segunda-feira, 31 de maio de 2010

Como negar

Como negar tamanha estima camaleônica? A vida compõe-se de sugestões, então se a moda é o mortífero sucesso do pretinho básico, pretinho básico. Se saia, saia. Jamais uma indefesa neurótica anônima, que é o que Clara é. A varredura ocular nas outras mulheres aponta bem o parâmetro do riscado. Sem falar nas revistas fashions, decisivos bons-tons para uma existência desafinada.
Não sabia que Odécio era um policial à paisana. Soubesse, nada ocorreria. Empresário é o in, nos seus eitos de vidros fumês. Lá dá pra se enterrar num homem que caça bandidos e maltrapilhos? Mas quando viu, já era um amoreco. O cio narcísico nem teve tempo de deliberar sobre as últimas tendências da paixão. Clara tinha Odécio na traquéia. Entre engoli-lo ou regurgitá-lo, desreprimiu-se. Amou eternamente aquele cafona, com toda a obsolescência que a palavra “cafona” pode exprimir àquele contexto fora de moda.

domingo, 30 de maio de 2010

Dentro da casa

Dentro da casa há livros e uma mesa de bilhar. Nessa época do ano ninguém consegue ficar no quintal, só que casa fechada e meninos também não se enrabicham. Esses costumam grudar na cozinha, feito moscas sonsas, para lamber os fundos das latas de leite condensado, horas antes de surgirem os disputados pudins. Não é castigo, nem sossego, é o tempo, frio e úmido, em contraste com a sina aquecida da vida aos saltos e brincadeiras. Um marido com emprego garantido, uma mulher açucarada. Redundantes balas geladas de coco na compoteira azul. Na fugacidade pródiga da cena literária, as palavras no ar da vida do menino sozinho entre as mangueiras, que lia histórias de Robinson Crusué, compridas, que não acabavam nunca. Mas, na leitura do avô, chegavam ao fim justamente nesse ponto, no qual não acabam. O mal, então, se desenhou apenas no pano verde. Foi a inabilidade renitente de nunca encaçapar a bola 8.

Ilustração: Manuel Almeida / MPArteDesign/Econtrada na net

sábado, 29 de maio de 2010

Depositou beijos

Depositou beijos perfumados no antebraço escasso da anã Rose. Não a odiava, embora a namorasse por exclusão. O mundo do circo deixou Melo fogoso e criativo. Lana, a trapezista para quem olhava longa e pornograficamente, só tinha olhos para o vetor do domador Ulisses. Depois havia Morga, a mulher-gorila, cujos caprichos não estavam disponíveis para mágicos, voltava toda a sua símia volúpia às macacas tietes, que sonhavam com o contorcionista Igor, gay de nascença e credo. Dona Glória Vênus, nem pensar! “Aí, Melinho linda, vem jantarrrr comigo na horrrrrra da meu marida na espetáculo...”. Melo ia? Nem tchuns. A afrancesada era mulher do dono, Apolo Stracovick. Homem, lá, de seu metro e noventa, ex-mercenário nas Malvinas, que deixou a guerra para batalhar com o circo, comprado com o soldo das mortes. Altura e força, portanto, que faltavam à anã Rose, que lhe sobravam na luxúria e lascívia. A ter que dependurar a vara mágica, Melo a utilizava assim, em prestidigitações mínimas que, quando embriagado, costumava bradar aos gozadores convencionais: “são originalíssimas!”.

sexta-feira, 28 de maio de 2010

Temporal de propósitos


Temporal de propósitos é o que tenho comigo, assim como uma chuva de intenções. Pisado pela memória de elefante, guardo cada possibilidade de reparação de antigos erros. Estou convertido. Não quero ser poleiro das aves de mau agouro. Então combinei com Beth, brindando a flûte fervilhante de Velvet Clicquot, “todos aqueles otários que nós ludibriamos com a venda dos lotes em duplicidade, vamos ressarcir!”. A secretária assustou, nunca viu gatuno voltar atrás nos acordos leoninos que o favoreceram, esfumaçou as pestanas e ainda me disse insolente: “o senhor fará isso? Duvido?”. Vaca. Trabalha comigo há dez anos e não crê nos meus intentos? Cabecinha intranscendente. O olho da rua está piscando pra ela, deixa estar. Ressarcir não quer dizer tomar prejuízo, nem pagar tudo o que se deve. Quer dizer apenas compensar. Compensarei todos os lesados, oferecendo-lhes ajuda jurídica a preços módicos. Pago advogado fixo pra quê?

quinta-feira, 27 de maio de 2010

Lancinante lhe seria


Lancinante lhe seria leve. A dor de cabeça de Miranda era aflitiva. Como se o cérebro em revolta de repente cismasse em não caber mais na caixa craniana, e optasse por saltar pelas têmporas. Miranda implorava um par de óculos escuros, capaz de lhe devolver às cegas o sentido da existência. Cambaleava no ponto de ônibus, quando encontrou Laina Kariny, a porreta nordestina loura, esticada numa calça colant e esvoaçada em sua blusa de seda policromada. Contou-lhe o drama sem conhecê-la, e ouviu atônito: “chifre!”. A princípio não queria acreditar no que ouvira. Entre uma dolorosa fisgada e uma pulsação sofrida, que lhe palpitavam desde o crânio, ainda conseguiu argumentar: “eu nem casado sou, nem tenho mulher ou namorada”. E Laina Kariny não recuou: “de outra encarnação!”. Num misto de exorcismo, descarrego ou inconseqüência pura, deu-lhe um tapão seco, no pé do ouvido esquerdo. Miranda desequilibrou-se e caiu perplexo, enfurecido. Laina Kariny, provocadora, sorriu pra ele, e tirou da bolsa um analgésico comprimido: “nesse caso, isso aqui pode curá-lo!”.

quarta-feira, 26 de maio de 2010

Elevação


Elevação, proeminência e elegância. Esse Jurandir tem cada uma. Divulga no currículo suas supostas qualidades, para vender-se como íntegro e reto, sem contar a ninguém que não é destro na vida real, só no espelho. Sem mencionar que frauda a gravidade da lisura, por meio de levitações mais que suspeitas. Sem mencionar que não era médico, mas paciente, nos cinco anos em que esteve no hospício.
Ainda manda poemas às psicólogas dos recursos humanos, nos quais fala de corações e outras entranhas, que acabam sempre resultando em êxito. Só esse mês, arrumou seis empregos. Claro que não ele dura, porque sempre pronto a dizer “não me diga”, mal entende as funções para as quais é recrutado. Então começa de novo: distinção, grandeza e dignidade. Esse Jurandir dá saltos em distância, no atletismo manco desse mundo.

terça-feira, 25 de maio de 2010

Hilária a Laura


Hilária a Laura. Meio humanista maldita, meio comuna-society. Tem têmporas dialéticas, a doidivana. Cérebro em curto, que tanto pode levá-la à mistura da Lei de Newton com os peitos das inimigas das quais fala mal (“tanto as maçãs como tais peitos caem”); quanto ao romance arrebatador entre as luzes traseiras de freio e o motociclista distraído, que vinha logo atrás.
Parece loucura, mas é Laura. Habitante do pico mais elevado na topografia do purgatório. Nem se pode pensá-la má. Boa, também não se pode. Laura é a lança de Dom Quixote, que atinge antes os moinhos das pradarias das noites. Perpassa nexos e orelhas dos imprudentes que a abordam sérios, para um papo ou uma cantada. Ira de Deus e do diabo, a Laura. Mas não perde um culto, nas manhãs sonolentas de domingo.

segunda-feira, 24 de maio de 2010

Showzinho chinfrim



Showzinho chinfrim o de Rinaldo. Sorte minha foi não ter consolidado o mico de levar outros convidados, como ele queria. Sem acompanhamento, o próprio Rinaldo, eu, mais oito conhecidos dele, lá da padaria, além do pobre porteiro, ouvimos, digo, testemunhamos aquilo.
Desde pequeno Rinaldo é assim, entende-se cantor, saxofonista, músico, enfim. Aplaudimos com moderação, para ele não desconfiar. No fundo, acho que por trás dos acordes débeis ainda sobra alguma seqüência mental em Rinaldo. Mas ele se insiste “puro jazz”. Deve ser a influência do Ornette Coleman, com o cérebro do Thelonious Monk, no final da carreira. Observando bem ele tem muito de Charlie Parker: a paixão pelo uísque, pelas drogas e o corpo estragado pela mistura de tudo isso, por exemplo. Agora ele está falando em abandonar a carreira. Carreira? Bacana, né? Sempre apoiei o lado artístico do Rinaldo... em tudo.

domingo, 23 de maio de 2010

Não admito


Não admito cao à honra de Genicleide! Papo sinistro. Trabalho no vapor, na galera do Miltinho VP, há uma cara. Sempre na moral. Bons costumes. Cresci no respeito da organização e até casei com Genicleide na boa. Pastor e o cacete, pra alegrar as avó e a mãe, meio bíblias. Aí , o Miltinho VP mandou até o barraco pra gente ficar por perto. Dignidade. Agora essa história da Genicleide fazer café e levar quase toda a noite pro Miltinho é de respeito. O cara é casado, e ela também, comigo. Olha as línguas. Mano aí insinuou que o Miltinho casou a mina comigo pra limpar a dele com a patroa, aí dá vida boa pra nós dois... Aí, vai ter morte! Gosto da vida boa que tenho, na moral, e fim. Se for preciso até seguro as broncas do Miltinho, mas já falei pra ele do assunto, e ele também falou pra mim. Genicleide vai continuar levando café no barraco do chefe, e se neguinho vier com esse papo atravessado vai pra geladeira do iemeéle. Sô gerente aqui...

sábado, 22 de maio de 2010

Um córrego


Um córrego vertical escorria entre as pernas de Gilberto. Cerveja vista à distância, pelos fundos do efeito, sempre termina no banheiro mais próximo. Com um olho sartreanamente para o ser o outro para a nádega de Valéria, que via pela minúscula janela do banheirinho putrefato, Gilberto confundia sua atenção, sem saber direito de qual dos dois deveria cuidar primeiro. Outro efeito do álcool, que o levava a desenhar um ponto de exclamação com a boca, outro, de interrogação, com as pernas, e a configurar um tortuoso caminho de dúvida: a quem acudir?
Certo é que já saiu errado do banheiro. Com as calças mijadas abordou Valéria, soberano como todo bêbado. “Há mais coisas entre o céu e a terra do que as que o seu pedantismo conhece”, retrucou a infante, cabreira. Num viés pra fazer graça, Gilberto desconversou: É o que o réu disse quando lhe puseram uma corda no pescoço? É uma lição que nunca esquecerei.

sexta-feira, 21 de maio de 2010

Na vila

Na vila, Lobo Aurélio colocou sua palidez, olheiras e voz rouca para não fazerem nada, sob as copas da jaqueira. Junky urbano, travestia-se de beatnik sertanejo e rodava os campos, onde rolasse on-the-roadianamente um rango de graça, uma libidinagem essencial e, preferencialmente, um alambique não muito longe, para “degustações” furtivas de umas caninhas. Escolhia as rota instintivamente, como escolhemos coca-cola no lugar de guaraná porque preferimos coca-cola.
Na mira de uma doze, Lobo Aurélio desligou o despojamento e se ligou, atento para encontrar cada caroço cuspido no mato, da melancia roubada na roça de Seo Jerônimo. Era o castigo do caboclo àquela empáfia citadina. Contou depois, aos companheiros, sem afogar o riso, que “tirou a ideia” de uma moda-de-viola. Mas a versão de Lobo Aurélio, que gostava mais da prolixidade do que de melancia, cá entre nós, era bem melhor.

quinta-feira, 20 de maio de 2010

Sujeito solitário

Sujeito solitário o Fernando. Agora deu para o canto lírico. Comprou um karaokê, onde só ele e o Pavarotti soltam a voz no microfone. Ninguém mais. Nem Maria Callas tem chance. Pra não dizer que a menospreza, está lendo uma autobiografia da diva, psicografada por um fenomenal médium de Varginha. Até para assoar o nariz o Fernando nos remete a uma trombeta vigorosa, um dó tenor ou de “de peito”, como costuma vangloriar-se. Pior é o silêncio de Fernando. Quando não está cantando, cala-se (sem pensar na Maria, bem entendido). Fica só nos hã-hãs, emitidos periodicamente aos interlocutores incautos. O único dia que o vi sair do sério foi naquele em que Yolanda, que já foi sua namorada, disse a quem quisesse ouvir que Fernando nunca chegaria ao apogeu, porque falhava antes de qualquer êxito. O cara virou soprano! Num falsete de trincar ouvidos e copos de requeijão Poços de Caldas, concertou e consertou o cacófago ao público: “isso é coisa da boca da cadela”.

quarta-feira, 19 de maio de 2010

Fedia desfaçatez

Fedia desfaçatez por fora, e sabe-se lá se por dentro, daquela micro-saia escandalosamente glútea que Alzira usava. Seu despojamento tô-nem-aí, astuciosamente calculado, também deixava desavergonhadamente claro no subtexto que não se tratava de um furioso equívoco pensá-la vadia. Quando contou “um caso” seu, então... Trocara o infeliz do marido por um cunhado do massagista espanhol de Ronaldinho Gaúcho, na época do Barcelona, como isso a tornasse íntima das obras catalãs de Gaudí ou da coroa do rei Juan Carlos. Do alto de uma cátedra fantástica e com o prazo de validade racional vencido, Alzira ainda insistiu para os presentes dessem uma nota de zero a dez para o seu charme. E todos, paspalhos, gritaram grogues a céu aberto: “déééééiiiizzz”, sem desmentir a mentira bêbada. Só Carlinhos que, como o nome aponta, é um tipo plural, resumiu lacônico: “o mijo de vocês subiu à cabeça”. Funesta, Alzira, num lance killbillônico, ergueu a perna, mostrou as partes e derrubou Carlinhos da cadeira com um chutão na testa. A ébria galera bradou pastosa, monossilábicamente: “bíííssss, Alllzzzira”.

terça-feira, 18 de maio de 2010

Manchas na visão

Manchas na visão já não são, assim, uma novidade. Pode ser o efeito da nicotina ou da crítica afoita aos buracos da camada de ozônio. Não, não seriam os marcianos que só eu detecto, nem as queimaduras cósmicas que enxergo na retina do horizonte. Começo de um fade-out universal também não é, tenho certeza. O mundo não acabará no escuro. Não com essas ondas sucessivas, espumantes, incessantes que tem dominado os litorais do planeta. Elas são brancas. Quando muito, escuras, de um cinza claro. Não sei se você já reparou nesses tsunamis ou nos descongelamentos polares? São mais claros do que escuros. Também não acho que os nano-segundos de um piscar de olhos possam causar isso tudo, a partir dos corpos flutuantes que transitam pelos glóbulos. Fui, fui ao médico, sim. Fez exame de vista, pressão ocular, essas coisas. Não achou nadinha. Claro que comemorei. Bebi muito, muito mais do que esse litrinho essencial de cachaça diária. Não é todo dia que a gente sente, no fundo, que enxerga o mundo!

segunda-feira, 17 de maio de 2010

A barulheira

A barulheira atraiu gente de todo o quarteirão. No fundo, Helena só queria dissipar dissabores, distrair-se dos recentes pavores e colocar Marcolino no seu devido lugar. Traidor de uma figa.
Mas os ódios magníficos da mulher foram despropositados. O canalha saíra cedo para levar Marcolininho no parque, a fim de “aproveitar o domingo”. Lá, como disse a música, Juliana foi que ele viu. Aquela, com a qual passou o dia, que começou no bar do parque e terminou na casa dela, às oito da noite, horas depois de Marcolininho ter retornado sozinho pra casa e dito à mãe que o pai sumira com “uma (outra) mulher”. Helena esperou no portão, e quando o marido disse “forfavor”, ao invés de por favor, para obter a licença a fim de entrar em casa, o que viu foi a (sua) mulher travestida de Medéia secular. Seus olhos estavam rubros, suas roupas manchadas de vermelho e no facão escorria qualquer coisa gosmenta. Antes de urrar, Marcolino quis, no fundo da alma, ser daltônico.

domingo, 16 de maio de 2010

Não tenho sido

Não tenho sido compreendida, Elvira, minha amiga. Há um rancor nefrálgico em Alberto: ele mija de raiva de mim, porque deixei água parada no vasinho de hortênsias, e ele jura que minhas modestinhas flores lilases lhe causaram dengue. Aquele famigerado mosquito funcionou como uma loja de conveniências ao Alberto, um vampiro aberto 24 horas, pronto a picar o cara que queria um motivo para se livrar de mim. Foi isso, Elvira, mesmo sóbrio ele é um homem duplo: um Concha y Toro, de nascença.
Alberto chegou tossindo, febril e gritando, como se afinasse uma tuba que guardava no peito, e destrambelhou lembranças do dia que passou no Carrefour só para me comprar as flores, claro, no Carrefour, liquidação Elvira, mas sobre isso eu não disse nada. Depois transformou todas as suas ótimas ações e os magníficos presentes numa única e ampla sombra para a nossa incompatibilidade de gênios. Ectoplasmas da recordação. Fantasmas que passaram a nos freqüentar. Então, Elvira, bateu a porta e se foi de vez. Quer saber, quero que a dengue dele vire hemorrágica... mas nem sei se o canalha tem sangue nas veias pra isso.

sábado, 15 de maio de 2010

Estirou os braços

Estirou os braços, ergueu a tampa do piano e sapecou um arranjo piazzólico. Já há dois dias, afinal, Julieta o havia deixado, tocada em fuga pela sua intocada insensatez. Adios nonino. O lado melodramático de Nivaldo era “cool demais”, havia dito à moça seu amigo Horácio, do sexo mais ou menos oposto. Foi-se, e as notas ficaram. Fluindo do velho piano da sala numa tristeza maxicool.
- Ma che cazzo sucede qui? Entrou gritando Arthuro, amigo do casal, que logo foi à geladeira e matou um naco de pizza que lá habitava desde o primeiro tango gravado de Carlos Gardel. O pianista solitário, Clayton, era o seu nome, olhou solene ao amigo e quase em lágrimas, continuou dedilhando enquanto explicou ao ítalo-companheiro: “Ela me deixou!”. Arthuro o olhou, olhou para o alto e, como na piada insólita, sussurrou apenas: “cante um pedacinho aí, pra ver seu eu sei!”.

sexta-feira, 14 de maio de 2010

Impôs um estrito

Impôs um estrito silêncio e olhou cada um dos presentes nos olhos. Então soltou uma longa, demorada, duradoura, extensa, dilatada, alargada, propagada, difundida, comprida, retardada, incontida, sonora e brutal flatulência. Trocou uma espalmada de mão seguida de um soquinho de punhos fechados com o criado, ao som de um “yeh” e, para completar a estupefação da reduzida platéia, pediu que trouxessem um vinho cujo preço daria para alimentar durante quinze dias uma família de onze pessoas do Vale do Jequitinhonha, incluindo seus seis vira-latas, dois papagaios e quatro passarinhos de estimação. Pediu mais duas idênticas garrafas, imediatamente abertas, para que todas as taças fossem servidas. Nenhum presente decidiu por completo se o que sentia era asco, ódio ou deferência. Na dúvida e com ordem expressa, todos brindaram, com fascínio fariseu. O homem deu-lhes as costas e saiu lentamente pelo portal do recinto. Nenhum tchau ele deu.

quinta-feira, 13 de maio de 2010

Vivesse congelado

Vivesse congelado dentro de um cubo de gelo de uísque e Umberto não se sentiria um excluído. Mas a vida não é feita apenas daquilo que a gente quer, já teria dito sua bisavó, a primeira a tentar imprimir nos confins dos miolos marinados em vodka daquele desmiolado, que ele conseguiria, sim, ser alguém na vida. Errada no propósito, a velha acertou em cheio no pronome indefinido. Alguém, Umberto, afinal era. Um cara com um cérebro surtado, capaz de imaginar que todos o consideravam indesejável. E se a inveja é uma merda o sentimento de perseguição é duas merdas. Não havia situação na qual Umberto não achasse que outro alguém o estava boicotando, recusando-o sistematicamente, deixando-o de lado. Os dois beijinhos que a desconhecida Kátia deu em seu rosto, para cumprimentá-lo à toa, tocou-lhe a aflição. Considerou-a uma judas, de quem por trás logo viriam os soldados para executá-lo na cruz. Ante seu susto explícito, a moça também se sobressaltou: “cara, você não é do tipo que gosta de ser gostado!”. Umberto acuou-se. E virou de uma só vez o copo de gim que tinha nas mãos...

quarta-feira, 12 de maio de 2010

A monumental honestidade

A monumental honestidade era praticada apenas quando o assunto se distanciava de mulher. Nas situações que as envolviam, Dorneles era um babão contumaz, capaz das mais indignas torpezas ou desonestidades. Verdade é que não era qualquer mulher. Havia de ser loura e, preferencialmente, sem ares para a esperteza. Dorneles derretia-se, desprezível à vida. Enxergava inúmeras Marilyns de Warhol, naqueles corpinhos de Vênus de Milo com braços (dois, diga-se). Então utilizava sua posição de chefe no gigantesco escritório, e as contratava como auxiliares. Mostrava-lhes as vitrines que nunca tinham visto, os doces que jamais comeram, roupas que poderiam lhes cair bem, sempre bancando um jogo imprudente, um tantinho assim da corrupção. Até que surgiu Camila, fazendo-se de rogada. Dorneles, fissurado, deu-lhe o emprego e os mimos, mas a moça mansa e sonsa era do tipo quietinha que queria mais. Dorneles foi pra miséria, e matou-se logo em seguida, com uma overdose de uísque barato. Quem foi ao velório, jamais se esqueceu, no entanto, daquele sorriso monalisíco do defunto fresco.

terça-feira, 11 de maio de 2010

O cara queria

O cara queria ficar odara, feito o irmão evangélico que, desde a crença, foi-se despossuindo de seus pequenos demônios. Sua praia, porém, se diferia em tudo daquela onde o irmão bronzeava-se em liturgias. Lia as flores do mal ou Rimbaud ao invés da bíblia; fazia cara de compenetrado mas pensava mesmo era numa beca dândi, ao invés do terninho crédulo e ridículo “from Pernambucanas house” (como dizia ao irmão); e assobiava Satisfation, com arranjo mental para harpa e gaita, a ter que decorar compridos hinos celestiais ou musiquinhas brego-góspeis. Feito lebre que voa, saltava de empregos em empregos, amores em amores, sem deixar marcas de pegadas de um mínimo profissionalismo que fosse. Deu-se, porém, que o irmão crente exigiu-lhe o dízimo habitacional: sua parcela de contribuição nas contas de água, luz e comida da casa dos pais, onde moravam. Foi a conta. Num misto de revolta e indignação, acrescidas de nenhuma vergonha, respondeu seco ao abusado: que pague a conta quem leva a felicidade. Foi expulso, é verdade, mas passou a viver feliz, odara, sem as mesquinhas comparações da descrença.

segunda-feira, 10 de maio de 2010

Enseada na seca

Enseada na seca arregala a saga daqueles que odeiam água. E era o caso Guilherme, um continental assumido, que só topava o passeio àquelas proximidades do rio porque os amigos lá se instalaram, com rancho de pesca e lancha de ócio. Inapto para as coisas psciculturais, torcia pela baixa do nível daquela diversão aquática. Então crescia como algarismo à direita. Cuidava da cozinha, da limpeza mundana, dos afazeres, enfim, para um bando de homens numa beira de rio. Pelo prazer do pavor à pescaria era capaz de maquinar soluções entorpecentes àqueles meninos no cais da profanada diversão. Criava adivinhações de sabores para supostas misturas de álcoois, jogos de cartas ou enigmas de lembranças de amores molhados. Quando não chegava ao êxito, punha-se a dedilhar um violão, numa sensação única, como morrer ou defecar. Mas nenhum dos amigos, pescadores convictos, topava o programa, se Guilherme não fosse.

domingo, 9 de maio de 2010

Calado e cruel

Calado e cruel, Moacir era uma máquina de desgraças. No verão, costumava ser nazista. Comunista no outono e integralista no inverno, por primaveras seguidas sempre foi um egoísta. Abruptamente transformado em interventor daquela cidadezinha pacata e sertaneja, sabe Deus por quem (assim que o prefeito desapareceu, como se abduzido), logo baixou bucólicas determinações, tal a que obrigava todo cidadão maior de quinze a subir nas árvores ao entardecer. A ordem de Moacir era a da existência de “pés de gente”. Nos períodos de chuvas e temporais, determinava que também os menores de quinze deveriam subir galhos acima, na esperança de criar mártires: pessoas atingidas por um raio, no estrito cumprimento da lei. Tanto insistiu que, num entardecer de dezembro, cinco munícipes foram torrados por uma descarga elétrica vinda do céu. Com um sorriso vitorioso face afora, Moacir chamou o trêmulo e hesitante escultor: “eternize a cena!”, decretou. Para concluir, quase num sussurro: - A história é feita de grandes gestos.

sábado, 8 de maio de 2010

No aguaceiro

No aguaceiro, o rapaz do violão refez alguns jogos cênicos que lhe favoreciam perfeitos para a platéia, como cantar “chove chuva, chove sem parar”. Então mortos e assombrações, que daquela canção tiravam reminiscências, puseram-se a cantar até de manhã, lindos, para um show de bebericada paciência. Só Edison maldisse o contexto. Lamentando o guarda-chuvas ausente, observou a profundamente provinciana cena dos piores momentos de uma geração. Mantém-se contrito, porém, pela ausência da coragem de encarar uma surpresa molhada que fosse, capaz de livrá-lo do refrão “por favor chuva ruim, não molhe mais o meu amor assim”. A obscura decisão custou-lhe a expressão sadia de um olhar nem um pouco fotogênico. Aquela cara de tacho, sombria modéstia ou pior parcimônia deu-lhe nos bagos. Levantou a mão, como se orquestrasse os pingos e notas musicais, para bradar abominável: “puta caretice!”.

sexta-feira, 7 de maio de 2010

Pudores tenho

Pudores tenho lá os meus. Às vezes os recordo, sem saber a diferença entre alegoria ou alegria. Alergia? Feito troca de palavras, por exemplo. Aquela, errada, na situação em que se dá. O suspense que gera, pra ver a reação dos outros. Sabe-se lá se há algum sabido na roda de ouvintes. A memória fica meio labiríntica: igual ao bolso cheio no qual procuramos uma moeda de 25 centavos, para facilitar algum troco. Esses gestos impulsivos, dos quais nunca mais nos lembraremos. É o mal da gente querer ser oportuno. Mas pudor não é vergonha nenhuma, tem muito sem vergonha que o tem. Na clausura do banheiro com fila, por exemplo. A gente fica sem dente pro riso. Só na ansiedade do que fará ou do que virá quando a porta se abrir. Depois ainda dizem que ninguém é perfeito. Penso, cá comigo, isso pode ser coisa de algum deformado. Tenho pudor de dizer, mas que penso, penso.

quinta-feira, 6 de maio de 2010

Não só o vício

Não só o vício, mas a liberdade nos condena. Senão o vício seria impelido a não existir. A liberdade... a liberdade é o grande algoz. Entre baforadas, as palavras de Geraldino quase cantadas, naquele fundo de vila, por força da constatação decisiva que lhes atribuía, deixavam Lucas em estado de perplexidade. “Como um velho daqueles, que mal aprendeu a ler, era capaz de filosofar assim?”, se auto-indagava o jovem, que correu dali para a redação do jornal onde trabalhava, a fim de explicar o fenômeno ao editor. O jornalista leu tudo com a atenção dos ocupados. Entre sins e sei, balançava a cabeça afirmativamente, a cada nova revelação de Lucas. Por fim, virou-se ao moço, com o enfado dos vividos, e sentenciou com seriedade: “esse bicho-grilo sem a grila deve fumar todas, né?”.

quarta-feira, 5 de maio de 2010

De cortesia

De cortesia ganhou apenas a bucha já seca. Nada de água. Nem cheiro de sabonete. Pedira um banho mas, naquele fim de mundo, pedir não era o bastante, seria necessário comprá-lo. Perguntou o preço ressabiado. Também não tinha muito a oferecer por um balde com água. Não tinha, na verdade, quase nada, que dirá a oferecer. Mas escutou a resposta: recebida como uma ducha de água fria. Não tinha meios para custear o esmero, o valor do asseio. Afinal de contas, somado o desejo à situação, melhor seria subtrair vontades frívolas. Sim, inúteis, naquele canto remoto onde nem havia decoro nas vidas, que dirá bom-tom! Decidiu seguir para mais adiante. Ir à luta para vencer, porque voltar seria uma derrota. Então chegou onde não devia. Já não havia chances de sobreviver sem o amor de Amélia. Nem havia bucha, seca que fosse, para um gesto de cortesia naquele lugar solitário.

(Ilustração: “Solitário”, 1925, de Oswaldo Goeldi)

terça-feira, 4 de maio de 2010

Arrebatado pelo olhar

Arrebatado pelo olhar de Lavínia, Olavo quis render-lhe graças empurrando o banquinho de madeira em sua direção. Que se sentasse naquela solenidade enfadonha, onde todos se encontravam em pé. A moça sorriu, com um lânguido suspiro perturbado, mas aceitou de bom grado. Presunçoso, Olavo quis avançar na ocupação daqueles olhos, sediar a atenção de Lavínia com mesuras demasiadamente afetadas para, enfim, iluminar-se único com aqueles brilhos um tanto azuis esverdeados. Desconhecia a pecha de cobra que paira sobre as mulheres de olhos daquelas cores. Enlevado, já, com o simulado acanhamento da moça, tratou de pedir-lhe o parco espaço ao seu lado. Foi se encaixando nas partes que lhe tocavam, ajeitando tronco e membros, tateando hora e vez de abrir a matraca para convencer Lavínia a sair, ficar, estar, casar ou com ele namorar. Tolo, Olavo. Do baixo do banquinho, Lavínia olhou-lhe dos pés à testa, como se o demarcasse o corpo com um feixe de raio laser agressivo e cortante. Olhou para o nariz de Olavo, não para os olhos, e falou mansa: “vá curar essa coriza, rapaz!”.

segunda-feira, 3 de maio de 2010

Ao luar beethoviano

Ao luar beethoviano quis parecer uma pessoa comum, ouvindo sonatas. Assim, do tipo hominus-domesticus, que caminha com controle, senta-se na sala para ler jornal e passa manteiga no pão. Quis comprar jornal na banca da esquina. Pôr-se à varanda e cumprimentar quem passasse. Mover-se, enfim, como um pêndulo de ilusão. Previsível: pra lá, pra cá.
Que se danassem as sucessivas chamadas nos noticiários sobre a descoberta de outro menino morto. Queria ser surdo, embora aquele alvoroço todo lhe aguçasse a audição. Que corressem para cima e para baixo os carros de polícia e suas sirenes histéricas. Ele permaneceria lá, intocado, simples e ordeiro. Serial killer que se preza é assim, pensava consigo mesmo. Não fica por aí dando demonstrações de arrogância. Quando muito, troca o CD, e coloca a Bachiana nº 5, também triste mas, mais brasileira...

domingo, 2 de maio de 2010

Esfarrapada e óbvia

Esfarrapada e óbvia a desculpa da xícara de açúcar. O mais acintoso do assédio, porém, foi mostrar ao vizinho a dupla de anjos que protegia suas nádegas, sabe Deus de quê, naquela tatuagem estampada na altura do cóccix. “O que você acha que eu acho?”, ainda tentou desviar o rapaz, respondendo-lhe à pergunta inoportuna.
Ela já estava no zênite do mau humor quando ele, enfim, decidiu ceder. Concordou visitar o apartamento da vizinha, para experimentar o bolo. Mas afinal, tudo não passava de uma fabulação do açúcar. Não havia farinha, nem ovos, nem receita alguma. Tocou a campainha como quem se dá ao carrasco. A cena não era lá das piores. Havia um vaso de rosas brancas sobre a mesinha redonda. No sofá, hordas de ursinhos de pelúcia. O sala e quarto não cabia em si de felicidade. Com olhos jaboticabais, ela lhe sinalizou para entrar. Dois beijinhos. E um amor tão eterno, que só terminou quando a última sirene apitou, ultimando a implosão iminente daquele edifício velho, o que de fato ocorreu, nos segundos seguintes.

sábado, 1 de maio de 2010

Profilaxia

Profilaxia. Limpeza. Não há exceção excepcionalíssima. Essa cara de suflê amanhecido não serve para minha conduta disney-jóia, assim, clean-de-mais. Ensaboa, mulata, ensaboa. Deus pode ficar sossegado que eu não quero nada com gente cheirando a trabalho braçal. Não quero gafungar sovaco de quem esfregou veja-limpeza em toda a casa, quero a casa . Vou levar minha consciência para passear no shopping. Lá, sim, há perfumes controlando o ar...
Veja você, Adalgisa, com essa fala alambicada, esses cabelos verdes-vagneres-loves, esse suor de febre eterna, acha que dá? Semi-anarfa, engajada em preservação e palpitando economia com esse hálito de sem-colgate? Por decência, Adalgisa, vá tomar um banho e trocar de roupa. Bom, depois, nem precisa dizer nada...