sexta-feira, 30 de abril de 2010

Sem sinal

Sem sinal de internet seu cérebro entrou em falha operacional. Acabara de sofrer um dos duros golpes de sua vida. Outro foi quando Tobi, o poodle toy que comandava quase que por controle remoto, com os vários toques dos tons de seu celular, morreu eletrocutado no estabilizador de energia do computador. O ódio aos relacionamentos presenciais só não era maior do que o pavor patético à falta de energia elétrica.
Depois de ter contado até oito decidiu arriscar uma canção. Ele cantava guarânias, mas não havia o fone de ouvido, nem tom do áudio, nem a letra na tela, então se calou, numa afonia de fazer dó. Ensaiou ler um livro e o papel lhe causou asco. Como que guiado pelas mãos de Hitchcock foi até a cozinha, e acendeu os bicos do fogão na esperança de iluminar um pouco aquele breu. A sombra de seu próprio corpo na parede o atemorizou profunda e confusamente. Então se deletou dessa vida... totalmente besta... quando desconectada.

quinta-feira, 29 de abril de 2010

Nesse lugar

“Nesse lugar sagrado, onde passa tanta gente, Faz força o mais covarde E se caga o mais valente”. Atílio tinha a mania de escrever frases nos banheiros públicos ou privados pelos quais passava. Textos avulsos, às vezes microscópicos entre os vãos de um azulejo e outro, uma quina ou parede suja. Piadas sem riso, que fazia de si para si próprio, por vezes copiadas de outros dabliocês, mas sempre com o pensamento voltado para o próximo.
Já grafava as últimas letrinhas de “ida”, na frase “o peido é o grito de liberdade da merda oprimida”, quando o segurança do shopping o trouxe de volta à realidade. “Parado aí, seu sacana, parasita... Agora você vai limpar isso com a boca!”. Atílio estremeceu. Não por medo, mas por nojo. Sabia bem que, em certos lugares, onde se põe palavras, jamais se coloca a boca.

quarta-feira, 28 de abril de 2010

Quando prometeu

Quando prometeu a salvação foi logo avisando “não acostumem”. A religião era nova e quem mordesse línguas ou mucosas em seguidas orações para alcançar a paz corria o risco de perder a parte boa: a dança. Era entre simuladas colunas coríntias, salomônicas, tibetanas e jônicas que se pregava uma alegria à beira do profano. Irmã Juraci, por exemplo, apertava contrita a mão de Ernestão, enquanto sussurrava-lhe o mantra: “quem agüentaria nascer, viver e morrer do próprio tamanho?”. Pronto, era o rito de passagem, que todos ali esperavam com uma redenção lambuzada. E uma enchente estéril de explicações toscas revelavam “me digas”, “me descreva”, “me contes”, para que cada par pudesse narrar sua experiência naquele ápice de fé. O pastor apoiado no queixo, então, pregava uma espécie de veredicto: “quem já produziu uma obra de arte sabe bem o prazer que isso dá quando ela termina”. Ah! Todos sentiam-se deuses!

terça-feira, 27 de abril de 2010

Recebia as trovoadas

Recebia as trovoadas com a indiferença de quem ouvia conversas de mães sobre seus bebês. Aquele céu pesado nem por mera observação ou curiosidade causava-lhe interesse. Havia uma relação entre ele o mau tempo. Não apenas por serem estranhos, sujeitos a raios ou capazes de tumultuar espaços e ambientes, mas por acontecerem de quando em quando, às vezes incessantemente.
Descobriu-se trovão ainda no grupo escolar, raio no colégio e tempestade quando já estudava para ser um profissional. Na falta de ofício honesto e ânsia pelo dinheiro fácil, optou por empreitar obras públicas. Doutor isso, doutor aquilo. Ligue ao prefeito, ligue ao deputado. Pague o comprador, programe a licitação. Até deu-se por milionário, mas queria o dobro. Só quis triplicar quando dobrou e partiu firme para um pouco mais. Contam que mandou ladrilhar com pedrinhas de brilhante a rua de seu amor, mas promoveu, paralelamente, a briga entre o cravo e a rosa: que deixou o primeiro ferido e a segunda despetalada.

segunda-feira, 26 de abril de 2010

Chicletes de conversa

Chicletes de conversa passavam do ser às nádegas. O ser e o nada, até ensartreou dizer, mas não havia liga. Dois adolescentes ao telefone celular pareciam despejar uma ducha de coisas algumas pelos mil orifícios do aparelho que lhes tocavam as orelhas. Surdas, as palavras, mudas, as compreensões, sobravam estalos de falas e onomatopéias de mamutes em cruzamento de pedantismos cômico-sexuais.
Não havia como esvaírem-se das atenções e ódios magnificentes, como os da senhora arrumada ao redor que, feito uma Emma Bovary secular, manifestou seu inconformismo, propondo-lhes que fossem a um motel ao invés de falarem tanta sacanagem. Ouviram e riram. Decepar a cabeça “daquela velha” não era a melhor maneira de fazê-la calar-se. Então se viraram de costas e mantiveram cúmplices aquele diálogo non sense.

domingo, 25 de abril de 2010

Suou angustiado

Suou angustiado. Seria um Marlon Brando sóbrio, não fosse a eterna insegurança: “quem haverá de me levar a sério agora?”. Mas haveria de superar essa prenhez da imaginação. Não era, afinal, tão marcado assim pelo incidente com as duas criancinhas. Seria, já, uma antiga obviedade mundana, prevista inclusive pela Lei de Newton: todas as maçãs caem, assim como as crianças travessas avessas aos conselhos. Avisou Carlinhos, naquele dia, sobre a mureta equívoca. “Foi mal” alterar seu alter-ego furioso, que provocou aquele grito censor: “desce daí, capeta”. No mundo da lua, o moleque estúpido ainda apertou a mão de Joaninha, antes de despencar daquela altura. Ele levou-a. “Eu avisei” engoliu antes de dizer. P, u, t, a, c, a, g, a, d, a, pensou lento, como se narrasse um pôquer perdido com milhões em aposta sobre a mesa. Então, aquela poça de sangue, lá embaixo, não deixava sopros para nenhuma vida. Consumatum est.

sábado, 24 de abril de 2010

Minhas meias

Minhas meias já foram duas. Sim, tenho certeza, agora é uma só. E essa camiseta não me pertence. Nossa, outro peido norte. Digo, vento norte. Fico engraçado assim pensando. Parece que tenho reticências ao final de cada frase que falo. Lamento essa lentidão. O único ser que se mantém onde sempre esteve é Esteves, o coitado do peixe, ali no aquário redondo, com aquela boca de coluna de jornal em véspera de feriado: abre e fecha. Esse sofá Grant’s, com poltrona Walker, mesinha Parr e tapete Daniel’s, nunca compôs um cenário tão torto. Deve ter passado por aqui algum cachorro labrador importado de Saturno. Com certeza ele brigou com um poodle de Marte.
Um café poderia ser o início de uma solução ou quem sabe um banho, sob aquela ninfa de pedra que jorra água do bojo no chafariz do jardim? Vou pedir pudim. Melhor, sonrisal com soda. Um engov e uma tônica, não, um trocadilho com a tônica seria o fim. Melhor segurar o impulso para depois, assim que a cabeça cair. A única certeza inteira é que as meias, sim, eram duas.

sexta-feira, 23 de abril de 2010

O brilho

O brilho das premonições subiu aos olhos de monge morgado com os quais Benedito observou Célia Margarida. Maldisse seu hábito de dizer visões às pessoas, mas disse enfim a seco: ficarás careca! Ela riu pelo intestino. E deu para erguer os braços em compulsão, como se afogasse num riozinho raso. Benedito intimidou-se. Mais: atemorizou-se. Aquele exagero na mímica só poderia ser possessão de algum diabo. Virou-lhe o espelho, de maneira a transformar em esquerdo o lado direito de Célia Margarida. Um velho truque para tirar a lógica dos endemoninhados, mas muito eficaz também para confundir os possuidores. A moça agitou-se, grudou dedos nos cabelos e os puxou sem pena. Tufos e punhados eram arrancados à aflição. Às duras penas não sobrou um fio sobre o couro. Exausta e despedaçada, Célia Margarida tombou no ombro ditoso de Benedito. Sem cabelos, como veio ao mundo.

quinta-feira, 22 de abril de 2010

Mais do que

Mais do que sensual, Angélica tinha a boca pervertida. O ar levava suas palavras como se tivessem saído de um gigante alto falante. “Aquila” era um substantivo que substituía o pronome “aquela”, no cacófago a boca dela. Concha cheia de caninos, produzindo um imenso eco, umedecido pela vodca com tâmaras, exotismo dela. No embalo dos sons saíam sins. Como se repetisse “sim”, pendendo o queixo à frente. Álcool, nunca uma concordância. As expressões néscias nasciam abruptamente em seqüência progressiva. Só poderiam ser rudes aqueles ouvidos, ou a impediriam de cunhar tantas ganâncias e pecados com aquela voz ultrassônica. A beldade anunciava sem sombra de uvas até seus míseros resultados da mistura com o vinho: “vou mijar!”. E todos olhavam “aquila”, indignados, tentando ser perfeitos.

quarta-feira, 21 de abril de 2010

Bêbado de Sol

Bêbado de Sol, mal caminhou até a barraquinha na areia. – Témanhã, ainda pontuou para Bono, o dono roqueiro com vox rouca. Talagou o que havia num final de copo, virou-se ao chamado do cara: “você acaba de beber o cianureto do cliente!”. Vi que tava com um odor amargo mesmo. Putz, vacilão, demorei anos para montar esse ponto de suicídio, isolado do mundo, e você vem dar relaxo. Pois bem, saiba que cometeu o primeiro erro irreparável de sua vida. Eu tinha que te levar a sério? Evidente, cara. Você já viu um bombeiro ir apagar um fogo achando que vai se queimar? Cara, tô achando que essa areia é mundo, a praia todos os oceanos e você a humanidade! Primeiro sintoma. Parece que me puseram uma corda no pescoço... nunca vou me esquecer disso. Segundo, não vai mesmo!

terça-feira, 20 de abril de 2010

Pude ver

Pude ver, com esses olhos que os vermes haverão de comer, o anúncio da Funerária Vida Eterna: “enterram-se damas, cavalheiros e crianças”. Ri do macabro. Pensei “ainda é muito cedo pra eu pensar nisso”, mas sabe-se lá. Exercício não faço, nem dançar danço: um rebelde sem salsa é que devo ser. De repente, numa dessas andanças, a vida me incuba um micróbio remoto. Num desafio do caminho, um carro na contramão. Num descuido, um fim sem sal. Os cemitérios estão cheios disso. Quantos caixões já não tiveram que apresentar o morto lacrado, por um escorregão no quinto andar?
Não acho, aqui, o telefone da Vida Eterna. Ela deve ter site, e-mail, essas coisas. Por via da brevidade da vida vou fazer uma consulta. Deve haver algum desconto especial para quem não tem doença mortal, parou de fumar e anda na linha. Se não tiver, azar o dela. Serei um defunto a menos.

segunda-feira, 19 de abril de 2010

O coro em Monteverdi

O coro em Monteverdi encabulava a sala de estudo da vetusta biblioteca. Por que música ali? Abarrotado de desordens íntimas, Carlos quis ouvir de perto aquelas vozes madrigalistas. Procurou por trás dos quinhentistas. Vasculhou maneiristas. Bisbilhotou barrocos aqui, ali e nada. Dura empreitada por frestas inglórias. E quanta poeira naquela labuta... Pedantismo no ar. Uma visão tão nublada quanto sua cabeça nas nuvens. Um espirro bíblico, um resto de alcorão. Danadas lembranças ou suposições ou crenças. Carlos quis pra logo desvendar as coisas entre o céu e a terra, antes que desnudassem sua vã mediocridade. Mas aquela música de Monteverdi que não parava, aquele coro inquieto, aquela beira do ápice que achava de si próprio, o faziam perder-se na geografia de seu inferno. Não! Aquilo não seria uma biblioteca. Quem sabe uma igreja? Pensou Carlos, antes de saltar da cama, suando chamas.

domingo, 18 de abril de 2010

Emergência, emergência

Emergência, emergência não era. Uma necessidade, vá lá. Naquela hora, um prego seria de bom proveito. Cair, cairia. Essas questões de acaso têm sempre, no fundo ou por detrás, uma mãozinha da displicência. Tanto tempo dependurado numa tachinha frouxa, em reboco úmido, é claro iria acabar derrubando o santo, mesmo sendo ele o Expedito, das causas urgentes. E olha que não foi por falta de aviso! Dona Glória tinha fama de faladeira e repetitiva, mas naquela questão ela tinha razão. Custava a Soraya ter pregado a imagem de um jeito melhor? Não era ela quem sempre rezava apavorada, pedindo tudo para ontem, depois das desgraças feitas? Quando o santinho caiu da parede e o Almôndega o comeu, estraçalhando pedacinho por pedacinho entre as patas e o focinho, pensei cá comigo: isso não vai prestar. Soraya ainda tentou arrancar ligeira o papel santificado da boca do bicho, mas que o quê. Não havia mais quem pudesse fazer um milagre com aquela rapidez e urgência...

sábado, 17 de abril de 2010

Como se Iguaçu

Como se Iguaçu caísse do céu, chovia aos cântaros enquanto Odete cantava.
Deixa a água, gritou Durval, o pianista, cuja cisma oculta era um medo besta de um dia morrer queimado. Dirigia-se aos muitos bêbados que deixavam as banquetas do balcão, na busca de um abrigo próximo ao portal de entrada que, evidentemente, pela localização, também convidava à saída. Uns aos tropeços falavam do carro, estacionado lá fora, temendo enchentes que o levassem. Outros aos trancos impediam pavores: “ninguém se mete com esse temporal”.
Durval dedilhou o intróito. Odete pigarreou a nota. E daquela secura , meio tirana, meio úmida, saiu uma canção inédita tão linda que todos voltaram-se ao palco inebriados. Já não havia tempestade capaz de distrair a comoção em estio, que crescia a cada acorde. Amornada, a emoção nem liga pro tempo. Tudo passa.

sexta-feira, 16 de abril de 2010

Então considerou

Então considerou encerrada a discussão. Dobrou a folha de papel ao meio, redobrou e a meteu no bolso esquerdo da camisa lilás. Levantou-se de supetão, atirou no ar um bom dia que poderia dirigir-se às moscas ou a ninguém. Não tinha o olhar voltado a Leilane. Foi a conta. A mulher ergue-se resoluta e espalmou a mesa pela a atenção perdida. Tato um tanto violento, para uma resposta docemente original: “sim, acho que fica bom assim”. Ajustou a blusa florida e perfumou o ar com o balanço do corpo. Ele então a enxergou, atônito. Leilane rouca, pela saliva que desceu errada, balbuciou aquecida nos nervos: “o senhor bem que poderia repassar essa decisão aos amigos e clientes”. Ele fez que sim. Ela concordou com o queixo.
Sociedade desfeita é melhor do que a falência, pensaram os dois, numa concordância que há muito não passava pela cabeça de ninguém.

quinta-feira, 15 de abril de 2010

Meio muito

Meio muito puto chutou água no chafariz, onde havia um peixão torto de jeito, de gesso, soltando jatos pela boca. Cercado pela noite, mas iluminado por um refletor fixo, o bicho pouco se lixou à raiva de Jacinto. Recebia a tempestade com a indiferença das estátuas. Já a lógica de Jacinto fugia por algum poro. Deixou os chutes para morder draculamente o polegar dobrado da mão direita fechada, e nem era italiano, legítimo dono de gestos desses. Só sossegou quando quedou sentado na possa do chão. Fundilhos molhados são seguros remédios pra amainar ódios soltos. Aos poucos foi trocando o ridículo pela reflexão, o insano pelo conformismo. Jacinto olhou para aqueles que curiosos o viam, burlando a gravidade com a levitação dos risos. Pareceria louco, não fosse a ciência coletiva de tratar-se de um respeitável apaixonado, numa vagabunda desilusão.

quarta-feira, 14 de abril de 2010

Apreço ou empecilho

Apreço ou empecilho era com Marcílio. Não rimava, não, mas era capaz de falar pelos braços inteiros quando queria elogiar alguém pelos cotovelos. Quase poemava. Ao contrário, coitado daquele a quem Marcílio quisesse atrapalhar na fala, numa palestra, num discurso. Não se expressaria.
Sem renunciar a vez, Marcílio desprezava os meio-termos. As eloqüências imensas tomavam dores, palpitavam jogos e amores, entoavam fúrias ou amenizavam iras. Era a própria contradição de quem se acreditava uma lenda, inventada e contada por ele próprio. Até que o biografaram louco. Foram autores, é lógico, os interrompidos. Os afagados reivindicaram-lhe a lucidez... tarde. Os bonzinhos são sempre os mais lentos.

terça-feira, 13 de abril de 2010

Será o Benedito?

Será o Benedito? Disse a mãe para reclamar. Não para perguntar nada. Aqui é que a porca torce o rabo, pensei, então pensando nela e tentando descobrir quem será o Benedito? Algum santo-do-pau-oco? Um gato por lebre?
Atílio era assim, gostava de colecionar dizeres populares, quase sempre os organizando em frases, idéias ou histórias. Logo foi esculachado pelos meninos da turma “A”, que tinham o hábito de colecionar roupas a tratar de ditados ou provérbios. Mas não havia escarnecimento que o desmotivava. Quem desdenha quem comprar, mitigava de si para si próprio. Houve o dia, porém, que Belinha estava entre os colecionadores. E Atílio, você sabe, se desmancha por Belinha, mas: - O seguro morreu de velho! Essa macaca que fique lá, no galho dela! Pensou, sem a certeza de não beber daquela água. E num rompante de ciúme e excitação mordeu os lábios, arrastou Belinha para junto de si e da ocasião se fez ladrão sem pressa, com perfeição.

segunda-feira, 12 de abril de 2010

Descobriu a sintonia

Descobriu a sintonia da música com o universo quando lhe ensinaram que era preciso afinar os instrumentos. Então buscou o tom adequado para um dueto com o vento, em trio com a cachoeira ou quarteto com um ou outro pássaro cantador, que por ali voasse. Poderia ser também o som de um galho balançando insolente ou a trilha sonora da água que escorresse entre as pedras no caixilho do rio. Se a afinação é indispensável, pensou, por que o som das coisas não haveria de sê-lo? Mijar na vertical com a entonação do córrego, que se fará na horizontal, há de ser uma peça sinfônica. Tropeçar palavras fora da afinação universal há que representar o desafino dos sujeitos para os seus predicados. Soube, então, que ser desafinado causava-lhe imensa dor.

domingo, 11 de abril de 2010

Aniversário do blog

Aniversário do blog, quis comemorar com bolo. Um ano de cretinices diárias bem que mereceria versos de Verlaine: “O luar grisalho / brilha no bosque; / de cada galho / parte uma voz que / roça a ramada...”. Ó sabidos, reúnam-se aqui para discursar cretinices nessa festa. Quis fazer jus à data e conteúdo, com poema completamente alheio àquilo tudo que expunha. Caçou declarações ou citações. Prendeu palavras e compreensões. Tentou por todo o viés da forma acender uma velinha, uma linha de conduta, uma puta percepção, uma ação que desse liga, uma amiga que aplaudisse, um disse que disse sobre aquilo. “Qui-lo”, pensou no trocadilho errado, complementar ao “fi-lo porque”, de Jânio Quadros. Então renunciou a tudo. Não se comemora efemérides ou efemeridades de blogs. Ainda se fosse um livro... terminaria com “muitos anos de vida”!

sábado, 10 de abril de 2010

Fadiga moral

Fadiga moral, Antum anunciou antes. Deu depois adeus pausado, quase carente de silêncio. Não se opôs às palmas, desfez as faltas, apertou os olhos. De fato sentia o fim, por avesso que fosse. Sempre quis conquistas sábias às sibilares facilidades oferecidas mídia a mídia. Nunca expôs benemerências feitas, que incluía em sua íntima lista diária de decências. Jamais ousou mostrar-se bom, pela ciência dos êxitos dignos que conquistava ato a ato.
Como se numa grua em movimento acima, deu uma pan ocular no ambiente inflado por enfadados homens e seus ternos, por perfumosas damas e suas pérolas vocais. Cuspiu no chão, num gesto de ruptura, e sentenciou a todos uma confissão que por décadas lhe confiscava a alma: “farsantes de merda!”.

sexta-feira, 9 de abril de 2010

Tanto pesquisou

Tanto pesquisou o Professor Libério que, enfim, descobriu relações definitivas entre Balzac e Marx Ernest, entre La Fontaine e Delacroix, entre Oscar Wilde e Jim Morrison, entre Maria Callas e Cyrano de Bergerac. “Os corpos de todos eles estão enterrados no Cemitério do Père-Lachaise, em Paris. Eles têm em comum a vizinhança eterna”, disse solene Libério, ao fechar a última lâmina do power-point, na conferência destinada às senhoras da sociedade, que lhe pagavam fábulas por histórias de História da Arte. Lágrimas e esgrimas armaram-se na seqüência. Algumas se comoveram, outras espetavam o mestre com pedidos de explicação, pela dificuldade de entendimento. Mas foi dona Jandira de Mello e Phinos, quem pediu tempo adicional, para sanar as dúvidas com um desconfiado Libério. Sozinhos, o mestre colocou a mão entre as pernas de Jandira, e ela sumiu. A mão, não Jandira. E a relação entre as artes plásticas e a dança ficou tão clara a Jandira, que ela propôs ao mestre uma segunda etapa do curso.

quinta-feira, 8 de abril de 2010

Elegância e opulência

Elegância e opulência não faltavam àquela cozinha que, não fora pelas fotografias da família reunida e até do cachorro pequinês, julgaríamos tratar-se de cozinha industrial. A pessoa que a construíra devia ter gosto apurado: um chef, um gastrônomo requintado, um bom goumert. Um conhecedor, enfim, da alquimia dos alimentos e dos equipamentos necessários ao seu processamento.
Do nada, que na verdade tratava-se de uma porta de madeira e palha trançada, surgiu o homem gordo, que passou sem dizer uma palavra que fosse, e saiu pela segunda passagem, a dos fundos, de mola vai-e-vem entreaberta, onde víamos uma horta. O tempo parecia não passar, até que ele voltou. Trazia na mão esquerda um bicho morto já limpo, que se parecia com um coelho. Na direita, muitas hortaliças frescas. Perguntei solene se o dono demoraria, porque o horário de fechamento da loja de rações onde eu trabalhava se aproximava. O gordo disse “não”, seco. Só depois concluiu, como que para si próprio: “só que o senhor terá que esperar mais pouquinho. O dono vai jantar primeiro”. Não posso deixar a ração e receber depois? Perguntei. “Não. O dono gosta de ver o que os pequineses comem. Ele adora pequinês!”.

quarta-feira, 7 de abril de 2010

A sala muda

A sala muda de lugar. Muda. É a aparência apenas, bem sei depois dos goles dessa bebida doce. O luminoso de frente insiste em lembrar que não estou em casa, piscando Hotel Princesa, Hotel Princesa.
Há um bulir de sombras-coisas. Mexer de visões desconhecidas, inventadas? Teso no horizonte só o escuro do céu que suponho, entre clarões do Hotel Princesa, Hotel Princesa. A ironia é vermelha, se a liberdade for mesmo rosa. Horas aqui, úmidas raivas. Parece poesia essa expectativa de um sentido para a vida sob esse pisca-pisca. Bebo outra dose, quem sabe para aproximar fantasmas dessa solidão sem mérito. Jurei para aquela víbora que não voltaria mais. Fico nesse claro-escuro, nem que seja por pirraça.

terça-feira, 6 de abril de 2010

Frequentemente Ubiratã

Frequentemente Ubiratã nos fazia rir, mesmo quando suas palavras não tinham a menor graça. Era a imaginação da gente, sei lá, que produzia uma estranha associação com as coisas já ditas por Ubiratã, quando tiveram graça. Não que ambos tivéssemos apego às graças do passado. Não. Ríamos porque ríamos, assim, de um jeito não raramente remoto, mas que ainda guardava uma certa felicidade. Ubiratã só deixou de ter graça quando soube de minha disposição de não rir mais de seus chistes. Que, descobri, tinham sempre a intenção oculta de denunciar as fraquezas de alguém. Descobri, mas rio até hoje. Ele definitivamente parou de espezinhar as deficiências alheias. Mas, também definitivamente, deixou de ter graça.

segunda-feira, 5 de abril de 2010

Bricoleur de desavenças

Bricoleur de desavenças, carregava em si os fragmentos de uma desfeita à vizinha “fumante”, de outra ofensa ao motorista “desatento” do ônibus coletivo e um insulto barato ao “lento” porteiro do edifício. Pouco, perto do potencial tenso de Geraldina, porque representava apenas uma parte ínfima de seu dia: o trajeto de casa ao trabalho. Ela ainda haveria de injuriar, desonrar, difamar e causar dano ou estrago a muita gente naquele dia que começava, se entre o mal e o anoitecer não houvesse o Vasconcelos. Bom de causar ira, Vasco deixou barata a verborragia de Geraldina sobre seu gesto “pateta” de apanhar um copo com água para a secretária de empresa. Não ligou quando Geraldina o chamou de “idiota” por apanhar os clipes que encontrava no chão, ou de “mané”, quando abaixou o volume do rádio para que os clientes pudessem conversar. Após o almoço, presenteou a encrenqueira com um quebra-cabeça de 10 mil peças... “Serviço” para mais de três dias úteis.

domingo, 4 de abril de 2010

Bem esclarecido

Bem esclarecido, de terno aprumado, me apontou o embrulho verde, letras de imprensa, “É servido?”, respondi não-obrigado, então chupou um, absorto, arrebatado. “Esses drops vem da China”, estalou o palato, e soltou um “ahahhhh”, indaguei onde comprava, disse que de um nordestino sabido, cruzador de fronteira, “Cheio das idas e vindas”, perguntei se tinha pra vender?, disse que me levaria lá. Foi só para fazer graça com aquele condutor sofisticado de táxi todo condicionado pelo ar. Paramos e comprei logo uma caixa, daria para mim e para a família toda, caso a visse novamente. Por gentileza, ofertou-me três balinhas de canela da Índia, que não gosto, mas não fiz desfeita. Vontade mesmo, daquela verdadeira, me deu foi de dirigir um táxi pra sempre, pelas estradas, descobrindo gentes e balas chinesas.

sábado, 3 de abril de 2010

Parecia um cantor

Parecia um cantor de tango, um malandro antigo da Lapa falida, um escriturário dos anos 1930 ou tudo isso, ou nada disso. Um tempo que não havia era o que eu via. Um diabo de um ritmo sincopado no tremor das luzes intensas do shopping center em curto circuito. Um espectro de memórias fortuitas que parecia ter garçons aos seus serviços, caso cismasse tomar um chope. Também poderia representar Deus, se optasse por brincar de criar universos. Meu coração disparou com aquilo. Perdi o viço e as pernas afrouxaram quando percebi que aquela visão se aproximava, vinda de há muitos anos ou dali mesmo, em meios aos azulados estalos da energia elétrica nervosa. Que mangas compridas querem me abraçar assim? Que elegância anacrônica quer me colocar na moda? Que Hamlet extemporâneo quer ser ou não ser? Guardo em outra memória esse descuido da primeira memória. Outro lapso, penso, nessa lenta passagem pela vida lavrada. A gente vê cada coisa... inexistente!

sexta-feira, 2 de abril de 2010

Cigarros picados

Cigarros picados, restos de egos, romances partidos, fome contínua, façanhas fantasiosas, conversas fortuitas, maus cozimentos, entraves legais, desejos morosos, bananas empedradas, feitura de bicos, epilepsia de gulas, fragorosas decepções, olhos tísicos, pulmões impiedosos, olhares letais, pedras no feijão, garganta raspando, vômitos de bílis, cervejas quentes, pernoites insones, relíquias sumidas, suspenses corriqueiros, taquicardia crônica, poços de veleidades, broncas gratuitas, carimbos borrados, denúncias fugazes, leite talhado, gargalhadas vazias, homenagens póstumas, juramentos quebrados, limites desrespeitados, hipotéticas dores, suco de jiló, ócio obrigatório, palavrões no ouvido, macarrão cru, murmúrios constantes, espinha inflamada, drogas batizadas, narrativas trôpegas...e ufa! Ser Cristo, na sexta-feira da paixão... melhor seria ser desconhecido.

quinta-feira, 1 de abril de 2010

Empacotou a alma

Empacotou a alma, para entregá-la sem medo do pecado, quando aceitou trabalhar para Lourdes. O nome de santa não garantia à moça nenhuma espécie de iluminação do Céu. E pior: pelos pré-requisitos católicos, estaria mais para o inferno do que para o próprio purgatório. As longas madeixas, o aloirado dos cabelos, pousavam em seu semblante certo aspecto divino, mas Roberval logo notou o veneno que o viciou, quando aceitou trabalhar para Lourdes. Ainda que ela lhe pedisse primeiro simples gestos usuais, como abotoar-lhe o vestido às costas ou calçar-lhe as sandálias, havia nisso sinais de intenções luxuriosas. E ele bem as detectou, quando aceitou trabalhar para Lourdes. Embora lhe ordenasse trivialidades, como morder primeiro a maçã ganhada ou massagear-lhe a nuca que parecia febril, ele realizou feliz as determinações estranhas, quando reiterou o desejo de trabalhar para Lourdes. Ficou arrasado, é verdade, quando viu Lourdes deitar-se com homens vãos e variados mas, então, já não havia como demitir-se de Lourdes.