sábado, 30 de abril de 2011

Vocal a mil

Vocal a mil na forma antiga. Quase um gregoriano canto desafinado nas imprudências das notas, mas era de lamento a entonação, sem ritmo ou arte. Chocalho de cobra regeu aquele coro. O atirador a esmo, coíssima alguma, entrou na escola e matou-lhes os filhos. Quase coisa que acontece não fosse a infiel réplica de doentes americanos, matadores de esmos com a contradição dos suicidas. Por alguma memória, algum ranço ou coisa parecida, disparou sentenças de penas capitais, às dezenas ou dúzias. Feito um diabo escolhendo frutas na prateleira repleta de maçãs idênticas. Essa e aquela em seleção insólita. Até um final confuso, suficiente ao gasto, pouco vasto na concepção primeira daquelas mortes todas. E fosse o final da munição disponível ou a abrupta inconveniência de um intercessor policial, o gesto seria só isso: com abertura e gran finale, sem passagens ou árias. Depois, sim, que fosse a vez daquele coral carpideiro.

sexta-feira, 29 de abril de 2011

Arma sob medida

Arma sob medida. Márcia não é do tipo que desperdiça. Mantém bordões nos tons para agressões das mais diversas que se lhes façam. Por vezes nem são frases únicas, tipo “vá você”, caso alguém a mande tomar em determinados lugares que não quer ir naquele momento. Podem ser gestos: espessos ao ponto da grossura. Que também não são só não olhares, fingimento que não vê a pessoa. São ações mesmo, como aquela que praticou com Túlio, quando este quis tirar-lhe o sarro pela engordadinha que dera. Como uma retro escavadeira louca pisou-lhe o pé sem consideração aos quilos, que de fato conquistara no último final de semana. Com cara de nem aí, ignorou eventuais desculpas, balbuciou apenas “ops”.

quinta-feira, 28 de abril de 2011

Mandaram apertar

Mandaram apertar aos cintos e desligar o celular. Na tela de fundo do seu, Iracema tem uma fotografia que tirou com o pai e mãe na caatinga cearense; os bodes em segundo plano. Afetos que já lhe parecessem distantes. Sua tela esfumaça-se e escurece e pais e bodes parecem-lhe distantes. Como aquele copo plástico de suco de caixinha que ela viu caindo entre a mão da aeromoça e a sua, e compreendeu que já não poderia fazer mais nada. Lenta e dolorosa aquela espera de fração de segundos até que o líquido de uva lhe emporcalhasse a calça jeans novinha, especialmente comprada para ir morar nos Estados Unidos. O rito de passagem daquele silêncio do sertão, triste e medíocre, que deixava tudo ensolarado e grave, se esvai no zumbido monocórdio das turbinas. Até que pousa, para transformar-lhe o amor em mímica, que inclui afinar o nariz e engrossar os lábios para a nova vida. Por carta, enviou à mãe uma foto na qual sua roupa amarela contrasta com o cinza da Estátua da Liberdade, mas, lá no final, conta feliz que Chico Buarque lhe dedicou uma canção.

quarta-feira, 27 de abril de 2011

Impaciência enervada

Impaciência enervada, irritação gaguejante, ira trêmula. Reinando sobre um quintal minúsculo, de uma claustrofóbica casa de fundos, cuja parca visão era a de muros sujos e sem reboco, Fernando era um pinscher humano. Até agudo na fala ele era, e magro como uma top model em ascensão. Com os vizinhos, encrespava só pelas feições. Odiava sons, por sonatas aos luares que fossem, nas casas alheias. E tinha por hábito gritar com quem lhe oferecesse uma ajuda ou um bom dia. Ermitão urbano, parecia movido às cólicas intestinais, resmungos cacarejados ou picadas de frescuras. Herdara o imóvel da mãe, falecida de bondade e simpatia. Tanto incomodou os outros, que os moleques logo trataram de colocar em seu portão seguidas plaquinhas de “vende-se esta casa”, que provocavam inadvertidos compradores. Até a chegada Helião, que se afeiçoou com o claustro. Não chegou a fechar negócio, mas que deu uma surra bem dada no mal educado, isso deu. Para o deleite da galera.

terça-feira, 26 de abril de 2011

Dispor desse

- Dispor desse cachorro, nem pensar. Os mesmos sitiantes que viviam dizendo quantos quilômetros seus tratores eram capazes de fazer com um litro de óleo diesel, eram dados ao escambo de coisas. Nas negociações, incluíam-se comestíveis, ferramentas e também os cachorros. O cão indisponível era Estirado, um misto de labrador, com focinho de perdigueiro, rabo de golden retrivier, orelhas de doberman e a simpatia de um basset hound. Caçador implacável e manobrista de boiadas, o bicho era o xodó do Seu Túlio, a alegria do lugar e o guardião da integridade. Pois Estirado sumiu, logo depois da conversa entre os compadres. Desconfiança daqui, indagações dali e nada. Seu Túlio era todo indócil quando uma noite, hora na qual se ouviam as gargalhadas a quilômetros, escutou o latido de Estirado. Seguiu o rumo, campeou e o encontrou à margem de uma vala funda. Lá dentro, havia um brilho único, como o de uma estrela no chão. Via-se nos olhos do bicho, ele estava perdidamente apaixonado por aquela luz!

segunda-feira, 25 de abril de 2011

Você vai pensar

Você vai pensar que somos dois. Eu, que gostaria de falar dos erros que surgem um atrás do outro. Ele, todo certinho, que vai e vem, mas ao meu descuido: escreve. Não é bacana quando cada vidrinho tem um rótulo? Neurose total; imagine rotular sacos de verduras na geladeira? A ciência é não deixar para depois, chegou, aplique a etiqueta. Alface crespa: originária do Japão, adquirida em 23/04/2011, às 9h30min. É hilária a ordem, extrai o óbvio das coisas. Porque veja você, indulgência ao acaso só tolo contempla! Só me faltava essa! Um tom rocambolesco bem no armário de casa. Tô por aqui de viver num almoxarifado! Pasteizinhos de pizza, rosquinhas de açúcar mascavo, lápides de comestíveis. No fundo, dar o contra é irritante, qualquer fanfarrão mete a colher no texto alheio.

domingo, 24 de abril de 2011

Cura de manias

Cura de manias só se for assim... Vai anotando. Pegue o problema propício e jogue sal ou pimenta pura. Pode, pode ser os dois. Depois farelos de mesa, ponha-os no problema, sobre ele, se arder. Pretenda! Pretenda contra a coisa. Porquanto, mas no entretanto, livre-se da cilada. Mania mesmo é dada a piorar com o tempo; não incremente. Multiplique a dose. Se for de longa data, agilize. Não dê tempo pra habeas corpus. Firme é que tem que ser. Invente palavras espinhosas, doses azedas, pedaços de rezas. Contemple sem clemência. Reserve-se: dó com arranjos errôneos só põe capenga a mania, não dizima! Confira atributo pras preces, ardência ou coisa relativa nunca é demais. Caso tenda ao estável, repita o processo: duas, três vezes. Se nascer outra mania, já nasce cambaleante.

sábado, 23 de abril de 2011

Fossem dissidentes

Fossem dissidentes daquela instituição caridosa e não fariam feio. Mas elas eram daquela instituição caridosa, então...
Tivessem desencaminhado a intimidade mental do adolescente e tudo bem. Mas elas encaminharam-no para as aulas de terapia ocupacional, então...
Então, foi assim: depois de refrear-se, o meninão ocupou-se terapeuticamente à sua maneira. A plantar hortaliças, decidiu furtar sementes. A enterrar pequenas mudas, outros amigos. E tornou-se o “maníaco da horta”, quando as manchetes dos jornais fizeram a cobertura do caso. Para o repórter que lhe interrogou sobre as causas de tantos crimes, fez questão de declarar que os dedicava às duas senhoras da instituição. Então dissidentes, para preservarem a imagem da entidade, disseram que não tinham nada a declarar.

sexta-feira, 22 de abril de 2011

No outro lado

No outro lado do abismo a queda era menor. Quase uma descidinha íngreme, e só. Porque Alfeu Ômego optou pelo mais fundo é o mistério de seu sumiço. Muito abrupto, como sempre. Saiu no meio da tarde dizendo que dignificaria a espécie humana, e já voltava. Nem barba fez ou colocou vestes especiais: de gala ou de guerra. Também não fechou os olhos, ainda que considerasse o gesto como um beijo de amor. Não quis nenhum discípulo a tiracolo, animal de estimação, nem muita conversa. Foi como quem se dá à história, com cenas e fotogramas separados por imagens marcantes: um mundo delas, feitas tal capítulos de um livro clássico, marcado à eternidade. Aplicado, metódico, sistemático e destemido, cumpriu o script à risca. No bom sentido, até ousou dizer que ninguém jamais lhe esqueceria.

quinta-feira, 21 de abril de 2011

Água-furtada

Água-furtada, de quem? E por quê, catso! Nem bem se consegue esconder-se aqui. Tão parco espaço e essa chuva. Poderia haver tempo melhor para livrar-me do vício. Assim, às quatro, horas sem bar, inconveniência, todas, nenhuma loja (ou lógica) de conveniência por perto. Só pode ser recado divino nesse recanto dos diabos. Não há tabaco no céu! Não há tabaco no céu! Grita alguém no oco do cérebro, para espantar aflições. Vai ver porque não penso no futuro. Recuso-me em promover projeções que resultarão em mesmices, assim como nunca guardei bitucas.

quarta-feira, 20 de abril de 2011

Vou carecendo

Vou carecendo, mas pouco... Tirito uns dentes daqui, finjo de árbitro acolá, ensino ceticismos de lá. Quando me dão bom dia, respondo. Pouco importa o que eu estou achando do dia, são modos. Blasfemo, mas não conto. A raridade corriqueira é uma alegria ou outra, às vezes umas vitórias, outras umas fugas. Nunca perco. Tem isso de dúbio! O importante é a gente achar, não precisa avalanches de razão. Engodar pra não engordar de rancores; sempre falei que a chave era essa. Têm loucos que dão tom pra morte, eu vivo. Confundo, disfarço, desfaço se preciso. Bifurco, pré-testo a pretexto de nada, brinco de embrulhar palavras pra não ter que amargar lidas inválidas. Eu, eim? Galo não pensa, mas cacareja. Quando há álibi, subo nele e de lá não desmonto, até a amargura não chegar às lhufas. Falam de lustro, vergonha e essas coisas da cara, a minha é assim: açucarada, em compota. Nunca sofri da bola, nem de diabetes.

terça-feira, 19 de abril de 2011

Dali para

Dali para frente os ricos deixaram de comer por quilo. Contrataram dona Olinda, uma cozinheira falante e esmerada, que se encarregou do apartheid no bairro, com guloseimas e delícias. Fazia pratos que não se deixavam arrotar, feijões de poucos peidos, angus à prova de azia. Os outros que se dessem mal com o turco, dono do restaurante existente. Fechassem os olhos e comessem cru, cozido ou frito, porque sempre haveria uma polenta capaz de algo mais, além da sustância imediata. Sem altruísmo ou cuidados higiênicos, aquele almoço, misto de gordura e alvoroço, fazia súditos avessos, cuja única opção era a exclusão. Ainda que os intestinos bradassem no começo, os comensais se obrigavam a dar tudo por encerrado. E quando a concha do crânio destampava aflita, que procurassem um antiácido, analgésico ou, na fase radical, um dedo. Cada qual no seu canto.

segunda-feira, 18 de abril de 2011

A relação

A relação se quita quando a armação começa. Aurélio quis assim, Odécia assou. Virou franga ao Sol da piscina ao se expor sem cerimônia em peças ínfimas e tons lilases. Olhar as outras, Aurélio poderia, mas que soubesse também que a namorada seria olhada. Molho por molho, rente por rente. A recíproca troca pouca vantagem acrescentaria a ambos. Depois, que se dessem as mãos, abraços ou outras partes desiguais.

domingo, 17 de abril de 2011

Lá, Sílvia

Lá, Sílvia fazia do vermelho a cor predileta de suas peças íntimas. Aqui, seus nempensares dissimulavam uma mulher casta e correta. Lá, Sílvia fez show de strip sobre a mesa, dizem até que ficou totalmente nua. Aqui, dá dó. Tem a timidez das cadeiras, que aguardam em silêncio todos sentarem-se. Lá, Sílvia até misturou vodka com vermute, tabaco e outros bichos enlouquecedores. Aqui, abstinência. Sóbria, feito médica acupunturista e homeopática. Lá, Sílvia finca-se nos caros pálidos, rubros e suados também, porque tanto faz. Aqui, arisca aos toques. Que não lhe relem os reles rapazes repletos de intenções puras. Lascívia, ouvi dizer que isso se chama, e acho bem feito pra mim. Vejo Sílvia como santa. Aquiescência parece-me que é nunca sair mesmo desse lugar. Aqui.

sábado, 16 de abril de 2011

Deu entrada

Deu entrada doida; o médico não soube precisar a droga. Postinho de saúde na ponta da vila tem justos limites ante as opções tão imensas. Glóbulos de clemência lhe saltavam dos olhos, enquanto a boca profetizava caos e coisas. Ubíquo e óbvio, o doutor mediu a pressão; no avesso do espetáculo, a paciente quis ajudá-lo a insuflar a bomba do aparelho, e já levou um tapão na mão. Simulou a letra de um rap, que mal deu rima elementar: “aí doutor Saracura, tô na minha, não dá dura, o senhor não tem o poder da cura”. Não esmoreceu, para a infelicidade do médico. Num descuido de segundos, bebeu todo o vidro de iodo, num gole e de virada. Almejou o esparadrapo, salivou com o algodão, laricava com as pomadas, quando o medico, súbito, pediu à enfermeira que fizesse um eletrocardiograma naquela louca. Que a sedassem, amarrassem, entendessem ou dispensassem, mas com a pressão naquele estado a gravidade era certa. Levada por dois à maca do exame, a pirada foi plugada pelos fios da máquina. Tudo iria bem, não fosse o recado que a pobre enfermeira levou ao doutor: “aquela dona comeu os elétrodos coloridos!”.

sexta-feira, 15 de abril de 2011

Tornei-me toureiro

Tornei-me toureiro aos seis anos, quando havia em casa o Bob, um basset dachshund marrom louco por panos vermelhos. Fui mau, fazendo da faca de carne um florete assassino, mas fazer o quê? Não havia nada menos espesso e eficaz na cozinha de lá. Tornei-me general americano aos dez, época a qual todos os moleques com os quais brincava eram índios sioux, malvados como o cão. Somente bem amarrados nas árvores com os fios do ferro de passar roupas é que não davam trabalho para o meu exército. Aos quatorze estreei no Festival de Montreaux. Levantei públicos imensos com minha guitarra imaginária, enquanto pisava pedras sob meu kichute no caminho esburacado para a escola. Aos vinte, após um diálogo franco com o ditador fascista, assumi a liderança das esquerdas, e confesso que fiz bem ao promover a distribuição igualitária da cerveja aos amigos de bar menos favorecidos. Agora, só resta-me agradecer a você, leitor, que tanto contribuiu para esse Nobel de Literatura.

quinta-feira, 14 de abril de 2011

Com o pé

Com o pé junto à tábua e pouca fé em Deus, Olegário andava como um raio, sempre que lhe fosse dada a graça de dirigir o carrão do patrão. Dos seus, pouco se atentava, porque ao volante virava outro; aquele cujo direito superior sobre a plebe ignara explicitava-se pelo poder comparativo da velocidade entre ambos ou ao de vencer a luta, caso o embate se desse entre seu pára-choque e um pedestre desses quaisquer. Orgasmava-se na condução quando cataprum! Levou arrastado a metros o cego Duílio, que com a sanfona em punho e olhar no vazio, tentava atravessar a rua com o mesmo descuido com o qual tocava no instrumento a valsa “Saudade de Matão”. Com indignação e maus lençóis, parou um pouquinho à frente para conferir o estrago. Próximo à vítima para tirar satisfação pelo seu descuido, ouviu do cego oito as palavras moribundas: “por favor, me ajude a chegar no paraíso”.

quarta-feira, 13 de abril de 2011

Cada madeixa

Cada madeixa eternizava um amor. Lola jurava que só tivera dois, para a sorte do seu equilíbrio estético facial. Um amor pode permanecer secreto numa madeixa. Uma madeixa oculta entre os cabelos, numa cabeça. Uma cabeça consegue se dispersar na multidão de uma cidade. Uma cidade é um conjunto mais complexo, mas ainda assim mantém-se quase invisível no planeta. O universo das madeixas de Lola enodoava a complexidade recôndita. Todas ali, às vezes omissas nas pontas, outras enormes, quase até os pés. Era inconcebível reconstituir as volúpias, paixões ou sentimentos profundos da Lola apenas por aqueles fios, mesmo às duas meadas. Cansado do mistério, Antoninho dirigiu-lhe a mais definitiva das propostas possíveis: “corte-as, ou jamais serei eternamente seu”. Lola sorriu entristecida, fez de conta que sim, negaceou um não, seguiu para a cozinha e logo voltou com uma dúbia tesoura nas mãos. Antoninho não entendeu bem aquele “deixarei crescer a sua”.

terça-feira, 12 de abril de 2011

Bajulador, assim

Bajular, assim, de doer, Alberto bajulava. Fosse rosa o lábio de Cleusa, e ele já ressaltava o vermelho intenso. Vestisse platônico seu vestido verde, e já Alberto lhe louvava imensa mata. Com um acinte à beira do tédio, sabe Alá o que visse, Alberto aumentava as mesuras para Cleusa. De curvas, contornos; gases, aromas; coceiras, regalos; demoras, pausas; fabricava eufemismos para não ofuscar mínimas façanhas. E lidava tão bem com o falso, que Cleusa logo se imaginou na realeza. Deu para andar de mototaxi e trocar o celular todo ano. De deusa à vista de Alberto, virou bruxa longe dela. Ele, sonso e interessado, não perdeu o tom. Quando a divindade baixou de braços dados com Ernestão, foi Alberto quem tratou de arrumar-lhes o leito. Cedeu casa, comida e cerveja gelada. Depois foi ao bar, contar vantagens: “de usuário, passei a fornecedor”.

segunda-feira, 11 de abril de 2011

...porém houve

...porém houve ledos enganos. Depois que vovô voou não quis acreditar que tinha saído do solo. Titio só se sentiu melhor com o placebo daquele analgésico. Prima Irma sempre negou que aquela temporada na Austrália fora para esconder a gravidez indesejada. Vovó não teve dó de intercalar o remedinho repugnante na alimentação da tia Hilda, para que ela parasse de beber. Titia Sofia não chegou a mandar aquele homem embora para sempre, foi vista algumas vezes de mãos dadas com ele. Nem a faxineira mineira entregou o primo Firmino pelos abusos a que o canalha lhe obrigara. A cunhada Ada também não aceitou aquela história do tio Fio, que disse ter ganhado na loteria todo aquele dinheiro para a construção da mansão. Só agora o tio avô Nonô confessou que teve outra família no Mato Grosso, mas como já dava os primeiros sinais do alzheimer ninguém ligou. Eu falo, família sempre tem seus despistes.

domingo, 10 de abril de 2011

Incapacidade para

Incapacidade para produzir fenômenos era o de menos, mal dava conta de recuperar as energias perdidas com as obviedades. Era um selecionador de seilás, para serem ditos às vagas circunstâncias. Oferecessem-lhe café ou sexo, por exemplo. Deu de vagar manso pelas alamedas do bairro, buscando sabe Deus que história pouco natural. Assim meio irresoluto, meio ave sem fome. Ninguém já lhe observava muito às sombras das sibipirunas. Esperando cair um quê do céu, ali ficava memorando nadas. Por consenso transformaram-no em utensílio. Ainda que ausente, segurava roupas para secar, passava recados de uns a outros, guardava chaves e até apitava quando via por ali alguém estranho. Com as pessoas do bairro fez as pazes, de uma guerra que nunca houve. Por um tris ou por um traço não foi confundido com o lobisomem que infernizava a vida de todos. Jamais uivou.

sábado, 9 de abril de 2011

Duma sede

Duma sede inútil deu para não parar mais de beber. Dar o contra era o sapato apertado, então cedia, boa bisca... e bebia. Litros e tantos dos puros líquidos aos pontos pênseis dos caminhos sem eixos. Era assim, embalado como as palavras que dizia às tantas, numa catarata de barbáries e impropérios. Batia em cochos pelas costas, derrubava criancinhas, dava de dedo em cego, rasteira em velhinhos e desempenhava a vida. Desse andaime logo foi ao chão. Preso com boca mole, beliscou o guarda, cuspiu no delegado e sacou do bolso a garrafinha de conhaque, num relapso do carrasco próximo. O último gole tossiu, como se o ovo tivesse defeito. Não foi o sopapo que o mandou ao inferno, mas a quina arrepiada da cadeira miúda daquela delegacia insana. Seco e sem mascar um mosquito que fosse, foi levado à aridez final. Movido a bafo ao pó voltou.

sexta-feira, 8 de abril de 2011

Cala a boca

- Cala a boca, cabrita! Resmungou o maranhense do banco dianteiro à conterrânea que contava histórias à colega, no de trás. A viagem era intermunicial, 450 quilômetros de vastidão. E nem foi um overbooking no buzão o início do barraco. O estratagema de Orenílde era ficar próxima à janela, porque levava a mudinha de planta sensível à sombra: precisava de luz. Gorete sentara-se em seu lugar ao Sol, e quando a terceira passageira chegou, dona do lugar no qual Orenílde sentara, esta foi tirar satisfação com Gorete, exigindo então o “seu” lugar. Evitação daqui, desculpa de lá e o nível rodou alguns metros abaixo. Foi preciso a intervenção de Fabião, motorista e autoridade máxima do veículo, para Gorete seguir ao seu respectivo lugar ao fundo do carro. Teria sido uma viagem até tranquila, se na parada para o lanche, quando Orenílde desceu para um pão com mortadela, Gorete não tivesse amassado, de maldade, todas as folhas da delicada plantinha... que só buscava a luz.

quinta-feira, 7 de abril de 2011

Acordou desconfiado

Acordou desconfiado do tal sono reparador. Reparou, antes, que lhe doía as juntas. O velho medo de se despedir naquele aeroporto, os lenços brancos que alçam sinais de adeus, os rostos conhecidos que se dissimulam numa névoa clara, fatalmente sumirão ao primeiro som matinal. O galo, animal estúpido, com aquela sina inconveniente nas horas impróprias. A renúncia às coceiras de cama sempre se transforma no espreguiçar doloroso. Dá vontade de ir de novo ao sonho, mesmo que sem volta. E o grude atormentado dos dois olhos aflitos, com aquele dia que já ilumina as tosses, anginas e enxaquecas matinais, decretam as falhas presentes na existência. Morfeu deve ser parente de Tânatos ou o Sol suborna a Lua, excluída a possibilidade da biologia defecar na vida. Naquele instante só um café forte seria capaz de colocar a Terra em rotação.

quarta-feira, 6 de abril de 2011

Seria uma

Seria uma alusão a ele? De súbito, pouco parecia. Produzira a impressão pela perversa inocência com que Asila expôs o que pensava, aparentemente sem exibicionismo. Só aparentemente, só parte do que de fato pensava e inocência já não havia há anos. Asila adora expor as fraquezas do marido, notoriamente o medo de besouros marrons. Mas é dissimulada e é a época dos tais bichos. Fala dos absurdos das gentes que têm o medo. Tagarela os absurdos de haver pessoas assim. Parola a vergonha que sente quando o medroso lhe é próximo. Indigna-se com a possibilidade de ter ao lado um acovardado. O volume, tamanho e extensão das falas estendem-se por todo o período em que varre às centenas os montinhos de besouros marrons. Lúcio olha de longe, petrificado, mas pronto para a investida assim os besouros sumirem. No ano passado, nessa mesma época, Asila quase se separou quando o marido chegou em casa com um casal de ratos brancos. Ela emudece e treme quando vê esses bichos...

terça-feira, 5 de abril de 2011

Moro numa

Moro numa terra de muitos raios, mas para os períodos nos quais eles não caem do céu (e o lugar não perder a fama), resolvi instalar aqui em casa uma fábrica de faíscas. Nutri de eletricidade pura meu armazenador de solo, cuidando par que pudesse repassar toda a energia poupada ao pequeno avião que aluguei – exclusivamente para o momento de soltá-los. Via facho de luz. A potência sobe, com um efeito de espelho, volta à terra na forma de raio. Minha dificuldade é que a aeronave não consegue ficar parada, e perco o controle do lugar exato onde minhas fagulhas cairão. Confesso aqui, aliás, que fiquei meio chateado anteontem, quando ouvi no noticiário das oito que aquela família inteira havia sido fulminada por um raio extemporâneo. Saia, à tardinha, para o culto das seis. Acabei acalmando-me. Vai ver foi Deus que fez a mira, eu, como bem expliquei, não tenho todo esse poder.

segunda-feira, 4 de abril de 2011

Era o enlace

Era o enlace de Grace e não poderia faltar glacê no bolo. Sempre doce, a moça assentia às vontades da gula, que mantinha acesa desde cedo, quando pouco sabia dessas coisas da obesidade. Quando motivo de zombaria, ria. Nenhuma zanga, se tratada por baranga. Afeita às ponderações, sorria às tontas, pensasse no amado Aurélio, numa torta de caramelo ou em quem pôs a luz no rabo do vagalume. Sempre zen. As manhas do corpanzil às conhecia de cor, porque delas arrancava chocalhos de deleite à Lua; ambrosias de satisfação ao Sol. Só fazia crescer por si toda a admiração do mundo. Uns calaram-se insuspeitos enquanto ela subia ao altar. Outros, ambíguos, contabilazaram derrotas, pela ausência da mesa posta. A aldeia não ficou alheia. Tal estampido de bombas, claustro eterno ou motim, todos souberam que Grace vociferara rouca o “sim”!

domingo, 3 de abril de 2011

De vez

De vez em quando me da uma coisa aqui, apalpa pra ver! Daqui a pouco há de dar, já dói. Não desvendo a causa, baixo a calça e coço. Bem mais alhures que onde está agora, era – parecia picada – a irritação de anteontem. Não obstante passou só com álcool. Parece herança da avó colérica, que deslizava os dedos tolos em busca de piolhos. Rufar de asas de inseto entre os pelos, mas a verdade nítida é que não vejo nada. Ando tendo umas outras, dos pés à cabeça, e continuando assim não sei não, seu Gerúndio. Assopro no pensamento, remexo a causa com os olhos, mas com a mão é tiro e queda. É, passa. Usei lupa, ensaboei com soda, passei pomada de benzina. Enganos incomensuráveis. Meu humor lunático até pensou que poderia ser zomba com pó de mico, por parte de Faustus, é claro. Mas é sério. Espero que você se cale e calcule: dá pra ter alegria com uma irritação dessas?

sábado, 2 de abril de 2011

A alma exercita

“A alma exercita essas caixas de primeiros socorros cheias de colódio e gazes antes que o sangue saia das feridas”. Por mim pode fazer aquilo que achar melhor. Há uma faca afiada na gaveta e um celular aí sobre a mesa. Tivesse agido diferente, antes, e agora essa decisão poderia ser outra. Não é castigo, nem nada. Quando lhe propus sinceridade incluía algo parecido, assim, com os dez mandamentos. Você subestimou Moisés, mas ele sabia abrir o Mar Vermelho e você mal consegue pagar as contas essenciais do final do mês. Cansei das inúteis concessões, dos tédios embalados para presente. Esse siri vivo que transita a patas largas no meu estômago, vou extirpá-lo agora. De dentro para fora. Você não deveria ser voluntária do CVV, o mundo perdeu uma grande arquiteta, ou uma assassina. É tarde, tchau.

sexta-feira, 1 de abril de 2011

Como sempre

Como sempre trouxesse para si o que era alheio, justificava-se dizendo que Karl Marx, cansado de sua dureza, criou para si próprio seus pensamentos econômicos. Que Schopenhauer, entediado com o mundo, escreveu o que escreveu para uso pessoal. Silvério era, enfim, a própria justificativa de sua vida sem grandes ideias ou realizações generosas. Imbuído de repentina megalomania, no entanto, pensou em escrever a obra definitiva da literatura do mundo. Tratou advérbios com a fineza dos pronomes, remanejou elipses, hiperbolizou conclusões, capazes de minimizar Cervantes ou tornar Camões um amador nas rimas. Sem pensar em convencer o leitor, mas antes a si próprio, tirou o “sil” de seu nome, assinando apenas Vério, para trocadilhar com velho (sábio), vero, verdadeiro. A proliferação de textos provavelmente o salvou do suicídio, mas não houve um são editor que a quisesse publicar.