ferrões que sobrevivam. Grave os crecks e replique o áudio ao redor do formigueiro. É ecológico e artístico, acredite. Uma música única, um pesticida natural.

quarta-feira, 18 de janeiro de 2012

A culpa

A culpa se agarrou ao corrimão. Foram anos de peso e luta na busca de sua interioridade, e ele a encontrou assim, descendo a escada de acesso ao inferno. Sua insuficiência, movida a medos e angústias, agora rangia nos degraus de madeira velha de sua alma. Triste figura, então um tanto Sancho e nada quixotesca. Mas já que estava ali, baixando suas diferenças, tratou de reconstruir as próprias representações no andar de cima. De lado, deu rasteira, atropelou aos trancos o tempo que lhe restava antes do fim, para que a culpa, sim, rolasse escada abaixo. Ele, não.

terça-feira, 17 de janeiro de 2012

Descomposta e tosca

Descomposta e tosca, Lydia meteu os pés pelos peitos para avisar o marido que não iria à festa. Inversão de papéis, psicologizou a festeira, para o baque de Élcio, sócio majoritário da empresa, pouco dado aos eventos sociais. A ausência causou frisson e paz de espíritos, porque Lydia era aquilo de sempre: barracos e sequelas. Aliviadas, mulheres outras fizeram gênero a Élcio, perguntando-lhe da faltosa. Tronco em riste, argumentou enxaqueca, seguida de sorte: “a festa sem ela não é festa!”, disse. Naquela noite, com olhos vitrificados, foi a sensível Selma, a tal do sócio minoritário, quem fez por acontecer. Súbita bomba-relógio detonou nos meandros, para a surpresa do próprio marido que já se via no direito de adquirir mais ações. Rainha morta, rainha posta, comentou o contador.

segunda-feira, 16 de janeiro de 2012

Todo núpcias

Todo núpcias, Laerte conseguiu se encontrar com Lucimar no fundo da capela. O empecilho passara e tinha nome: timidez. Não que tivesse ocorrido de vez, houve o incenso, que num golpe de coragem ele acendera para ela, budista. Daquela data ao batizado do vizinho ainda se passaram dois dias, mas o que são dois dias numa troca de olhares de seis anos? Sem hora marcada, metida de bedelho ou estratégia, foram fumar e se disseram apaixonados. Voltaram com a sensibilidade à flor da pele, de mãos dadas e então anunciaram o noivado, com casamento marcado para o dia seguinte. Laerte e Lucimar dispensaram o sonhado convite com LL na capa, por amor à urgência. E dormiram sozinhos pela última noite, atormentados de ontem... e sonhando com o dia de amanhã.

domingo, 15 de janeiro de 2012

Parecia muito

Parecia muito maior do que na minha lembrança. O inverso do óbvio, porque sempre nos lembramos grandes as coisas que se tornam pequenas com o passar dos anos. Vai ver essa minha falta de apego à verdade deixa a imaginação aumentativa. Ouvi seus amigos o chamarem de Quinzão, Joaquinzinho Grande. Ofereceram-lhe um estoque de caninha 51 e uns amendoins, sem fazerem propaganda, de maneira ausente. É assim que me lembro dele na segunda memória. Convém mantê-la confortavelmente viva, depois de várias tentativas fracassadas. Cuidava de relacionar, por ordem, os amigos de meu finado pai. Pastorear imagens para colocá-las na trajetória de uma trilha nostálgica, apesar da hora. Deveria ter pensado nisso antes.

sábado, 14 de janeiro de 2012

Foi assim...

Foi assim... como essas folhas que às vezes caem em nossa frente quando estamos passando. Sabe? O passarinho, que subitamente pousa no muro, olha pra gente e voa. Não sei... aqueles cochichos que a gente escuta quando anda pelos corredores noturnos de um hospital. Muito de repente. Muitíssimo sutil. Como aquela pergunta que ouvimos na conversa alheia da fila do banco. Depois não sabemos se a resposta foi dada, porque o barulho atrapalhou. Mesmo tentando, não consegui prorrogar. Minha disposição era menor que o instante. Durou somente o que durou... e foi pouco. Dali pra frente, sempre tão periclitante, com uma avidez funesta, passei a acreditar no acaso.

sexta-feira, 13 de janeiro de 2012

Ouvir? Ouvia.

Ouvir? Ouvia. Seria capaz de descrever, pata a pata, os passinhos da lagartixa sobre a parede do quarto. Esquerda da frente, direita de trás. Então temia pelo gelado hostil que aquilo poderia lhe proporcionar caso caísse em suas pernas. Contribuiu para a minha desgraça lhe perguntar onde estava a lagartixa. A frigideira não estava para bifes. Ronaldo rosnou pra mim. E antes do galo cantar pela primeira vez, negou que eu fizesse parte desse mundo. Tivesse me dito que havia um casal delas e eu teria acreditado, porque loucura e tosse são coisas que não se pode ocultar. Ronaldo, então lobo, olhava-me como a uma presa. Todos os ruídos, que ouvia de algum passado ou de um presente carente de coerência, crispavam em sua testa. Só parou de se contorcer quando eu disse que havia gostado mais da branca, a lagartixa zolhuda e fina, embora um tanto barulhenta.

quinta-feira, 12 de janeiro de 2012

Essa mania

Essa mania de pisar nos sonhos ainda torcerá os pés de Nina. Ela faz dos desejos estradas e caminha sobre elas sem olhar nunca para o chão. Que mania! Às vezes não diz seu nome, nem desinfeta a boca. Entre paisagens duras e sussurros moles, Nina parece querer ler com os passos os textos escritos nos asfaltos ou rejuntes dos paralelepípedos. E ama (“eu amo isso”), diz ao seu próprio ego, mesmo quando as pernas estão moídas ou pregadas à cama pelo cansaço. Não sei que furo no destino ou buraco no piso ela ultrapassa ilesa. Mal posso desenhar o lugar de ave ou marcas de roda pelos quais Nina desliza no vento e avenidas. Vai ver o chão é o intervalo entre um anseio e um avanço. Nina cresce assim, e eu nem vejo.

quarta-feira, 11 de janeiro de 2012

A certa altura

A certa altura perguntei pelo gelo. Já havia notado a ausência de flores, além do fundo verde daquele jarro ou vaso, sei lá, com água de muitos dias. Pelo menos não foi assim, de supetão. Nada é de repente, quando estamos profundamente alterados por pequenos detalhes. Tentei manter a calma. Ter-me-ia jogado de cabeça naquela mesa, sobre todos os grudentos lapsos de fritura, se o garçom não tivesse dado ao menos uma satisfação às minhas inquietudes. Disse que era tarde e que já não havia gelo. Ignorei suas migalhas, sua explicação gentil e banguela, e pedi que providenciasse o resto da conversa sem gelo mesmo. Com a voz alterada, não será por uma pedra de gelo que irei me furtar de um gesto cortês. Obrigado, ainda disse.

terça-feira, 10 de janeiro de 2012

A perspectiva

A perspectiva imaginária de ser pescador profissional me rendeu fragmentos. Não tanto quanto no dia em que me imaginei jogador de futebol, com as respectivas meias, chuteiras, caneleiras e bola de couro, oficial. Foram entulhos outros, porque a expectativa não se restringia aos caniços, anzóis, linhas e chumbadas de muitos pesos. Havia a vida. A cabana na beira do rio com sua mesa tosca, um filtro para a água potável, um colchão sobre a cama ordinária e lenhas, guardadas no interior do lar para não umedecerem com as chuvas eventuais. Achei atraente a possibilidade de atracar a fuga de uma rotina besta com a âncora dispersa nas águas correntes. Tenho ainda hoje o molinete, carretilha pesada e alguns anzóis a menos. A frustração foi a de não ter fisgado nenhum peixe.

segunda-feira, 9 de janeiro de 2012

Não há mistério

Não há mistério, pensei, surpreso por me encontrar junto com meus antigos amigos naquela visão do parque de diversões que se movia com luzes frenéticas em esferas, vai-e-vens, serragem e pedras britas pretas a lhe cobrirem o chão. Senti o balanço insano e selvagem da cadeira enferrujada, na parte mais alta da roda-gigante. Tempo e cenas se estendiam em sequências duradouras, compassadas pela música ruim dedicada pelo moço de camisa amarela à jovem loira de jaqueta jeans com prova de muito amor e carinho, que antecipava um convite para o trem-fantasma com direito a um ladinho para o aperto de mãos tensas e psius aos gritinhos histéricos dos medos que habitavam cada uma das curvas. Nesse presente, percebi o carrossel que se agigantava, quando os cavalinhos pintados não pararam mais de subir e descer... subir e descer.

domingo, 8 de janeiro de 2012

Por que bater

Por que bater tão forte nas teclas? São utensílios, mas são os meios, o fim é a música. A professora aconselhava Helena, que insistia em tocar os sonhos com os dedos, como quem arranca uma valsa com o fura-bolos e o pai-de-todos, a fórceps. Bem que a pobre mestra tentou evitar o inevitável, mas Helena, com suas mãos autistas, apenas a olhava indignada, apreciando quem sabe um peixe dourado no Lago dos Cisnes ou batendo os punhos em descompasso, como se quebrasse nozes, enquanto escutava as palavras orientadoras. O veredicto partiu da soma das debilidades da aluna: - Volte pra casa, Helena, e aprenda literatura. Foi a sorte dos autores de autoajuda.

sábado, 7 de janeiro de 2012

Na negação

Na negação se portava tranquila. Ilza nunca dizia sim, meio que para cuidar bem de seus exageros ou indecisões inconfessáveis. Sem fazer uso da alma, recusava aos convites de Júlio para conhecer as montanhas ou ver estrelas. Dá cá tua mão, quis ele, antes de ouvir um novo não. Mas que namoro é esse? – sempre objetava o sujeito, nas vãs tentativas de convencê-la a um beijo ou qualquer coisa que pudesse denotar carinho. O moço era repleto de concórdias e cordialidades. Era do sim, do de acordo. Espalhava opções à namorada: um riso, uma nulidade, um saco de pipocas quentes. E nunca não. Até aquele dia. Subiu muito alto na antena da emissora de rádio. Declarou ao mundo o iminente suicídio amoroso. Ilza, num lapso, bem que esteve na hora, no chão, no megafone dos bombeiros para ele descesse. E pela primeira vez na vida, Júlio disse a ela que não.

sexta-feira, 6 de janeiro de 2012

O céu trabalha

O céu trabalha suas abstrações. Depois de tirar a nuvem escura da esquerda, traça uns raios paralelos de luz do nublado Sol. Opaco verão desmilinguido. A relva em êxtase absorve, gorda, calor e gotas. Carreirista do clima. Embebeda-se do final da chuva, aproveita, recolhe intenções para o seu crescimento. Surge a distração nos ninhos, e os primeiros pássaros arriscam ignorar a circunspecção que demonstravam no momento anterior, de vento chuvoso. Dão sinal de contágio, e seus pares saltam, voam, esconjuram aos cantos abertos o final do tempo fechado. No ócio, Odécio apanha a caneta bic mordida na tampa e jura pra si mesmo que fará um poema. Bem bucólico, bem Olavo Bilac.

quinta-feira, 5 de janeiro de 2012

Fantoche

Fantoche no sofá da sala, Otávio desabitava o óbvio: marido, pai, trabalhador. Enviesava as leis vigentes e tomava outra. No mundo secreto em que vivia sempre acabava de se lembrar, quando a urgência esquecida lhe surgia na forma de alguma cobrança. Pode apostar que pensei nisso, falava flácido, transpondo desculpas. Quando o mais velho, por influência ou coincidência usurpou-lhe o lugar na poltrona, o berro de Otávio ecoou no vazio. Mulher e menores, incomodados, se cuidaram. Por detrás da porta, riram de seu erro, quebrando a bronca em mil pedacinhos, até que Otávio não a conseguisse montá-la, ali ou em lugar algum. Da casa ao bar foi um catar de cacos. E oculto na rua não hesita em perpetuar dispersões: - “Que trabalhem, os trouxas!”.

quarta-feira, 4 de janeiro de 2012

O filósofo

O filósofo que habitava Cristófolo herdara da mãe a mania de grandeza. Em nome do impessoal, à mesa, comia todos os bifes alheios. Na escola, desmarcava os livros que outros liam, para lhes tomar de súbito empréstimo, em seu tempo e vontade. Leu assim, sim, o suficiente para o pedantismo. E vertia, às tantas, às inflexões sobre a existência, a verdade, os valores morais, o bem e o mal, a estética. Havia sempre um argumento racional capaz de justificar seus notórios atrasos, o cano nos amigos, o riso das falhas, a glosa dos erros ou o embuste intelectual. Nem com Nietzsche, entretanto, explicou sua grandeza ao atropelar o síndico. Pagou a pena, e dedicou o resto de sua vida ao estudo Michel Foucault.

terça-feira, 3 de janeiro de 2012

Virou mau velhinho

Virou mau velhinho, fechou o jornal e tirou a fantasia. A tia achou estranho. Arlindo sempre se vestiu de Papai Noel para distribuir às crianças pequenos mimos que angariava com os vizinhos durante o ano. A manchete “Papai Noel é morto a facadas por infidelidade religiosa no Tadjiquistão”, estampada sobre a poltrona, talvez justificasse a decisão, mas Arlindo, afinal, jamais saiu da Vila Aurora. Desconfiou de Parviz, o russo da esquina, que mantém o velho negócio de conserto de relógios. Ninguém jamais entendeu o nome daquele país onde ele um dia disse que nasceu: ex-república soviética. Arlindo, cuja bondade jamais andou aos passos com a coragem, preferiu a precaução. “Em caso dúvida, duvide!”, ainda brincou, meio Millôr, com suas habituais roupas de funcionário público.

segunda-feira, 2 de janeiro de 2012

Então o taxista

Então o taxista olhou para trás e falou como um narrador de turfe: rápido e sem pausa. Então, estarrecidos, soubemos tudo aquilo que se passava do continente pra cá, em versões telegráficas e floreadas. Então a pequena igreja não chegava nunca, nem quando tomamos conhecimento que o prefeito da cidade ganhava por fora das empreiteiras, os vereadores eram também corruptos e a principal economia da cidade era o turismo. Então pedimos um intervalo para sabermos a distância, porque afinal o município não era tão imenso assim. Então se deu um entrevero, já que o homem desconfiou que desconfiávamos dele e falou que se quiséssemos descer estava às ordens. Então descobrimos que, no caso, não eram apenas o prefeito e os vereadores...

domingo, 1 de janeiro de 2012

No princípio

No princípio, fez promessas. Substituiria os azares por certezas, débitos por créditos. Ensaiou direito: assentaria sua base fora dos vícios, e mesmo as suas exceções seriam programadas. Depois, quem sabe, as desavenças encontrariam a paz, as sobras se reverteriam em obras. Caberiam troféus na estante, alma no trabalho e um carro novo na garagem. Amaria conforme a música, para refazer desejos perdidos nalguma infância. Sempre em compasso com os propósitos, guiados a noturnos chopinianos, uma ou outra cervejinha estupidamente gelada e socialmente benquista. Não, não haveria frieza intelectual, ceticismo de gaveta ou percepções maliciosas. Era o começo de um novo ano...


Agradecimento: a ilustração desta postagem é do artista plástico João Werner, que libera a utilização de seus trabalhos em baixa resolução, desde que citados. Portanto, os nossos sinceros agradecimentos a ele e ao seu excelente trabalho. Quem quiser conhecê-lo basta acessar: http://www.joaowerner.com.br/images/rural/pescador_gravura_digital.htm#axzz2RziqBWtO